sexta-feira, 23 de agosto de 2013

A pena como ofício e militância acerca da atividade jornalística de Neno Vasco


A pena como ofício e militância: acerca da atividade jornalística de Neno Vasco

por Thiago Lemos Silva

Sobre o autor*

Introdução

O retorno de Neno Vasco[1] para Portugal em 1911 não significou que sua militância no Brasil tenha findado. Pois, mesmo depois de ter retornado a Portugal, Neno continuou a participar da imprensa anarquista e a interagir com o movimento operário brasileiro.

Assim como se fala, escreveu Neno Vasco, de aproximações comerciais e políticas, de missões diplomáticas e intelectuais, assim, nós devemos encarar e realizar uma união - não na forma, muitas vezes vazia, mas no que constitui a essência, a carne, o sangue, dessa aliança - a incessante troca de recursos de toda espécie. Nessa permuta de ideias, de correspondências, de publicações, de contribuições pecuniárias - e sobretudo de homens, para o conhecimento direto e pessoal dos ambientes e indivíduos - muito terão a ganhar o movimento anarquista de Portugal e o do Brasil.[2]

Partindo de tal premissa, ele atuou durante uma década como uma espécie de diplomata entre os companheiros situados do lado de cá e do lado de lá do Atlântico. Através de uma atividade jornalística constante e diversificada em periódicos brasileiros e portugueses, Neno Vasco colaborou para a construção de um lócus de intensos debates envolvendo diferentes estratégias de combate ao capitalismo nos meios anarquistas e operários dos respectivos países, materializando, por assim dizer, uma união inter-nacional entre Brasil e Portugal.

Para além das questões militantes, as questões profissionais também desempenharam um papel não negligenciável na escolha de Neno Vasco em manter suas relações com o Brasil. Na realidade, antes que partisse para Portugal, Edgard Leuenroth tratou de formalizar com ele uma relação envolvendo a escrita e envio de crônicas e demais materiais para a publicação nos jornais vinculados à imprensa anarquista e operária no Brasil[3]. Tal tarefa, segundo Samis:

[...] deveria servir para gerar algum recurso para Neno, uma vez que ao desembarcar no país natal ver-se-ia sem ocupação fixa ao menos por alguns meses. A preocupação com rendimentos não o abandonava, o auxilio prestado pelo pai, afinal um homem integrado ao sistema, era de fato embaraçador. A opção militante, tendo que fazer frente às enormes despesas, o colocava em sutil contradição com aquilo que pretendia viver plenamente. Isso de fato o perturbava.[4]

Para perscrutar alguns fragmentos da biografia de Neno Vasco, trago à tona neste trabalho suas cartas trocadas com Edgard Leuenroth no período de 1911-1915. Embora essas cartas constituíssem um móvel de diálogo entre jornalista e editor, elas também possibilitaram ao nosso biografado uma forma de escrita de si, ou seja, um tipo de escrita que toma a subjetividade

[...] como dimensão integrante de sua linguagem, construindo sobre ela a sua verdade . Ou seja, toda essa documentação de produção do eu autoral é entendida como marcada pela busca de um efeito de verdade [...], que se exprime pela primeira pessoa do singular [...] do indivíduo que assume sua autoria. Um tipo de texto em que a narrativa se faz [...] de maneira que nessa subjetividade se possa assentar sua verdade, sua legitimidade como prova . Assim, a autenticidade da escrita de si torna-se inseparável de sua sinceridade.[5]

A partir de sua escrita epistolar, pretendo problematizar como Neno constrói sua atividade jornalística em um momento singular de sua trajetória. Em virtude dos novos desafios a ele colocados após sua travessia para o outro lado do Atlântico, nosso biografado (re)cria seu jornalismo, estabelecendo uma nova relação com o binômio ofício-militância, tornando a fronteira entre ambos de difícil ou impossível distinção.

Ofício ou militância? Territórios in-definidos no jornalismo de Neno Vasco

Se teoricamente o objetivo dessa relação mantida com Leuenroth era, também, proporcionar temporariamente a Neno Vasco a renda necessária para que, em face da dificuldade de encontrar um emprego fixo no momento imediato ao desembarque em Portugal, ele e sua família obtivessem uma renda para fazer frente às primeiras despesas financeiras que teriam, essa relação na prática acabaria perdurando por muito mais tempo. Ao que parece, o progressivo afastamento do pai, que continuou residindo no Brasil com a nova família que constituíra após a morte da mãe de Neno, parece ter forçado o anarquista, que havia recebido do senhor Vitorino a promessa de lhe ajudar financeiramente após sua chegada no outro lado do Atlântico, a encarar o jornalismo de modo distinto daquele que estava habituado.

