Ganhadora do Oscar faz documentário sobre igualdade racial no Brasil
Em parceria com Joel Zito Araújo, norte-americana Megan Mylan doa renda de "Raça" para entidade do setor; leia entrevista ao iG
Luísa Pécora , iG São Paulo
A carreira da documentarista norte-americana Megan Mylan sempre esteve ligada a temas de relevância social. No elogiado "Lost Boys of Sudan", ela retratou as dificuldades de refugiados sudaneses nos EUA; com "Smile Pinki", sobre uma criança indiana pobre em busca de cirurgia para lábio leporino, ganhou em 2009 o Oscar de melhor curta de documentário; "Raça", que estreou na sexta-feira (17) no Brasil, acompanha o dia a dia de três personagens para discutir se de fato existe igualdade racial no País.
"Raça" significa uma espécie de volta de Mylan ao lugar onde descobriu a paixão pelo documentário e pela mobilização social através da arte. Hoje aos 43 anos, ela tinha 23 e acabara de sair da faculdade de Relações Internacionais quando decidiu vir morar no Brasil. "Foi uma daquelas experiências que acontecem quando a vida está buscando uma direção e te formam completamente", afirma, em entrevista ao iG . "Naquela época, pós-ditadura, havia muita criatividade nos movimentos sociais, muito esperança e otimismo de que o País podia ser outro."
Renata Duarte
Joel Zito Araújo e Megan Mylan na pré-estreia de "Raça" em São Paulo
Mylan teve a ideia de vir ao Brasil no início dos anos 1990, quando trabalhava em Washington na ONG Ashoka, voltada ao empreendedorismo social. Conhecia pessoas de todo o mundo e sempre gostava mais dos brasileiros, sem saber o motivo.Tentou convencer seu chefe a enviá-la ao País e, quando não conseguiu, pediu demissão, comprou sua própria passagem e bateu à porta da sede da organização no Rio de Janeiro.
Contratada, passou cerca de dois anos atuando no Brasil. "Conheci o País por este trabalho de educação, direitos humanos e programas sociais", explica Mylan, que decidiu mudar de área ao conhecer documentaristas durante um congresso no Rio. "Senti que encontrei minha tribo e voltei aos EUA para estudar cinema."
"Raça" constrói sua narrativa com filmagens realizadas durante 2005 e 2011, durante momentos decisivos na vida de três personagens: o senador Paulo Paim (PT-SP), que busca sancionar a lei do Estatuto da Igualdade Racial no Congresso; o cantor e empresário Netinho de Paula, durante a tentativa de implantar a TV da Gente, com maioria de profissionais negros; e Miúda dos Santos, neta de africanos escravizados que luta pelo respeito ao território da Comunidade Quilombola de Linharinho, no Espírito Santo.
A renda das bilheterias destinadas aos cineastas será doada ao Fundo Baobá, entidade voltada à promoção de igualdade racial. Na entrevista a seguir, Mylan fala sobre a escolha dos personagens, as diferenças entre os movimentos negros de EUA e Brasil e a crença na capacidade de transformação social a partir do documentário. "Me irrita a ideia de as pessoas saírem do cinema sem ter ao menos um site para saber mais sobre o assunto."
iG: Como surgiu o projeto do documentário "Raça"?
Megan Mylan: Conheci o Joel em 1996 em um congresso, ficamos amigos e trocamos ideias durante anos. Desde a época em que morei no Brasil a questão racial é algo que me interessa e que sempre tenho dificuldade de explicar para quem não é daqui. Mesmo entre os brasileiros há opiniões muito diferentes, e eu gosto das coisas difíceis. Quando soube do debate sobre as cotas nas universidades, percebi que o assunto estava ficando quente e liguei para o Joel, para saber quem estava fazendo um filme sobre isso. Não achamos ninguém, então decidimos fazer.
iG: Como o longa mudou das cotas para um retrato maior da busca por igualdade racial no Brasil?
Mylan: Já tinha definido que iria trabalhar com cinema direto, que é aquele em que você cola em uma personagem e segue sua trajetória. Mas sentimos que tínhamos perdido o momento do debate das cotas, que estávamos atrasados. Vi uma notícia sobre a TV da Gente e tive a ideia de seguir os jornalistas em suas reportagens, e assim acompanhar vários aspectos da discussão racial. Quando começamos a desenvolver o filme, decidimos ampliar e ter três personagens, porque sentimos que o País estava um momento de realmente conversar sobre o assunto, e não só dentro do movimento negro. Queríamos que isso ficasse documentado.
iG: Há alguma tática para fazer com que os personagens fiquem à vontade e esqueçam das câmeras?
