A democracia e suas metamorfoses: ou de como o conteúdo determina a forma
Por Mauro Iasi.
“Quando lerem seus papéis
Pesquisando, dispostos ao assombro
Procurem o Velho e o Novo, pois nosso tempo
E o tempo de nossos filhos
É o tempo das lutas do Novo com o Velho.”
Bertolt Brecht
Realizou-se entre os dias 11 e 13 de novembro de 2013 na UFRJ, o Seminário Internacional Carlos Nelson Coutinho e a renovação do marxismo. Além da justa homenagem a este grande intelectual e militante comunista, o seminário comprovou que sua obra consiste em um importante manancial teórico e político que seguirá exigindo um profundo esforço de pesquisa, reflexão e debates.
Um traço comum nas diversas exposições, que contaram com intelectuais de peso como Guido Liguore (Itália), Michel Löwy (Brasil/França), Francisco Louçã (Portugal), além de importantes pensadores brasileiros no campo do marxismo; foi destacar a unidade do pensamento de Carlos Nelson, como intelectual e militante que pensa o Brasil e o mundo a partir da centralidade da reflexão política. Isso não significa que se trata de um autor monotemático, pelo contrário, chama a atenção à rica e variada obra que procura abarcar temas que vão desde a compreensão da formação social brasileira, o tema da cultura, filosofia política, a questão do Estado, e muitos outros e que se expressão na publicação de seus 13 livros, inumeráveis artigos e uma vasta obra de tradutor e editor.
A centralidade da política significa que esta riqueza de temas sempre era vista na perspectiva de compreensão do Brasil e do mundo atual pelos olhos daqueles que querem transformar a realidade, na perspectiva da classe trabalhadora e da meta socialista e comunista.
Outro aspecto comum apresentado é que no interior da obra fica evidente o lugar de destaque que ocupa o tema da democracia, mais precisamente, a relação da democracia com a meta socialista. Partindo de sua famosa afirmação que não há socialismo sem democracia e chegando à necessidade de afirmar que, tampouco, há democracia sem socialismo, o autor nos chama a atenção de necessidade de pensar estas dimensões de maneira articulada e, concordando ou não com seus argumentos ou algumas conclusões, se tornou referencia incontornável no debate sobre o tema.
Em debate recente que rememorava os 40 anos da experiência de poder popular no Chile, a companheira Virgínia Fontes, que também participou com uma brilhante exposição do seminário aqui descrito, nos provocava afirmando que no caminho de sua luta revolucionária no sentido de mudar a sociedade os trabalhadores devem estar atentos para a dimensão da democracia.
A questão se apresenta pertinente por várias razões que no limite daquele momento do debate não pude desenvolver e utilizo agora este espaço do nosso blog para continuar a conversa.
Ressaltando inicialmente que não se trata de uma concordância integral com a tese de Carlos Nelson sobre o caráter da democracia como valor universal – ou democratização, como o autor afirmava recentemente recuperando Lukács –, Virgínia nos lembrava de que a ordem do capital imperialista nos trás um cenário preocupante de reversão de conquistas e direitos e até mesmo do funcionamento institucional e jurídico marcado pelo arbítrio, a criminalização dos que lutam e um fechamento do chamado espaço democrático. Neste cenário, nos alerta a historiadora fluminense, precisamos refletir sobre o lugar que ocupa em nossa luta a defesa de patamares democráticos, mesmo aqueles da formalidade jurídico institucional.