Fato aparentemente banal, mas que se reveste de importância na medida em que indagamos a sua produção jornalística e de que modo devemos entendê-la: tratar-se-ia de uma atividade militante ou tratar-se-ia de uma atividade profissional? Quando inquirido por Leuenroth em carta se daria continuidade à sua contribuição em Guerra Social, folha anarquista fluminense pela qual não era pago, Neno nos dá algumas pistas para elucidarmos essa questão:

Continuarei a colaborar com a Guerra Social é claro. Recebo dinheiro porque esse é o único meio de poder dedicar o meu tempo à propaganda. Repartirei a minha colaboração gratuita pela Guerra Social, A Sementeira e A Aurora. Se depois a Guerra Social ficar desafogada melhor para mim e para ela. Depois de amanhã vai mais um pouco de original.[6]

A afirmação de que ser remunerado por sua produção era uma condição indispensável para a sua realização, não pode ser tomada como um exagero por parte de Neno Vasco. De um lado, ao fazer do jornalismo um ofício, ele passou a contar apenas com a sua pena para obter os rendimentos necessários para arcar com as despesas do seu núcleo familiar, que tinha aumentado mais ainda desde a sua chegada em Lisboa. Além de seus filhos e esposa, ele tinha, agora, sob o seu encargo suas cunhadas, Ângela e Francisca, e sua nora, Aurora. De outro lado, Neno se viu livre de um trabalho formal, onde teria que cumprir um horário fixo todos os dias. Sem ter que se submeter a um patrão, ele ficava desse modo disponível para se dedicar à militância.

Foi, portanto, graças à atividade profissional que Neno pode se dedicar à atividade militante. No entanto, o inverso dessa equação também deve ser levado em conta, já que o anarquista somente poderia ter atuado como jornalista profissional, pelo menos nestes jornais, porque era um jornalista militante, cuja escrita estava fundamentalmente voltada para o debate político. A fronteira, se existente, entre o profissional e o militante na atividade jornalística de Neno é atravessada por uma linha bastante tênue, que não nos permite demarcar claramente onde começa um e termina o outro. Neno não viveu apenas do jornalismo, mas, igualmente, viveu para o jornalismo.

A escolha de uma carta para problematizar essa questão não foi ingênua. Embora as experiências individuais e coletivas forneçam a base auto-referencial para a realização e exercício de sua escrita jornalística é interessante notar que Neno deixa entrever seu eu apenas na dimensão pública e quase nunca na sua dimensão privada. Assim sendo, suas cartas, por constituírem uma forma de escrita de si, me fornecem uma chave mais adequada para abrir essas portas outrora fechadas, permitindo que seja possível adentrar o domínio privado da sua história de vida, domínio que se apresentava até então, em maior ou menor medida, imperscrutável.

A escrita de cartas se consolida no ocidente junto com a modernidade, onde se evidencia um maior grau de autonomização do individuo frente à sociedade. Essa autonomização irá resultar na construção de novos códigos de intimidade, permitindo mais espontaneidade nas formas de expressão dos sentimentos entre os indivíduos nas suas relações sociais. Segundo Gomes:

Tal como outras práticas de si, a correspondência constitui, simultaneamente, o sujeito e seu texto. Mas, diferentemente das demais, ela possui um destinatário específico com quem ele vai manter relações. Ela implica uma interlocução, uma troca, sendo um jogo interativo entre quem escreve e quem lê[7].

Sob essa ótica, escrever cartas é mostrar-se a si e ao outro, permitindo uma forma de relação íntima entre destinatário e remetente. Nesse sentido, há sempre uma razão para a escrita da carta: informar, pedir, agradecer, desabafar, rememorar, consolar, etc. No nosso caso, o objetivo da correspondência entre Neno Vasco e Edgar Leuenroth era alusivo a questões militantes e profissionais. A princípio, essa relação não sugere qualquer relação de intimidade entre remetente e destinatário, porém na medida em que avançarmos na discussão vermos surgir um Neno Vasco diferente daquele que aparece publicamente no jornal.

