terça-feira, 26 de outubro de 2010

música e psicanalise de Paulo Costa lima

De Salvador (BA)

Paulo Costa Lima



Música pode ser o que pensamos que seja: ou pode não ser. Pode ser sentimento, sensação, sensualidade, mas também pode não ter nada a ver com emoção ou sensação física. Música pode ser aquilo para o qual alguns dançam ou fazem amor; mas, tal não é necessariamente o caso. Em algumas culturas há categorias complexas para pensar sobre música: em outras, parece não haver a necessidade de especular sobre música, contemplando-a. O que a música é, permanece aberto a questionamento em todos os tempos e lugares. tal sendo o caso, qualquer metafísica da música precisa necessariamente separar o resto do mundo de um tempo e espaço privilegiado, um tempo e espaço pensado como próprio. Pensar sobre música, portanto, é na verdade, em sua base, uma tentativa de proclamar a música como sendo nossa, controlando-a.

Bohlman (1999)





1. Ao abrir essa caixa de retalhos que é o tema da música e da psicanálise, gostaria de me assegurar que os leitores têm uma noção, mesmo que aproximada, do grande número de contribuições feitas ao tema ao longo do Século XX. Nos últimos anos acredito ter havido um volume bem maior ainda de intervenções as mais diversas, já no bojo de dissertações e teses universitárias.



2. Essa consciência da pluralidade e diversidade de enfoques não é a atitude mais freqüente, mesmo entre os próprios autores. Há, em geral, um certo sentimento de desbravamento, como se o artigo ou contribuição estivesse abrindo as portas de um mundo relativamente virgem, intocado. Esse é um fenômeno intrigante.



3. Ora, se a consciência da existência desse inter-campo é sofrível, então não surpreende que a formação de linhas temáticas, de eixos conceituais, em torno dos quais direcionar a pesquisa, em suma, que o trabalho de formulação de perguntas condutoras seja um tanto difuso.



4. Outro aspecto desafiador é a própria natureza de inter-campo. Os critérios de avaliação daquilo que é produzido existem de forma separada nos dois campos de origem: teoria psicanalítica e teoria da música (ou musicologias). Aquilo que vêm a ser reconhecido como válido e legítimo, através de critérios de um dos campos, nem sempre pode ganhar essa autenticação do outro lado. Surge, com isso, um desequilíbrio bastante incômodo.



5. Não custa lembrar que o campo da teoria da música é, ele próprio, bastante vasto e cada vez mais diversificado, além de poder ser datado como tendo início há pelo menos 2.500 anos, com os escritos de Aristoxeno de Tarentum, um aluno brilhante de Aristóteles, isso sem mencionar a tradição Pitagórica, que lhe antecede. No meu Seminário de pós-graduação sobre Tópicos em Teoria da Música, apresento quinze horizontes discursivos distintos em teoria da música. Um deles, o número 14, é o lugar da miscelânea, e é lá, juntamente com análise de música eletrônica, música e filosofia, e outros, que situo o sub-campo 'música e psicanálise'.



Deixando de lado o campo da teoria da música e pontuando algumas passagens interessantes da literatura sobre música e psicanálise, vale a pena observar:



6. Em 1945 Isador Coriat (M.D. de Boston) escreve sobre a atuação anterior de Sigmund Pfeiffer e Van der Chijs. Para Pfeiffer (1922, International Journal of Psycho-Analysis):



A música é uma recapitulação da expressão libidinal através do ritmo, pelo processo de economia psíquica, fornece prazer por repetição compulsiva, liberando fantasias inconscientes. O conteúdo da música é o simbolismo puro de libido; não possui conteúdo objetivo porque o aspecto libidinal da música ainda não atingiu o nível objetal de desenvolvimento.



... a música se distingue de todas as outras artes por sua inabilidade de representar objetos da libido fora do ego, levando dessa forma a atividades dominadas exclusivamente pelo princípio do prazer.



Para van der Chijs:



a música freqüentemente simboliza a identificação entre ouvinte e compositor, algumas vezes pintando através do som, tanto ejaculação como orgasmo. Toda música representa as fontes profundas do pensamento inconsciente porque não é impedida pelas limitações da linguagem, tal como em poesia, ou pelas imagens visuais, tal como em pintura.



7. Em 1946, Richard Sterba coloca a questão num nível mais sofisticado. O título de seu artigo, lido diante da Sociedade de Psicanálise de Chicago em 1939, é 'Toward the problem of the musical process' - em direção ao problema do processo musical. Problematizar o processo musical é uma formulação elegante. Mas, logo no primeiro parágrafo, surgem algumas surpresas um tanto dogmáticas:



Considera-se provado que a música é baseada em fundamentos instintuais narcisísticos e anais, mas a investigação analítica não avançou além disso.



Como avançar além disso? Mais adiante toca numa questão de longa duração:



A diferença entre o mundo real externo e a imagem dele criada pelo artista nos permite reconhecer, através da investigação psicanalítica, a constituição de tendências e reações emocionais inconscientes. Chamamos essas tendências e reações emocionais de conteúdo latente de uma obra de arte. Mas, aplicar esse método de investigação á música seria impossível, uma vez que em música as emoções conscientes e inconscientes não são expressas na forma de imagens do mundo externo. Música é o que podemos chamar de uma arte sem objeto (objectless art).



8. O tema continua ecoando por aí a fora. Em 1976, Didieu Anzieu (na Nouvelle Revue de Psychanalyse) apresenta uma contribuição notável, partindo da idéia da existência de um envelope sonoro do infante, o qual, funcionando de forma semelhante a um espelho, criaria um espaço de referência para o sujeito - o primeiro espaço psíquico é o espaço sonoro -, intermerdiando sua relação consigo mesmo e com o ambiente, o outro.