A questão cabe, em primeiro lugar, porque estávamos discutindo o Chile de Allende, experiência histórica que demonstrou o ponto a que pode chegar a luta de classes no cenário de um funcionamento minimamente democrático das instituições e da vida política, assim como o impacto que o governo da Unidade Popular produziu na luta revolucionária na America Latina e no desenvolvimento de uma cultura revolucionária. Mais ainda pelo contraste que o desfecho do processo chileno permitiu revelar. A derrota do poder popular e a ditadura pinochetista, com o obscurantismo instalado, a total rendição aos ditames do capital monopolista e imperialista, a destruição física de uma geração de combatentes, a luta de classes sem disfarces e sem barreiras institucionais e legais permitindo a prisão de milhares de pessoas, o assassinato, o desaparecimento, a tortura e a retirada das mediações organizativas e políticas através das quais os trabalhadores puderam entrar na cena política com voz própria; nos alerta que as tais garantias democráticas não são uma questão menor a ser considerada.
O quadro conjuntural no Brasil contemporâneo, guardadas as devidas proporções, indica esta preocupação no acirramento da repressão aos movimentos sociais e manifestações de massa, na tentativa de revestir de instrumentos legais mais duros o combate ao dissenso, na institucionalização daquilo que Carlos Nelson, ironicamente, chamava de “americanalhamento” da política, isto é, o jogo da pequena política que ocupa o centro da cena e obscurece o fato de que se trata de “alternativas políticas que não põe em discussão, as reais estruturas de poder econômico e político que vigoraram e vigoram na sociedade brasileira” (Carlos Nelson Coutinho em seu livro Contra a corrente). No mundo vemos uma ordem que naturaliza a intervenção militar, a desestabilização de governos, o assassinato de adversários políticos, como se fosse aspectos técnicos das estruturas de defesa dos Estados Nacionais, coisas da vida.
Tais manifestações indicam, evidentemente, uma reversão, uma inflexão política, que revela que assim como a burguesia se aproximou pragmaticamente da ordem democrática como uma das formas de expressão de sua ordem de acumulação, agora parece indicar que esta forma guarda limitações incomodas que devem ser afastadas para garantir a ordem da exploração.
A ordem burguesa gosta da autoimagem que construiu sobre si mesma como um lento e gradual aperfeiçoamento de instituições sociais e políticas rumo a uma sociedade cada vez mais harmoniosa, na qual os conflitos e contradições não passam de desvios circunscritos a certas circunstâncias especiais que devem ser enfrentados como exceção. Uma breve olhada sobre sua história real nos comprova o contrário. Não apenas a burguesia não era democrática na sua origem (está é uma tese forte de Carlos Nelson e que se apresenta da mesma maneira em Ellen Wood) – como provam os pensamentos dos clássicos do pensamento político burguês como Hobbes e Locke, mas também a sociologia burguesa alemã como em Weber – como sempre manteve uma relação pragmática e utilitária com a ordem democrática, nunca deixando de descartá-la quando esta representava, ainda que potencialmente, um risco ao processo de acumulação de capital.
Prova disso é o nazifascismo, as ditaduras militares na America Latina, a destruição da África, o genocídio nas Filipinas e as ditaduras no oriente médio. Isso nas suas expressões mais dramáticas, mas, de igual maneira, nos chamados países democráticos, com destaque para os EUA. O berço da democracia moderna que embala os mais ternos ideais de Hanna Arendt, é a terra da liberdade que manteve a escravidão, da igualdade que demorou mais de um século para chegar aos direitos civis para os negros, que massacrou os povos indígenas, que teve que destruir pela violência a representação e a luta sindical autônoma, que se funda em uma forma política anunciada pelo O federalista de seus pais fundadores (Hamilton, Jay e Madison) como a forma de “evitar a tirania da maioria e um governo popular”.
Isso bastaria para concordar com Virgínia Fontes que interessa aos trabalhadores que a luta de classes ocorra em um cenário democrático, resistindo à ordem burguesa que tenta destruí-lo quando lhe interessa. Lenin já afirmava em seu famoso estudo sobre o Estado e a Revolução, que os trabalhadores devem preferir a Republica Democrática à Ditadura aberta do capital, ressaltando que a República Democrática é a melhor forma de expressão do domínio de classe da burguesia sobre os trabalhadores. Mas, completa Lenin, “estaríamos mal se esquecêssemos que a exploração é o quinhão que cabe aos trabalhadores mesmo nas repúblicas mais democráticas”.