Neno Vasco não viveu apenas do jornalismo, mas, igualmente, viveu para o jornalismo conforme já assinalamos, porém, quais foram os desdobramentos dessa sua escolha durante seu trajeto pela Porta da Europa[8]? Do ponto de vista militante, a atividade jornalística conferiu a Neno um papel singular na imprensa anarquista e operária dos dois respectivos países, permitindo que ele pudesse contribuir de maneira mais dinâmica e eficaz. Dono de uma prosa invulgar, sua prática jornalística se exprimiu e se imprimiu por meio da autoria de peças teatrais, traduções de romances, contos, poesias, ensaios e crônicas, onde se evidencia o seu ativismo no vasto horizonte abarcado pela ação e propaganda anarquistas: na criação de uma estratégia sindical de ação direta, no engajamento com a causa anticlerical, na construção de uma tribuna antimilitarista, na preocupação com a emancipação feminina, na luta pela pedagogia libertária, entre outras facetas que colaboraram, e muito, para conferir o tom anarquista que caracterizou o movimento operário do lado de cá e do lado de lá do Atlântico, nas primeiras décadas do século XX.

Do ponto de vista profissional, a atividade jornalística não trouxe a Neno a estabilidade financeira, tal como ele esperava. Desse modo, os problemas financeiros continuavam a crescer e a perturbá-lo. Na correspondência de Neno Vasco e Edgar Leuenroth, escrupulosamente mantida ao longo de cinco anos, vemos o cronista queixar-se constantemente ao diretor d A Lanterna sobre suas dificuldades financeiras. Na realidade, O Diário de Porto Alegre saldou apenas a dívida referente ao primeiro mês e A Guerra Social, teve que fechar mesmo antes de começar a remunerá-lo. D A Voz do Trabalhador, nada poderia esperar, já que colaborava gratuitamente, do mesmo modo com que fazia com A Sementeira, A Aurora e A Terra Livre. Restava, assim, somente o dinheiro recebido d A Lanterna, de onde ele tirava o seu sustento.

Assim, quando os 30 fortes[9] mensais enviados por Leuenroth pelo trabalho prestado na folha anticlerical chegavam a suas mãos, ele tinha que fazer malabarismos para pagar as dívidas: dava um pouco a este, um pouco aquele e pedia paciência a outro e ficava sem um vintém [10]. Com o senhorio, no entanto, não era possível negociar. Em virtude da Lei do Inquilinato, o aluguel da casa deveria ser pago impreterivelmente no primeiro dia de cada mês. Por isso, Neno recomendava a Leuenroth para que todo o mês mandasse sem falta:

[...] na segunda feira do mês [...] um terço (do pagamento) para que o dinheiro chegue aqui no fim do mês e eu possa pagar a verba mais importante e que não espera [...] Imagina que amanhã não tenho um vintém e nem a quem pedir e torturo-me a dar voltas ao miolo e a pensar no que fará o senhorio...[11].

Como confessa o anarquista, às vezes lhe faltava até mesmo dinheiro para poder arcar com as despesas mais essenciais, tais como alimentação, vestuário e moradia. Nessas circunstâncias de extrema penúria, o crédito parecia ser a melhor saída a curto prazo, porém a longo, percebia que não, já que chegavam até mesmo a cobrar o dobro do valor. Em virtude disso, se recebesse num dia já ficava sem um vintém por causa dos atrasos. Por isso, não se atrevia a gastar com nada mais, mesmo que sobrasse, temendo que amanhã lhe faltasse algo.

Disso resultava que Neno Vasco mal podia sair de casa sem correr o risco de encontrar alguns dos seus credores. Era o padeiro, o leiteiro, o talheiro... que ficavam a rosnar de impaciência em sua porta, incomodando ora ele, ora os demais membros de sua família, por causa da demora nos pagamentos.

É uma tortura absorvente, deprimente, bestializante, desabafou ele. Isto de viver, não só na penúria constante, mas ainda em pleno regime de empréstimos e de expedientes, de dúvidas e de queixas, aniquila-me, tira-me todo o gosto de trabalhar e de viver, avilta-me. Não é perder a dignidade o ter de passar, aos olhos do amigo, que não faz outra coisa senão recorrer a este e aquele e amiúde tem de faltar às promessas de restituição em determinado prazo?[12].