Mylan: Falo muito pouco, não faço perguntas, mas olho, sorrio, estou sempre presente. Sou uma presença discreta. Também é preciso trabalhar com equipes pequenas, com pessoas que saibam como estar ali sem atrapalhar a situação. Não tento ser uma mosca na parede, mas procuro criar uma relação de confiança. Digo a eles que têm o direito de dizer não. Se não dizem não, significa que tenho o direito de continuar. Passando esse controle para os personagens, eles se sentem mais relaxados e raramente dizem não.
iG: Como foi a seleção de personagens?
Mylan: Essa é parte mais difícil, porque para o cinema direto dar certo, é preciso acertar o personagem. Tem de ser alguém que vá esquecer da câmera um pouco, e que esteja em um momento decisivo de sua vida, mas que também represente algo maior. Queríamos mostrar maneiras diferentes de lutar, então pensamos em três níveis: um político, alguém da mídia e uma quilombola, que seria a ligação mais direta com a história afro-brasileira. Era importante que as pessoas tivessem personalidades e atuações diferentes. Se todo mundo fala no mesmo volume, cansa.
iG: Houve alguma hesitação quanto a escolher um político (o senador Paulo Paim) como personagem?
Mylan: Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos é fácil dizer que todos os políticos são corruptos. E existem muitos, mas também há políticos eficazes, pessoas lutando durante anos e com todo o coração. A gente não fez, não tinha que fazer e não faria nenhuma "lavagem" do personagem. Temos cerca de uma hora de material gravado para cada minuto de filme e em todas as gravações o Paim era daquele jeito. Ele sabe que tem de aceitar derrotas, que para ter sucesso dentro da realidade do Congresso precisa fazer compromissos com quem não quer jantar. Isso é representar o Brasil. Então não tivemos grandes preocupações. O que aconteceu foi que, em alguns momentos, tivemos de lutar pelo nosso acesso e grudar nele para entrar nos lugares.
iG: E quanto ao Netinho? Ele, além de político, é uma celebridade bastante controversa.
Mylan: Obviamente a gente sabia que ele tinha dificuldades pessoais, sabíamos do caso da violência contra a mulher. A coisa do "Pânico" (quando ele agrediu um repórter do programa da RedeTV) aconteceu quando a filmagem já tinha começado, mas quando não estávamos com ele. Houve versões do documentário nas quais isso entrou. Mas, no fim, estamos falando sobre três personagens e a luta deles pela igualdade social. Então não fazia parte do que estávamos filmando. Mas há dois momentos em que o filme dá sinais sobre esses acontecimentos. Um deles é durante o intervalo de uma entrevista de rádio, quando o Netinho começa a comentar a dificuldade de ter tantas mulheres. Achei importante (ter a cena no filme) para mostrar que ele também tem algumas complicações na vida pessoal.
O outro é no final, quando ele faz uma propaganda política dizendo que todo mundo o conhece, seus erros e acertos. Estamos abertos à critica de que delimitamos às explicações ao recado que ele queria dar, porque nos dois momentos é ele quem fala. Mas o filme é isso mesmo: a perspectiva dos personagens. Onde os personagens vão, a gente vai. Como mulher, a última coisa que quero é ver alguém bater em outra. E nem sei os detalhes do que rolou, qual foi a decisão final. Mas sei que muita gente, inclusive feministas, reconhece que ele disse ter cometido um erro. Acredito que temos de perdoar as pessoas quando elas aceitam a responsabilidade. E acho que ele tem muito a oferecer.
iG: As falas dele não parecem ensaiadas demais?
Mylan: Ele é um showman. É a maneira dele, mas acho que funciona. Ele tem uma influência muito grande na mídia e leva o discurso da igualdade social a lugares aos quais o Paim e a Miúda não chegam. Mas colocar um personagem em seu documentário não é dizer que se trata da melhor pessoa do mundo. Eles não são heróis, são pessoas reais, com defeitos - e isso é bom. Ter um anjo no filme não me interessa.
iG: Parte da renda do filme será doada para o Baobá, mesmo sendo uma produção independente. Como foi possível fazer esse acordo? Quem pagou o longa?