Umas das contribuições mais significativas de Carlos Nelson Coutinho sobre este tema é nos lembrar que o Estado, na concepção de Gramsci, implica na unidade entre os mecanismos de coerção (próprios da sociedade política, ou o Estado considerado estritamente) e de formação e consenso, de formação de uma hegemonia, que em sua unidade garante o que o comunista sardo chamava de “supremacia” de uma classe dirigente e hegemônica. No processo histórico de constituição de nossas formações sociais, estes elementos se combinam, ora enfatizando um, ora outro, mas sempre com a determinação de um deles (a coerção ou o consenso). Gramsci separava as sociedade ditas “orientais”, onde o Estado é forte e se vê uma sociedade civil-burguesa gelatinosa (prevalência do momento da coerção), e os estados “ocidentais”, nos quais o Estado lança na sociedade civil trincheiras avançadas que consolidam seu poder na formação de consensos que o legitimam (prevalência da hegemonia).
Coutinho identificava como traço particular de nossa formação social a forma política pelo alto, isto é, “por meio da conciliação entre frações das classes dominantes, de medidas aplicadas de cima para baixo” que acabam conservando no processo de modernização da sociedade brasileira, os elementos de seu arcaísmo (as relações de produção tradicionais no campo e a dependência em relação ao capitalismo internacional). Tal fato o leva a identificar aqui o processo que Lenin denominava de “via prussiana”. Nestes termos o Brasil seria um país “oriental”, nos termos gramscianos.
Para o autor o caminho para eliminar o “prussianismo” seria apostar no processo de democratização da sociedade brasileira, o que só seria possível com a entrada protagônica dos trabalhadores na cena política. Desta maneira, a luta por democracia teria mais que uma dimensão tática, mas estratégica. Nos diz Coutinho:
“A luta pela eliminação do ‘prussianismo’ confunde-se com uma profunda renovação democrática do conjunto da vida brasileira. Essa renovação aparece, portanto, não apenas como alternativa histórica à ‘via prussina’, como modo de realizar em condições novas as tarefas que a ausência de uma revolução democrático-burguesa deixou abertas em nosso pais, mas também – e precisamente por isso – como processo de criação dos pressupostos necessários para um avanço no Brasil no rumo do socialismo”
(A democracia como valor universal, 1979)
O que tornaria possível este cenário é que na crise da ditadura e no processo de desenvolvimento capitalista que ela propiciou, teriam se gestado as condições que tornariam possível o desenvolvimento de uma “sociedade civil” no Brasil, de um lado pela emergência de sujeitos coletivos de um novo tipo e suas formas de organização próprias (comissões de fábrica, associações de moradores, CEBs, movimento de mulheres, a questão ecológica, etc.) e, de outro, o fortalecimento de aparelhos privados de hegemonia que expressariam esta sociedade civil (OAB, CNBB, ABI, etc.). Tal processo cobrava e gerava as condições para uma “socialização da política” que poderia levar a superação da “via prussiana”.
O eixo central deste desenvolvimento seria o da democratização, primeiro pela conquista da democracia (negação da ditadura), depois por seu aprofundamento e consolidação e, finalmente, pela sua transformação substantiva (a passagem de uma democracia burguesa para uma democracia proletária).
Mais recentemente, o autor avaliando o desenvolvimento do cenário político brasileiro conclui que:
“Malgrado todos seus limites, a transição revelou, em seu ponto de chegada, um dado novo e extremamente significativo: o fato de que o Brasil, após 20 anos de ditadura, havia se tornado definitivamente uma sociedade ‘ocidental’ no sentido gramsciano do termo”.