Nem mesmo o trabalho prestado para A Lanterna poderia ser tomado com fonte segura de rendimento, já que a perseguição política sofrida pela folha anticlerical impedia que Leuenroth mantivesse a periodicidade necessária aos pagamentos. Neno temia que as jornadas de protesto encampadas pelo referido periódico, no início dos anos de 1910, contra o Orfanato Cristovam Colombo, por causa do desaparecimento da pequena Idalina, pudessem render a Leuenroth sua prisão. Sem saber ao certo o que estava acontecendo, Neno lhe escreveu uma missiva temendo que o fato já houvesse se concretizado:

Esta semana de São Paulo só recebi uma carta de Victorino Correa dizendo-me que estavas ameaçado de prisão. Como não recebi jornais e nem carta tua, estou inquieto por ti e por mim... Porque estou sem nenhum vintém em caixa e tenho dividas urgentes a pagar e empréstimos a restituir[13].

Os constantes reveses financeiros pelos quais o periódico passava constituíam outro impeditivo para que o diretor d A Lanterna colocasse em dia o pagamento do cronista. Mesmo tendo um número significativo de assinantes, aceitando anúncios e tendo sido transformada, em um curto período, em diário durante o ano de 1913[14], a folha anticlerical não conseguia se estabilizar do ponto de vista econômico. Ao que parece, os impactos da Grande Guerra de 1914-1918 incidiram diretamente sobre a circulação do referido periódico, cada vez mais irregular, principalmente a partir do primeiro ano do conflito bélico, por causa do progressivo encarecimento dos materiais necessários para a sua impressão.

Escuso de te dizer que muito me penaliza a tua situação, assim como da Lanterna, não só pelas desgraçadas conseqüências que daí me advêm, mas porque me afeiçoei ao jornal e acho-o muito útil [...] Os meus problemas de dinheiro põem-te em embaraço e só sacrificando o jornal podes enviar-me pequenas quantias. Mas, na situação em que estou o que eu ei de fazer?[15].

Mas, na situação em que estou o que eu ei de fazer? Frase sugestiva, que serve de ponto de partida para interrogarmos, a um só tempo, quais eram as opções e quais foram as escolhas feitas pelo anarquista. Segundo o próprio Neno, a situação d A Lanterna o colocava em face do seguinte dilema: abandonar a propaganda (o que seria doloroso) ou as idéias (o que seria impossível) [16]. O caráter pouco claro contido nessas expressões nos força a inquirir cada uma delas.

Quando Neno fala em abandonar a propaganda , provavelmente está se remetendo à possibilidade real de ter que abandonar a profissão de jornalista para voltar à profissão de tradutor, ofício que exerceu durante os dez anos em que viveu no Brasil. Para além de dolorosa, essa alternativa não mudava em nada sua situação, haja vista que se voltasse para um escritório receberia 30 fortes mensais, mesmo valor que recebia pelo trabalho que vinha prestando para A Lanterna[17]. Uma vez consumada, Neno acreditava que ela o afastaria quase por completo da propaganda, já que as responsabilidades enquanto empregado formal lhe subtrairiam o tempo necessário para se dedicar à militância[18]. Já quando fala em abandonar as idéias , Neno não traz muito elementos nas cartas que trocava com Leuenroth. A despeito disso, arrisco a hipótese de que ele estaria aludindo à possibilidade um tanto quanto vaga de fazer valer o seu diploma de Direito em Coimbra e atuar como advogado. Trago à tona essa hipótese pela reação de Neno, que julga impossível essa alternativa.

O que, entretanto, impossibilitava Neno Vasco de abandonar o jornalismo, profissão pela qual era parcamente remunerado e mal conseguia sobreviver financeiramente, e abraçar a advocacia, ocupação que poderia lhe trazer proventos mais generosos e livrá-lo das dificuldades econômicas? Ao contrário do que poderia parecer em um primeiro momento, as constantes queixas feitas pelo cronista ao diretor d A Lanterna sobre os pagamentos atrasados poderiam nos levar a acreditar que Neno se preocupava demasiadamente com o dinheiro. Destaco, porém, que Neno nunca aspirou a fortes remunerações quando procurou se estabilizar financeiramente enquanto jornalista, se assim não fosse ele teria exercido o ofício de advogado desde quando se formou. Neno nunca o fez porque acreditava que o exercício simultâneo da militância anarquista e do ofício de advogado lhe soava como algo irreconciliável.

