sábado, 11 de maio de 2013

Mãe, Mulher ou Pessoa

É preciso ter a delicadeza ao tratar o drama do aborto. Sobretudo quando ouvimos depoimentos de mulheres que abortaram em condições chocantes e violentas, especialmente as meninas. Os depoimentos de todas as mulheres revelam que, em sua maioria, os abortos são uma necessidade, raramente uma liberdade. Mas, aqui, quero voltar minha atenção apenas para a situação das meninas entre 13 e 18 anos.

Uma das características da sociedade capitalista de hoje é tentar retardar o quanto possível a entrada dos jovens no mercado de trabalho. Esse retardamento pode ser medido tanto pelo prolongamento da permanência na escola (para a classe média) quanto pelos salários extremamente baixos que são oferecidos aos menores (para as classes populares). Ao mesmo tempo, a declaração de maioridade costuma coincidir com um período de ausência de estabilidade no emprego, de ausência de salário suficiente para a sobrevivência (no caso das meninas das classes populares) e de busca de trabalho (para a maioria das meninas de classe média).

Essa realidade reforça a ideia, corrente em nossa sociedade, de que é preciso esperar condições mínimas de segurança econômica para estabelecer uma relação amorosa duradoura (identificada com o casamento) e para a procriação (também depende do casamento).

Tais exigências contrariam a sexualidade dos jovens e, para garantir a obediência a elas, a sociedade, através da ideologia, valoriza a virgindade, a relação amorosa casta e oferece substitutivos (as prostitutas)  para os meninos. As meninas não oferece nada, pois se acredita que elas não têm desejos sexuais. A confirmação desse controle social pode ser vista ainda na marginalização a que estão sujeitas as meninas que abortam e as mães solteiras.

Par as meninas que estão mais ou menos entre 13 e 18 anos, o aborto encarna uma realidade crua: na maioria das vezes, ele não tem como se responsabilizar pela maternidade, desde a própria gravidez, o pré natal, o parto, até a criação de uma criança. A não ser que ocorra o de sempre o casamento obrigatório, cujos desastres se farão sentir logo depois, além da vergonha que essa obrigação causa num meio social que atribui importância fundamental ao casamento da virgem.

E do ponto de vista pessoal, as meninas não suportam as pressões sociais, as reprovações religiosas e morais da maternidade fora do casamento, nem desejam a humilhação do casamento obrigatório. Pode -se mesmo afirmar que a própria gravidez inesperada possui um sentido preciso, que é o de revelar que as meninas não tomam anticoncepcionais porque não são prostitutas prontas a relações sexuais "sem amor". Estranhamente, portanto a gravidez inesperada das meninas significa ao mesmo tempo pureza e pecado.

Em casos excepcionais, sobretudo na alta classe média e na burguesia, as famílias podem aceitar com naturalidade tanto a necessidade do aborto quanto a maternidade e socorrem as meninas em ambos casos. Mas em geral as meninas abortam porque estão aterrorizadas com a própria gravidez, enquanto algo físico; porque estão aterrorizadas com a ideia de criar filhos sem condições para fazê-lo ( seja porque foram abandonadas pelos parceiros, seja também porque estes também são muito jovens e não tem como arcar com a paternidade); e porque estão aterrorizadas com a punição que desabarão sobre elas.

Por não terem aguardado o casamento, são marcadas como imorais, pervertidas eanti-sociais. Se estão na escola, são expulsas para evitar o "mau exemplo", se estão empregadas, são despedidas porque "mulher grávida é um problema". Frequentemente, se sentem abandonadas pelos parceiros e pela família. É um abandono muito especial porque  não significa necessariamente que são deixadas sozinhas e ao deus-dará, mas sim porque parceiros e famílias são os primeiros a propor imediatamente o aborto, sem maiores indagações e com naturalidade, quando elas ainda não sabem se é isto que realmente desejam.

O abandono é tanto maior quando sua imaginação se povoa com as figuras trágicas das mães solteiras suicídas, das prostitutas, das mulheres estéreis após o aborto mal realizado, figuras desprezadas pela hipocrisia da moral vigente. As meninas que tem formação religiosa são pressionadas em duas direções enlouquecedoras, ao mesmo tempo são acusadas de dois pecados: engravidar sem o matrimônio (o que inclui o pecado da luxúria) e abortar, destruindo uma vida. E o melhor exemplo deste drama é a novela "O Direito de Nascer"

Quando forçadas ao aborto clandestino, qual sua experiência? Se as condições financeiras o permitem e são atendidas por médicos decentes em locais decentes, a preservação de seu físico não chega a compensar o dano psíquico, por causa das condições que apontei acima. Se ao contrário recorrem aos açougueiros, passarão por uma experiência duplamente dramática.
Na verdade e por estranho que pareça, os açougueiros não admitem o aborto e descarregam sobre as mulheres o ódio e o ressentimento pelo ato que, cinicamente, aceitam realizar. Não usam anestésicos, não usam qualquer recurso de assepsia, organizam o local de trabalho de modo a marcar a ilegalidade e a" linha de montagem de atendimento" usam linguagem  agressiva e de baixo calão, fazem propostas sexuais indecentes durante o  próprio aborto. Em suma, transformam o aborto em castigo e punição. Esse valor negativo e repressivo do aborto lhe aparece como procedimento necessário para incriminar as mulheres e, assim" enquadrá-las" de alguma maneira na sociedade.


Marilena de Souza Chauí

professora de filosofia, historiadora de filosofia da USP

natural de Pindorama-SP

Nenhum comentário:

Postar um comentário

opinião e a liberdade de expressão

Manoel Messias Pereira

Manoel Messias Pereira
perfil

Pesquisar este blog

Seguidores

Arquivo do blog