(Contra a corrente)
O paradoxo é que o processo de democratização e do acúmulo de forças pretendido se verificou, mas o resultado foi muito diferente do esperado. De certa maneira este desfecho diverso das intenções anunciadas se explica pelo fato que a modernização (ou ocidentalização, se preferirem) que levou à socialização da política foi, de certa forma, visto de maneira unilateral, isto é, como se beneficiasse apenas a perspectiva dos trabalhadores contra o Estado Burguês e sua ordem. Perde-se de vista que a alternância da forma de domínio da burguesia, da ditadura à democracia, representava de igual maneira uma necessidade para a ordem capitalista. A socialização da política se dá no interior da luta de classes. Se é verdade que na perspectiva dos trabalhadores, pelo menos no interior da formulação estratégica que se tornou determinante – a estratégia democrática popular –, se tratava de acumular forças para realizar a passagem da democracia consolidada para sua substantivação, na perspectiva burguesa tratava-se de superar seu problema de hegemonia, isto é, legitimar sua ordem societária para além dos restritos limites das classes e frações de classe que dela se beneficiam.
Como o próprio Coutinho gostava de dizer, na luta de classes não há empate. Se os interesses burgueses prevalecem é sinal que os proletários foram derrotados e vice e versa. O que vemos é que a ordem burguesa se mantém sob a forma instável daquilo que Florestan Fernandes denominou de “democracia de cooptação”, tornada possível pelo governo de pacto social protagonizado pelo PT. Ora, neste cenário, a forma democrática deixa de ser patamar para o projeto transformador e vira um dos elementos de perpetuação da ordem do capital.
O dilema é que, pensam alguns, a forma democrática ainda é um patamar que nos interessa. Como afirmávamos, então, ainda que não possamos ir além no sentido de sua substantivação, é um bom lugar para esperarmos tempos melhores para seguir na luta pelo socialismo. Infelizmente as coisas não são bem assim.
Para a burguesia, nos alertava Coutinho em seu livro Contra a corrente, não é mais possível manter inalterada a forma que lhe foi tão útil da ditadura descarada de classe a serviço do capital monopolista, ou seja, uma “dominação sem hegemonia”, mas também a forma de controle pelo alto das massas trabalhadores para sustentar um desenvolvimento capitalista que lhes exclui dos benefícios, como no caso do populismo, também não e mais possível. Isto leva Coutinho a uma visão um tanto otimista. A ordem burguesa teria que combinar sua dominação com formas de direção hegemônica que lograsse consolidar “razoável grau de consenso por parte dos governados”.
Digo otimista pelo fato de que fosse esse o caso, o impulso do processo de democratização teria como se manter e a perspectiva de uma “reformismo revolucionário” como ele defendia poderia ainda se manter como estratégia. A tensão neste quadro se daria em outro ponto. Para manter esta combinação entre domínio e direção hegemônica, o poder burguês teria que ceder em direitos e demandas vindas da parte mais organizada da classe trabalhadora e dos setores médios, alem, é claro, das demandas da burguesia monopolista, formando desta forma a base do consentimento. O caráter dependente da economia e a síntese com o arcaísmo oligárquico (por exemplo com a estrutura agrária e o fisiologismo estatal das elites), no entanto, impediria o atendimento das demandas da maioria da população, principalmente os setores mais pauperizados e desorganizados.
Esta constatação é profundamente coerente por parte de Coutinho e se relaciona com a própria concepção que organiza seu pensamento sobre sociedade civil nos termos de Gramsci, mas igualmente na sua fonte hegeliana (a sociedade civil como mediação entre os indivíduos singulares e o momento genérico do Estado por meios de corporações e grupos particulares). Em poucas palavras, quem está organizado pela mediação particular de seus aparatos privados de hegemonia interfere na política de Estado, quem não está ficaria fora.
