terça-feira, 23 de novembro de 2010

poesia de Herbert Helder

Nascido em Funchal, Ilha da Madeira em 23 de novembro de 1930, Herberto Helder


Ilha da Madeira











"difícil viver entre a falsa inteligência alheia. Antes ser absolutamente ininteligível perante uma ininteligência senhora de si do que ser devorado pelas partes que os outros escolhem, em puro abuso, para satisfação da própria inteligibilidade, deles, estrangeiros."

§

"Trabalha naquilo antigo enquanto o mundo se move para o centro de si mesmo, como se todos os pontos em que trabalhas

fossem o centro do mundo."



















Sobre um Poema



Um poema cresce inseguramente

na confusão da carne,

sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,

talvez como sangue

ou sombra de sangue pelos canais do ser.



Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência

ou os bagos de uva de onde nascem

as raízes minúsculas do sol.

Fora, os corpos genuínos e inalteráveis

do nosso amor,

os rios, a grande paz exterior das coisas,

as folhas dormindo o silêncio,

as sementes à beira do vento,

- a hora teatral da posse.

E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.



E já nenhum poder destrói o poema.

Insustentável, único,

invade as órbitas, a face amorfa das paredes,

a miséria dos minutos,

a força sustida das coisas,

a redonda e livre harmonia do mundo.



- Em baixo o instrumento perplexo ignora

a espinha do mistério.

- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.





AS MUSAS CEGAS



V



Esta linguagem é pura. No meio está uma fogueira

e a eternidade das mãos.

Esta linguagem é colocada e extrema e cobre, com suas

lâmpadas, todas as coisas.

As coisas que são uma só no plural dos nomes.

- E nós estamos dentro, subtis, e tensos

na música.



Esta linguagem era o disposto verão das musas,

o meu único verão.

A profundidade das águas onde uma mulher

mergulha os dedos, e morre.

Onde ela ressuscita indefinidamente.

- Porque uma mulher toma-me

em suas mãos livres e faz de mim

um dardo que atira. - Sou amado,

multiplicado, difundido. Estou secreto, secreto-

e doado às coisas mínimas.



Na treva de uma carne batida como um búzio

pelas cítaras, sou uma onda.

Escorre minha vida imemorial pelos meandros

cegos. Sou esperado contra essas veias soturnas, no meio

dos ossos quentes. Dizem o meu nome: Torre.

E de repente eu sou uma torre queimada

pelos relâmpagos. Dizem: ele é uma palavra.

E chega o verão, e eu sou exactamente uma Palavra.

- Porque me amam até se despedaçarem todas as portas,

e por detrás de tudo, num lugar muito puro,

todas as coisas se unirem numa espécie de forte silêncio.



Essa mulher cercou-me com as duas mãos.

Vou entrando no seu tempo com essa cor de sangue,

acendo-lhe as falangetas,

faço um ruído tombado na harmonia das vísceras.

Seu rosto indica que vou brilhar perpetuamente.

Sou eterno, amado, análogo.

Destruo as coisas.



Toda a água descendo é fria, fria.

Os veios que escorrem são a imensa lembrança. Os velozes

sóis que se quebram entre os dedos,

as pedras caídas sobre as partes mais trêmulas

da carne,

tudo o que é úmido, e quente, e fecundo,

e terrivelmente belo

- não é nada que se diga com um nome.

Sou eu, uma ardente confusão de estrela e musgo.



E eu, que levo uma cegueira completa e perfeita, acendo

lírio a lírio todo o sangue interior,

e a vida que se toca de uma escoada

recordação.



Toda a juventude é vingativa.

Deita-se, adormece, sonha alto as coisas da loucura.

Um dia acorda com toda a ciência, e canta

ou o mês antigo dos mitos, ou a cor que sobe

pelos frutos,

ou a lenta iluminação da morte como espírito



nas paisagens de uma inspiração.

A mulher pega nessa pedra tão jovem,

e atira-a para o espaço.

Sou amado. - E é uma pedra celeste.



Há gente assim, tão pura. Recolhe-se com a candeia

de uma pessoa. Pensa, esgota-se, nutre-se

desse quente silêncio.

Há gente que se apossa da loucura, e morre, e vive.

Depois levanta-se com os olhos imensos

e incendeia as casas, grita abertamente as giestas,

aniquila o mundo com o seu silêncio apaixonado.

Amam-me; multiplicam-me.

Só assim eu sou eterno.







EM SILÊNCIO DESCOBRI ESSA CIDADE NO MAPA



Em silêncio descobri essa cidade no mapa

a toda a velocidade: gota

sombria. Descobri as poeiras que batiam

como peixes no sangue.

A toda a velocidade, em silêncio, no mapa -

como se descobre uma letra

de outra cor no meio das folhas,

estremecendo nos olmos, em silêncio. Gota

sombria num girassol. -

essa letra, essa cidade em silêncio,

batendo como sangue.



Era a minha cidade ao norte do mapa,

numa velocidade chamada

mundo sombrio. Seus peixes estremeciam

como letras no alto das folhas,

poeiras de outra cor: girassol que se descobre

como uma gota no mundo.