Tudo parecia as opor, não somente porque o advogado ajuda a reforçar leis que defendem a classe dominante contra a classe dominada, mas, igualmente, porque o próprio advogado, pelos salários que recebe, acaba se tornando um membro da própria classe dominante. Por um lado, se a opção em trabalhar como jornalista acabava colocando Neno em uma situação que, do ponto de vista econômico, estava longe de ser satisfatória. Por outro lado, ela permitia a ele manter a coerência que possuía com os ideais que acreditava.

Viver do e para o jornalismo: as consequências da intrépida decisão de Neno Vasco

Em outubro de 1916, em razão do agravamento dos motivos já expostos, A Lanterna deixava de circular, encerrando a sua segunda fase. Em junho de 1917, parte do grupo responsável pela edição e publicação da folha anticlerical encetou uma nova iniciativa, ainda tendo à testa Edgard Leuenroth: a publicação do jornal A Plebe, cuja fisionomia se aparentava à d A Lanterna. Como é possível evidenciar mediante a leitura do editorial constante em seu primeiro número[19], esta folha era continuadora direta d A Lanterna, se diferenciando talvez um pouco em virtude de suas prioridades, mais voltadas para a luta dos trabalhadores, que se encontrava em ascenso naquela conjuntura[20].

Dentre os membros que o animavam, se encontrava o nosso biografado, preenchendo a mesma função outrora ocupada em A Lanterna, só que agora colaborando gratuitamente. No entanto, a periodicidade dessa colaboração era bastante irregular. Uma vez que, com o fechamento d A Lanterna, Neno se viu obrigado a voltar a trabalhar como tradutor num escritório, tendo que deixar um pouco de lado a militância.

Às voltas com os mesmos problemas financeiros, ele e grande parte do seu núcleo familiar se via, agora, acometido por uma terrível moléstia: a tuberculose. A primeira a ser furtada do convívio da família Moscoso e Vasconcelos foi Mercedes, sua esposa, em 26 de janeiro de 1920. Na nota Os que nos deixam , os articulistas d A Plebe noticiavam o infausto acontecido:

Por notícias chegadas de Lisboa soubemos a triste notícia da morte da boa e dedicada companheira Mercedes Moscoso Vasconcelos, extremosa esposa do nosso estimado camarada Neno Vasco e mãe dedicada de três interessantes crianças, Ciro, Fantina e Ondina. A saudosa senhora deixou de existir [...] após padecimentos intensos, minada pela tuberculose que há três anos a fazia sofrer atrozmente [...] Ao nosso querido companheiro Neno Vasco, alta inteligência a serviço de um grande coração, e a seus queridos filhos [...] a expressão dos nossos mais sentidos pêsames[21].

A pobreza, a dor pela morte de sua esposa e, somando-se a isso, um histórico já existente de doenças pulmonares, tornaram Neno Vasco a próxima vítima da tuberculose. Por indicação médica, ele foi obrigado a abandonar o emprego e a se internar num asilo na cidade de São Romão do Coronado, no Minho, onde, antes dele, ficara Mercedes, para poder se curar da doença. Quando da sua internação, os articulistas d A Plebe iniciaram uma campanha que possuía a finalidade de angariar fundos para o seu tratamento médico e as despesas financeiras do seu núcleo familiar. Na referida nota afirmavam que as subscrições já se encontravam abertas e apelavam para que todos os companheiros colaborassem com essa iniciativa prática para ajudá-lo, se justificando da seguinte maneira:

Este nosso camarada que aqui viveu tantos anos e que aqui desenvolveu tanta atividade fundando e redigindo O Amigo do Povo, A Terra Livre e a revista Aurora acha-se em Lisboa em [má] situação econômica e especialmente de saúde [...] Nós todos que com ele aprendemos e convivemos e todos aqueles que tem bebido em seus escritos notáveis, conselhos e observações de tática e de doutrina [...] temos o dever iniludível de não o abandonar neste transe difícil e doloroso de sua vida, indo em auxilio duma criatura que é um dos espíritos mais sensatos, mais dedicados [...] de que o anarquismo pode com razão se orgulhar de produzir e de possuir em suas fileiras[22].