Mylan: Um terço do filme foi financiado pela Petrobras e o resto pela Fundação Ford e a Fundação Kellogg, nos Estados Unidos. Vamos doar para a Baobá o dinheiro do ingresso que seria nossa, minha e do Joel. Como a renda é cortada entre várias partes - cineastas, distribuidor, sala etc. -, não fica tanto dinheiro. Vai haver um momento de ganhar com o filme, como na venda para a televisão, e é necessário porque ainda estamos com dívidas. Mas vemos nosso trabalho menos como produto e mais como arte, e também como um modo de mobilização social.
iG: Essa preocupação com a mobilização social está presente em toda a sua carreira.
Mylan: Com "Lost Boys of Sudan", aprendi que quando as pessoas estão na sala de cinema e você está mexendo com a cabeça delas, tem apenas um momento depois do filme para pegar aquela energia e fazer algo de bom. O documentário era sobre refugiados sudaneses nos EUA e falava sobre a dificuldade de conseguirem estudar. Depois de assistir, muita gente queria fazer doação de bolsas de estudos, e em pouco tempo, meio informalmente, conseguimos quase US$ 2 milhões. Isso me mostrou o poder do documentário. Estou sempre tentando maximixar o filme. Me irrita a ideia de as pessoas saírem do cinema sem ter ao menos um site para saber mais sobre o assunto. Mas também não me considero uma cineasta ativista. Amo os documentários que não têm lado social óbvio, filmes sobre música ou corridas de carro por exemplo.
Assista ao trailer de "Raça":
iG: Nos EUA, o movimento negro é historicamente muito forte. Como compara a situação no seu país e no Brasil?
Mylan: É diferente porque muito mais escravos foram forçados a vir para o Brasil e há muito mais negros aqui do que nos EUA. Além disso, nós tivemos a abolição da escravidão e, depois, toda uma época de segregação formal que ofereceu um foco de luta. Era uma coisa oficial, aberta, muito definida: você não pode tomar água deste bebedouro, você não pode sentar neste lugar do ônibus. A mesma coisa aconteceu na África do Sul. No Brasil há essa mistura muito grande, o que por um lado é bom, mas, ao mesmo tempo dificulta a conversa. Fica mais fácil dizer que não, que está tudo bem.
iG: No momento em que vocês filmavam, Barack Obama tomou posse como primeiro presidente negro dos EUA. Isso representou algo para o filme?
Mylan: Acho que Obama é um sinal de como a ação afirmativa deu certo nos EUA. Temos muito a avançar. Em escritórios de advocacia, por exemplo, você ainda vai encontrar muito mais brancos. No Senado, a mesma coisa. Mas entre os que chegaram lá, a maioria teve alguma ajuda em algum momento de ação afirmativa. Obama é fruto disso e a prova de que faz diferença. Adoro pensar no poder da imagem de Obama para um jovem negro que liga a televisão. Por mais que digam que você pode ser quem quiser, é quando vê alguém que parece com você que aquilo realmente vira uma possibilidade.
iG: É muito diferente fazer cinema no Brasil e nos EUA?
Mylan: Fiquei surpresa em como foi difícil captar qualquer dinheiro para este filme no Brasil. Nos EUA também é muito difícil fazer documentário, mas aqui é mais. Tentamos empresas, editais, mas só conseguimos o dinheiro da Petrobras. Dizem que há muito dinheiro público para apoiar as artes e a igualdade social, mas não conseguimos nenhum. Além disso, a televisão aqui não apoia tanto o documentário como nos EUA, no qual emissoras como a PBS e a HBO têm um papel muito grande no financiamento. Mas acho que vejo mais semelhanças do que diferenças. Os cineastas têm muito em comum.
iG: Ganhar o Oscar facilitou a viabilização dos seus filmes?
Mylan: Acho que ganhar o Oscar é como fazer uma boa universidade: uma maneira rápida de as pessoas respeitarem o seu trabalho, mesmo que às vezes a Academia escolha filmes fracos. Porque, no fim, é um prêmio que todo mundo conhece. Mas não muda completamente. As pessoas retornam minha ligação, mas não assinam o cheque mais rápido.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
opinião e a liberdade de expressão