O problema não está na coerência teórica, mas na relação com o devir do real: não foi o que aconteceu. Nos termos da democracia de cooptação, a focalização das políticas sociais miraram os desorganizados e em situação de miserabilidade ao mesmo tempo em que garantiram os patamares de acumulação de capitais para o capital imperialista. E para isso teve de atacar direitos e represar demandas dos setores organizados dos trabalhadores e das camadas médias. O único meio de realizar isso é pelo transformismo do PT e o apassivamento da classe trabalhadora, principalmente no seu setor mais organizado e decisivo para o funcionamento da economia capitalista. Isso se dá pela precária garantia de emprego (com as flexibilizações impostas) e pelo acesso ao consumo via certo grau de controle da inflação combinado com a facilitação do crédito.
Ora, quanto mais a democracia de cooptação se efetiva pela inserção passiva e subordinada via acesso à sociedade de consumo via crédito ou bolsas, mas a democracia se distancia de sua substancialização e nem mesmo paralisa no seu momento de consolidação institucional, política e jurídica. De fato, neste cenário ela é constrangida a recuar até mesmo nos elementos de conquista na luta contra a ditadura. A combinação entre a dominação e formas de direção hegemônica exigem uma “democracia forte” no sentido de ter os elementos de controle e garantia da ordem. Destrói-se o mito do auto aperfeiçoamento da democracia na direção única da socialização da política na perspectiva da revolução: seu aperfeiçoamento pode, e de fato assim se deu, ser garantia de continuidade da ordem o capital e não caminho de sua superação.
De Rousseau a Gramsci: ensaios de teoria política, o último livro de Carlos Nelson Coutinho já está disponível em versão eletrônica (ebook) por metade do preço do livro impresso aqui. Confira uma prévia do livro aqui.
***
Mauro Luis Iasi é um dos colaboradores do livro de intervenção Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, organizado pela Boitempo. Com textos de David Harvey, Slavoj Žižek, Mike Davis, Ruy Braga, Ermínia Maricato entre outros. Confira, abaixo, o debate de lançamento do livro no Rio de Janeiro, com os autores Carlos Vainer, Mauro Iasi, Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira:
***
Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
Nelson Coutinho
Por Mauro Iasi.
“Quando lerem seus papéis
Pesquisando, dispostos ao assombro
Procurem o Velho e o Novo, pois nosso tempo
E o tempo de nossos filhos
É o tempo das lutas do Novo com o Velho.”
Bertolt Brecht
Realizou-se entre os dias 11 e 13 de novembro de 2013 na UFRJ, o Seminário Internacional Carlos Nelson Coutinho e a renovação do marxismo. Além da justa homenagem a este grande intelectual e militante comunista, o seminário comprovou que sua obra consiste em um importante manancial teórico e político que seguirá exigindo um profundo esforço de pesquisa, reflexão e debates.
Um traço comum nas diversas exposições, que contaram com intelectuais de peso como Guido Liguore (Itália), Michel Löwy (Brasil/França), Francisco Louçã (Portugal), além de importantes pensadores brasileiros no campo do marxismo; foi destacar a unidade do pensamento de Carlos Nelson, como intelectual e militante que pensa o Brasil e o mundo a partir da centralidade da reflexão política. Isso não significa que se trata de um autor monotemático, pelo contrário, chama a atenção à rica e variada obra que procura abarcar temas que vão desde a compreensão da formação social brasileira, o tema da cultura, filosofia política, a questão do Estado, e muitos outros e que se expressão na publicação de seus 13 livros, inumeráveis artigos e uma vasta obra de tradutor e editor.
A centralidade da política significa que esta riqueza de temas sempre era vista na perspectiva de compreensão do Brasil e do mundo atual pelos olhos daqueles que querem transformar a realidade, na perspectiva da classe trabalhadora e da meta socialista e comunista.
Outro aspecto comum apresentado é que no interior da obra fica evidente o lugar de destaque que ocupa o tema da democracia, mais precisamente, a relação da democracia com a meta socialista. Partindo de sua famosa afirmação que não há socialismo sem democracia e chegando à necessidade de afirmar que, tampouco, há democracia sem socialismo, o autor nos chama a atenção de necessidade de pensar estas dimensões de maneira articulada e, concordando ou não com seus argumentos ou algumas conclusões, se tornou referencia incontornável no debate sobre o tema.
