quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011
As cartas de Mario de Andrade
Um projeto modernista: as cartas de Mário de Andrade
por Rafael Pereira da Silva
Resenha de MORAES, Marcos Antonio. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia de Mário de Andrade. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2007
Sobre o autor[1]
As correspondências constituem um tipo específico de escrita de si, bem como os diários, as biografias, as autobiografias, os arquivos pessoais e as memórias. Essas formas de produção de si constituíram-se em meados do século XIX com o advento do indivíduo moderno. Esses registros formam um conjunto de fontes produzidas no âmbito do privado, mas que não deixam de revelar vestígios de trajetórias de vida, de redes de sociabilidades intelectual e política de importantes figuras ou de anônimos, fornecendo elementos para uma história das práticas culturais que, em fins do século XX, passou a reconhecer novos objetos, fontes, metodologias e critérios de verdade histórica[2].
No Brasil destacam-se, entre outros trabalhos, como referências dessa discussão no campo historiográfico, as coletâneas, Escrita de Si, escrita da história (2004) e Memórias e narrativas (auto)biográficas (2009), ambas organizadas por Ângela de Castro Gomes, a última em parceria com o professor Benito Schmidt. É nesse terreno movediço em que encontram-se crítica literária, literatura e história cultural que Marcos Antonio de Moraes insere a sua análise sobre o autor de Macunaíma no livro Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia de Mário de Andrade (2007), resultado de sua tese de doutorado em Literatura Brasileira defendida na USP em 2002.
O autor é docente e pesquisador do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP), local onde encontra-se o arquivo que pertenceu a Mário de Andrade. Marcos Antonio de Moraes debruça-se nos estudos epistolográficos há algum tempo e possui além de uma série de artigos, outros livros publicados sobre o tema, dentre os quais, Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira (2000) "Me escreva tão logo possa". Antologia da carta no Brasil (2005), Cartas de Mário de Andrade a Otávio Dias Leite (1936-1944) (2006).
Em Orgulho de jamais aconselhar o autor ao longo dos quatro capítulos insere o leitor numa prática constante do trabalho intelectual de Mário de Andrade: a escritura de cartas. Essas, reconhecidas por seu expressivo volume e período de tempo (1893 a 1945) revelam além de um potencial biográfico e histórico, um projeto pedagógico inserido no ideário modernista. Essa perspectiva didática da escrita do autor de Paulicéia Desvairada revela, para Marcos Antonio de Moraes, um plano de sedução intelectual, sobretudo, nas cartas endereçadas aos jovens escritores, artistas plásticos, músicos e constituem-se como tema central do livro. Nesse pequeno mundo intelectual destacam-se as correspondências do escritor com Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Murilo Miranda, Oneyda Alvarenga, Gilda Rocha, Henriqueta Lisboa, Rubens Borba de Moraes, Zé Bento, seu assistente, vários desses, ex-alunos.
Nesse sentido, por exemplo, Mário de Andrade em muitos casos quebrava uma suposta hierarquia existente frente aos mais jovens em prol de uma “amizade” que se constituía e se consolidava no vai-e-vem das cartas. Quando a presença era física, não obstante passava noites em claro ao lado de jovens poetas, escritores e artistas aspirantes no boêmio bar da Glória no Rio de Janeiro. A extensa quantidade de fontes analisadas por Moraes (cartas, periódicos, necrológios, jornais) também são reveladoras de alguns mal-entendidos na pedagogia do escritor. Em 1944, por exemplo, um artigo publicado em O Jornal por José Cesar Borba demonstrava isso. Para Moraes, a imagem criada pelo texto tocava a fundo Mário, que nele observava a tradução imperfeita do seu projeto de uma vida inteira; via sua ação completamente distorcida, seus valores invertidos, em suma, uma calúnia procurando sujar-lhe o retrato[3].
No que se refere às questões teórico-metodológicas, o autor delimita o campo de análise das cartas estabelecendo um diálogo entre a historiografia francesa, a psicanálise e a teoria literária. Para Marcos Antonio de Moraes, o gênero epistolar situa-se no fio tênue entre a fala (oralidade) e a escrita (literatura), flagrante para ele na percepção do próprio Mário de Andrade sobre o gênero, exemplo observado nos dizeres do “mestre” em carta a Manuel Bandeira em 1926: “É a melhor prova de que jamais faço literatura com os camaradas. Vai assim mesmo”[4]. A correspondência é também diálogo e é o remetente que elege assuntos, experiências e impressões pessoais. Mas a presença do outro, no entender do autor, determina também as formas do contar-se, prendendo-se a determinados fins.