Pouco mais de dois meses após a publicação dessa nota, outro jornal, o português A Batalha, noticiava a morte de Neno, ocorrida em 15 de setembro de 1920. Tampouco a tuberculose pouparia alguns anos mais tarde a vida de dois de seus filhos: Ciro e Fantina, tendo sobrevivido apenas Ondina. Nos vários necrológios escritos no periódico aludido, anarquistas e sindicalistas se revezavam para render uma última homenagem a Neno:

Mental e moralmente ele foi - tanto quanto é possível dentro das condições deste meio maldito em que somos forçados a viver - um anarquista de fato e pelo fato. Pelo fato sim, porque Neno Vasco não se limitou a divulgar teorias anarquistas, mas esforçou-se por as praticar, por as propagar também pela ação e pelo exemplo [...]. Compreendendo que, sendo essa sociedade um charco em que a lama é constituída pelos próprios homens, a forma de a limpar é extraindo-lhe essa lama, ele contribuiu para essa limpeza, saindo ele próprio do charco. Compreendendo que se o homem é o produto do meio, e o meio é a conseqüência do que são os homens, ele preferiu modificar-se a si próprio para modificar o meio, a pôr-se a espera que o meio o transformasse a ele[23].

Por ser um anarquista de fato e pelo fato, Neno se recusava a construir sua subjetividade enquanto militante que propaga a teoria sem praticá-la. Talvez isso ajude a entender grande parte das dificuldades financeiras por ele enfrentadas ao longo da vida em virtude da sua opção militante, que o afastou do exercício do ofício de advogado, que poderia ter lhe rendido proventos mais satisfatórios.

Conclusão

Apesar de Neno Vasco ter compartilhado o mesmo destino do escritor português Silva Pinto[24], que morreu miseravelmente e foi miseravelmente enterrado , parece que em vida o mesmo não ocorreu. Ao contrário do que se passou com o seu conterrâneo, parece que a personalidade do anarquista não se desconjuntou e se descoloriu na mesquinha tarefa de comentar dia-a-dia [...] os raquíticos e fastidiosos sucessos do ramerrão político e social [...] pela obrigação cotidiana do ganha pão . Pois, o árido amargor desta tarefa parece ter sido compensado pelo sopro vivificante das ideias largas e modernas que o anarquismo trouxe, o que permitiu a ele manter-se otimista em face dos desafios que lhe eram colocados: O pessimismo desalentado me soa mal e o azedume me incomoda, só amo os hinos à vida [25], escreveu ele.

Cartas

Neno Vasco a Edgard Leuenroth 1911-1915.

Jornais

A Batalha Lisboa, 1919-1927.

A Plebe, São Paulo, 19017-1919

A Sementeira, Lisboa, 1908-1913

Referencias

FRANKIW, Carlos Eduardo. Blásfemos e sonhadores: ideologia, utopia e sociabilidades nas campanhas anarquistas em A Lanterna (1909-1916). Dissertação (Mestrado em História). USP, São Paulo, 2009.

LOPREATO, Christina da Silva Roquette. O Espírito da Revolta: a greve geral anarquista de 1917. São Paulo: Annablume, 2000.

SAMIS, Alexandre. Minha pátria é o mundo inteiro: Neno Vasco, anarquismo e sindicalismo revolucionário em dois mundos. Lisboa: Letra Livre, 2009.

SILVA, Thiago Lemos. Fragmentos biográficos de um anarquista na Porta da Europa: a escrita cronística como escrita de si em Neno Vasco. 2012. Dissertação (Mestrado em História) UFU. Uberlândia, 2012.

VASCO, Neno. Da Porta da Europa. Lisboa: Biblioteca Libertas, 1913.

* Graduado em História pelo Unipam (Centro Universitário de Patos de Minas) e mestre em História pela UFU (Universidade Federal de Uberlândia).