...o estágio do espelho concebido por Lacan, onde o Eu se edifica como outro a partir do modelo da imagem especular do corpo inteiro, unificado. Winnicott havia descrito uma fase anterior, na qual o rosto da mãe fornecia o primeiro espelho ao infante. Ambos colocaram o acento no universo visual. Gostaríamos de colocar em evidência a existência, mais precoce ainda, de um espelho sonoro, ou de uma pele auditiva e fônica, e de sua função no processo de aquisição pelo aparelho psíquico da capacidade de significação, e de simbolização.



A idéia de um espelho sonoro ressignifica de forma radical a questão da música como objeto.



9. Já em 1992, Ludwig Haesler, trilha um caminho semelhante, invocando porém a noção de objeto transicional - da lavra de Winnicot.



O processo de formação de tais representações relacionais internas, de 'objetos', é, obviamente, bastante complexo, começando de um estado relativamente não-difernciado onde o objeto ainda não está representado com um todo mas de forma rudimentar, em representações parciais ainda a serem integradas como um todo.



Nessa fase pré-objetal a música, ou seja, elementos musicais não-verbais de intercâmbio mútuo, desempenham um papel central e decisivo.



E nesse processo complexo de diferenciação existe uma fase onde a aceitação e reconhecimento da realidade da separação e da diferença não podem ser suficientemente toleradas, levando a uma espécie de fase intermediária dominada pela qualidade específica da duplicidade entre aceitação, e, ao mesmo tempo, não-aceitação dessa realidade exterior...



Chamamos a esses objetos preenchedores de espaço, desse espaço específico, de objetos transicionais. Os objetos transicionais geralmente possuem uma qualidade sensual específica que lembra o objeto ausente, ou lembra aspectos do objeto ausente, mesmo que sejam aspectos parciais... isso pode ser descrito como uma espéice de mistura de realidades, da ausência e da presença do objeto ao mesmo tempo, um composto de duas realidades - é e não é, ao mesmo tempo.



... Além dos afetos tradicionais - alegria, tristeza, ansiedade, raiva, disgust, surpresa e interesse.... há também uma série de processos dinâmico-cinéticos de tipo específico incluindo movimento, padrões expressivos e/ou gestuais tais como aparecer subitamente, desaparecer lentamente (fading), crescendo, decrescendo, Klang e vários tipos de Klang... Esses processos dinâmicos materializados por ações corporais tendem a ser conectados e relacionados um a outro em padrões do tipo curto-longo, cima-baixo, contínuo-descontínuo, fluindo, ritardando e acelerando...



A semântica musical e a semântica dos afetos nascem, portanto, da mesma matriz...



10. Essa habilidade de trabalhar com esse espaço ambíguo - do 'é' e do 'não é' - aparece como fundante para a criatividade em música; por exemplo, para o trabalho com variações e variantes, onde um tema básico é trabalhado sistematicamente e transformado continuamente ao longo de uma obra. Esse será o nosso cenário 'específico', digamos assim, com Brahms.



11. Antes disso, quero lembrar que também a imagem do jogo do carretel de linha - fort / da - foi invocado para contextualizar a experiência musical, Brousselle (1979)



12. Nessa seqüência de referências, fica bem encerrarmos com o trabalho mais recente de Alain Didier-Weill, onde no meio de um cipoal discursivo 'Os três tempos da lei', escreve uma das formulações mais claras sobre o inconsciente em música.



... na medida em que é 'tocado', como se diz (Freud disse 'agarrado', ergreifen), você descobrirá que de fato não é você que escuta, mas que é a música que o escuta, que escuta uma presença de cuja existência você se esqueceu e que, pelo fato de ser escutada, passa a reviver e a lhe ser dada, é que você não pode oferecê-la a si mesmo: ela não está a sua disposição. Ela está á disposição soberana do Outro, que é o único a poder livrá-la de seu retiro e entregá-la a você, ao revelá-la....



Quando me encanto com a música, a quê, então, digo 'sim'?

A uma transmutação subjetiva que revira, e, a cada vez, de maneira muito perturbadora, minha posição de sujeito ouvido em sujeito que ouve: com efeito, quando eu acreditava me engajar no ato de escutar a música, eis que descubro, no instante em que ela soa, que é ela que me ouve.

O que ela ouve?

Que ouvi, no que ela havia me dado a ouvir, um apelo ao qual respondi um 'sim';... não sei com efeito a quem eu disse 'sim', nem quem disse 'sim'.



Um sujeito invocado advém como invocante - a pulsão invocante.



No ponto em que nos encontramos, não hesitamos em declarar que uma reflexão teórica sobre a música é um dos caminhos possíveis para compreender a relação mais primordial do sujeito com o Outro...



Deve-se dizer que a música diz 'a' verdade? Não, ela diz somente o real, pelo fato de que ela o leva à existência e, nisso, seu poder é, ao mesmo tempo, superior ao da palavra e menor que o dela...



13. A identificação do ouvinte com uma nota (um centro); e com um grupo de notas; usando Bach e Brahms como exemplos.



14. A identificação com o loccus ficcional do criador da música; com o suposto saber que também é suposto gozar...



15. A teoria psicanalítica precisa da música; a teoria da música precisa da psicanálise.









Paulo Costa Lima é compositor. Pesquisador pelo CNPq. Professor de composição da Universidade Federal da Bahia.

www.myspace.com/paulocostalima - http://www.paulolima.ufba.br/



Fale com Paulo Costa Lima: paulocostalima@terra.com.br

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Manoel Messias Pereira

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