Descobri essa cidade, aplainando tábuas

lentas como rosas vigiadas

pelas letras dos espinhos. Era em silêncio

como uma gota

de seiva lenta numa tábua aplainada.



Descobri que tinha asas como uma pêra

que desce. E a essa velocidade

voava para mim aquela cidade do mapa.

Eu batia como os peixes batendo

dentro do sangue - peixes

em silêncio, cheios de folhas. Eu escrevia,

aplainando na tábua

todo o meu silêncio. E a seiva

sombria vinha escorrendo do mapa

desse girassol, no mapa

do mundo. Na sombra do sangue, estremecendo

como as letras nas folhas

de outra cor.



Cidade que aperto, batendo as asas - ela -

no ar do mapa. E que aperto

contra quanto, estremecendo em mim com folhas,

escrevo no mundo.

Que aperto com o amor sombrio contra

mim: peixes de grande velocidade,

letra monumental descoberta entre poeiras.

E que eu amo lentamente até ao fim

da tábua por onde escorre

em silêncio aplainado noutra cor:

como uma pêra voando,

um girassol do mundo.











Não te queria quebrada pelos quatro elementos.

Nem apanhada apenas pelo tacto;

ou no aroma;

ou pela carne ouvida, aos trabalhos das luas

na funda malha de água.

Ou ver-te entre os braços a operação de uma estrela.

Nem que só a falcoaria me escurecesse como um golpe,

trêmulo alimento entre roupa

alta,

nas camas.

Magnificência.

Levantava-te

em música, em ferida

- aterrada pela riqueza -

a negra jubilação. Levantava-te em mim como uma coroa.

Fazia tremer o mundo.

E queimavas-me a boca, pura

colher de ouro tragada

viva. Brilhava-te a língua.

Eu brilhava.

Ou que então, entrecravados num só contínuo nexo,

nascesse da carne única

uma cana de mármore.

E alguém, passando, cortasse o sopro

de uma morte trançada. Lábios anônimos, no hausto

de árdua fêmea e macho

anelados em si, criassem um órgão novo entre a ordem.

Modulassem.

E a pontadas de fogo, pulsavam os rostos, emplumavam-se.

Os animais bebiam, ficavam cheios da rapidez da água.

Os planetas fechavam-se nessa

floresta de som unânime

pedra. E éramos, nós, o fausto violento, transformador

da terra



Nome do mundo, diadema.











A oferenda pode ser um chifre ou um crânio claro ou

uma pele de onça

deixem-me com as minhas armas

deixem-me entoar as onomatopéias, a minha canção de glória.

À noite o cabelo frio

de dia caminho por entre a fábula das corolas

sim, eu sei, queimam-se de olho a olho selvagem mas não se movem

mais altas que eu, mais soberanas, amarelas.

Escuto a travessia cantora dos rios no mundo

depois aparece a longa frase cheia de água.

Guio-me pelas luas no ar desfraldado e

grito de água para água levanto as armas

gritando

enquanto danço o algodão cresce fica maduro o tabaco.

Ninguém fez uma guerra maior. Corno chumbado em sangue e osso,

crânio com luz própria pousando na sua luz,

na pele

as pálpebras abrindo e fechando ¿quem se exaltava

vestido com elas?

Meti na boca um punhado de diamantes - e

respirei com toda a força. E tremi ao ver como eu era inocente, assim

com dedos e língua calcinados; e

levando a mão à boca entoei a canção inteira das onomatopéias;

era a guerra. Como se caça uma fêmea com tanto sangue entre as ancas?

A ouro rude. Boca na boca

enchê-la de diamantes. Que fique a brilhar nos sítios

violentos. Doce, que seja doce, acre

mexida na sua curva de argila sombria andando coberta de olhos,

onça pintada no meio de flores que expiram.

Quem ergue o hemisfério a mãos ambas acima da testa?

quem morre porque a testa é negra?

quem entra pela porta com a testa saindo da fornalha?

O animal cerrado que se toca a medo:

o braço estremece, o coração estremece até à raiz do braço

entre carmesim e carmesim

bárbaro, estremecem

a memória e a sua palavra. Tocar na coluna

vertebral o continente todo

toda a pessoa - transformam-se numa imagem trabalhada a poder

de estrela. Quando se agarra numa ponta e a imagem

devora quem a agarra.

No chão o buraco. da estrela -







Sobre os cotovelos a água olha o dia sobre



os cotovelos. batem folhas da luz

um pouco abaixo do silêncio. Quero saber

o nome de quem morre: o vestido de ar

ardendo, os pés e movimento no meio

do meu coração. O nome: madeira que arqueja, seca desde o fundo

do seu tempo vegetal coarctado.

E, ao abrir-se a toalha viva, o

nome: a beleza a voltar-se para trás, com seus

pulmões de algodão queimando.

Uma serpente de ouro abraça os quadris

negros e molhados. E a água que se debruça

olha a loucura com seu nome: indecifrável cego

.























© copyright by vasco cavalcante

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Manoel Messias Pereira

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