[1] Neno Vasco, pseudônimo de Gregório Nazianzeno Moreira de Queirós Vasconcelos, nasceu em Penafiel, norte de Portugal, em 09 de maio de 1878 e faleceu em 15 de setembro de 1920, em São Romão do Coronado perto do Porto. Neno Vasco passou a utilizar esse pseudônimo somente após o seu ingresso no movimento anarquista e operário em Portugal, por volta de 1900. Antes, atendia pelo seu nome de batismo. Para saber mais sobre a Biografia de Neno, ver: SAMIS, Alexandre. Minha pátria é o mundo inteiro: Neno Vasco, anarquismo e sindicalismo revolucionário em dois mundos. Lisboa: Letra Livre, 2009; SILVA, Thiago Lemos. Fragmentos biográficos de um anarquista na Porta da Europa: a escrita cronística como escrita de si em Neno Vasco. 2012. Dissertação (Mestrado em História) UFU. Uberlândia, 2012.

[2] VASCO, Neno. O movimento anarquista no Brasil. A Sementeira, Lisboa, maio de 1911.

[3]Apesar de todo material ser enviado para Leuenroth, ele não era previamente produzido para ser publicado somente n A Lanterna, mas, sim nos outros jornais supracitados.

[4]SAMIS, Alexandre, op.cit, p. 241.

[5]CASTRO Gomes, Ângela de. Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo. In:______. (org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de. Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 14-15.

[6]Carta de Neno Vasco a Edgard Leunroth, 24/09/1911.

[7]CASTRO Gomes, Ângela de, , op.cit, p. 19.

[8]Faço alusão aqui ao título do livro Da Porta da Europa, publicado em 1913, com as crônicas do período que vai de 1911 a 1912. Este livro trata-se de uma seleção que se concentrou nos principais órgãos da imprensa anarquista e operária do Brasil e de Portugal, pelos quais circulou boa parte da produção literária de Neno Vasco no período posterior a sua travessia para o outro lado do Atlântico. O roteiro inicial do livro começa com o jornal A Lanterna (1911-1916), de São Paulo. Do Rio de Janeiro e de Porto Alegre, temos as crônicas publicadas respectivamente nos jornais A Guerra Social (1911-1912) e O Diário (1909-1912). As crônicas publicadas nas revistas A Aurora (1910-1920), do Porto, e A Sementeira (1908-1913) de Lisboa fecham esse roteiro.

[9]Moeda portuguesa.

[10]Carta de Neno Vasco a Edgard Leunroth, 15/09/1912.

[11]Carta de Neno Vasco a Edgard Leunroth, 31/031912.

[12]Carta de Neno Vasco a Edgard Leunroth, 27/10/1913.

[13]Carta de Neno Vasco a Edgard Leunroth, 03/07/1912.

[14] Ver: FRANKIW, Carlos Eduardo. Blásfemos e sonhadores: ideologia, utopia e sociabilidades nas campanhas anarquistas em A Lanterna (1909-1916). Dissertação (Mestrado em História). USP, São Paulo, 2009.

[15]Carta de Neno Vasco a Edgard Leunroth, 24/03/1915.

[16]Carta de Neno Vasco a Edgard Leunroth, 29/03/1914.

[17]Carta de Neno Vasco a Edgard Leunroth, 27/10/1913.

[18]Carta de Neno Vasco a Edgard Leunroth, 27/10/1913.

[19] A que viemos. A Plebe. São Paulo, 09/06/1917.

[20] Ver: LOPREATO, Christina da Silva Roquette. O Espírito da Revolta: a greve geral anarquista de 1917. São Paulo: Annablume, 2000.

[21] Os que nos deixam. A Plebe. São Paulo, 28/02/1920.

[22] Neno Vasco. A Plebe. São Paulo, 03/07/1920.

[23]Um anarquista de fato e pelo fato.A Batalha. Lisboa, 17/09/1920.

[24]António José da Silva Pinto (Lisboa, 14 de abril de 1848- Lisboa, 4 de novembro de 1911), foi um escritor português, crítico literário, ensaísta, dramaturgo naturalista, contemporâneo de Neno. Quando do seu falecimento ele devotou-lhe uma crônica fazendo um pequeno balanço da sua vida e obra. VASCO, Neno. Da Porta da Europa. Lisboa: Biblioteca Libertas, 1913, p. 109.

[25] VASCO, Neno. Da Porta da Europa. Lisboa: Biblioteca Libertas, 1913, p. 109.




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