Por esse motivo Moraes utiliza o conceito de encenação, articulado por Beatrice Didier[5]: para ela, “existe uma parte de ficção em toda a autobiografia, em toda a carta, que seja sincera, na medida onde ela é necessariamente encenação diante do outro”. Desse modo, para o autor, os diferentes contrapontos dos diálogos epistolares de Mário de Andrade acusando a diversidade (natural) do “eu”, definindo coincidências, enfrentamentos e projetos abrem, inicialmente, a perspectiva de uma leitura das mise en scènes epistolares, ou seja, o desvelamento das metamorfoses da voz epistolar do escritor em face dos seus vários interlocutores de forma a captar os diferentes relacionamentos em suas particularidades[6].
As cartas também podem ser analisadas como um campo da produção literária a quatro mãos. Nesse sentido, por exemplo, Moraes afirma que a intervenção de Manuel Bandeira possuía força decisória na obra de Mário de Andrade que, com frequência, modificava, suprimia versos, ou re-elaborava sua ficção e ensaística[7]. Por essa perspectiva a correspondência entre os dois intelectuais permite, segundo o autor, vislumbrar os “arquivos de criação”, termo pertencente à crítica genética que nos estudos literários se interessa por compreender os caminhos da produção artística, ou seja, perscrutar a expressão intuitiva de Manuel Bandeira[8].
Orgulho de jamais aconselhar se aproxima das recentes discussões do campo historiográfico. Para Silvia Byngton, por exemplo, as cartas são relatos que acentuam a subjetividade do narrador, personagem central, observador privilegiado e intérprete de sua própria vida, de sua história e de seu tempo para um leitor específico, o seu correspondente. Construindo dialogicamente sua persona no texto epistolar, os missivistas constroem desta forma relatos interpretativos sobre o tempo histórico. As cartas são por isso uma “escrita do tempo” [9].
O ensaio de Marcos Antonio de Moraes consegue apresentar à luz de tais perspectivas a personagem Mário de Andrade dentro de sua vasta rede de sociabilidade e de seu complexo laboratório de criação literária. Afogado em suas cartas o escritor delas fez o espaço privilegiado de suas amizades, de sua militância artística, pedagógica e de suas personalidades, que se inseriram num projeto de toda uma vida. Como opção metodológica o livro deixou de lado reflexões sobre o gênero (auto)biográfico, tão discutido atualmente.
Por fim, a pesquisa de Moraes insere-se ainda em um diálogo mais amplo com a História dos Intelectuais, entendida como um campo que possibilita a exegese de textos, manuscritos e impressos, objetos fronteiriços, que estão no horizonte de diferentes interesses e disciplinas, como a história política, a história das ideias, a história das elites e a história da literatura, pois contribui nas análises dos periódicos culturais, das biografias intelectuais, dos arquivos privados, e principalmente, das fontes epistolares.
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[1] Doutorando em História na Unicamp; Bolsista CNPq; Mestre em História Cultural pela UFSC; e-mail: rapersilva@gmail.com
[2] GOMES, Ângela de Castro. Escrita de si, escrita da história: a título de prólogo. In: _____. (Org). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2004. p.13-14.
[3] MORAES, Marcos Antonio. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia de Mário de Andrade. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2007. p. 162.
[4] Idem, p. 72, nota 9.
[5] DIDIER, Beatrice. La correspondence de Flaubert et de Geroge Sand. Les amis de George Sand. Paris, nouvelle série, n.10, 1989. Apud: MORAES, op.cit. p. 76.
[6] Idem.
[7] Idem, 89.
[8] Idem, 92. Idéia também trabalhada por Michel Trebitsch ao analisar as trocas epistolares entre Henri Lefebvre e Norbert Guterman no período entre 1935 e 1947. Nesse sentido ver: Correspondances d'intellectuels. Le cas des lettres d'Henri Lefebvre à Norbert Guterman, (1935-1947) In: Nicole Racine et Michel Trebitsch (dir.), Sociabilités intellectuelles. Lieux, milieux, réseaux, Cahiers de l’IHTP, n°20, mars 1992.
[9] BYNGTON, Silvia Ilg. Prezados modernistas: a correspondência entre Luiz da Câmara Cascudo e Mário de Andrade. In: CHALHOUB, Sidney; NEVES, Margarida de Souza; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda (Orgs.). História em cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2005. p. 493.
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