Em debate recente que rememorava os 40 anos da experiência de poder popular no Chile, a companheira Virgínia Fontes, que também participou com uma brilhante exposição do seminário aqui descrito, nos provocava afirmando que no caminho de sua luta revolucionária no sentido de mudar a sociedade os trabalhadores devem estar atentos para a dimensão da democracia.
A questão se apresenta pertinente por várias razões que no limite daquele momento do debate não pude desenvolver e utilizo agora este espaço do nosso blog para continuar a conversa.
Ressaltando inicialmente que não se trata de uma concordância integral com a tese de Carlos Nelson sobre o caráter da democracia como valor universal – ou democratização, como o autor afirmava recentemente recuperando Lukács –, Virgínia nos lembrava de que a ordem do capital imperialista nos trás um cenário preocupante de reversão de conquistas e direitos e até mesmo do funcionamento institucional e jurídico marcado pelo arbítrio, a criminalização dos que lutam e um fechamento do chamado espaço democrático. Neste cenário, nos alerta a historiadora fluminense, precisamos refletir sobre o lugar que ocupa em nossa luta a defesa de patamares democráticos, mesmo aqueles da formalidade jurídico institucional.
A questão cabe, em primeiro lugar, porque estávamos discutindo o Chile de Allende, experiência histórica que demonstrou o ponto a que pode chegar a luta de classes no cenário de um funcionamento minimamente democrático das instituições e da vida política, assim como o impacto que o governo da Unidade Popular produziu na luta revolucionária na America Latina e no desenvolvimento de uma cultura revolucionária. Mais ainda pelo contraste que o desfecho do processo chileno permitiu revelar. A derrota do poder popular e a ditadura pinochetista, com o obscurantismo instalado, a total rendição aos ditames do capital monopolista e imperialista, a destruição física de uma geração de combatentes, a luta de classes sem disfarces e sem barreiras institucionais e legais permitindo a prisão de milhares de pessoas, o assassinato, o desaparecimento, a tortura e a retirada das mediações organizativas e políticas através das quais os trabalhadores puderam entrar na cena política com voz própria; nos alerta que as tais garantias democráticas não são uma questão menor a ser considerada.
O quadro conjuntural no Brasil contemporâneo, guardadas as devidas proporções, indica esta preocupação no acirramento da repressão aos movimentos sociais e manifestações de massa, na tentativa de revestir de instrumentos legais mais duros o combate ao dissenso, na institucionalização daquilo que Carlos Nelson, ironicamente, chamava de “americanalhamento” da política, isto é, o jogo da pequena política que ocupa o centro da cena e obscurece o fato de que se trata de “alternativas políticas que não põe em discussão, as reais estruturas de poder econômico e político que vigoraram e vigoram na sociedade brasileira” (Carlos Nelson Coutinho em seu livro Contra a corrente). No mundo vemos uma ordem que naturaliza a intervenção militar, a desestabilização de governos, o assassinato de adversários políticos, como se fosse aspectos técnicos das estruturas de defesa dos Estados Nacionais, coisas da vida.
Tais manifestações indicam, evidentemente, uma reversão, uma inflexão política, que revela que assim como a burguesia se aproximou pragmaticamente da ordem democrática como uma das formas de expressão de sua ordem de acumulação, agora parece indicar que esta forma guarda limitações incomodas que devem ser afastadas para garantir a ordem da exploração.
A ordem burguesa gosta da autoimagem que construiu sobre si mesma como um lento e gradual aperfeiçoamento de instituições sociais e políticas rumo a uma sociedade cada vez mais harmoniosa, na qual os conflitos e contradições não passam de desvios circunscritos a certas circunstâncias especiais que devem ser enfrentados como exceção. Uma breve olhada sobre sua história real nos comprova o contrário. Não apenas a burguesia não era democrática na sua origem (está é uma tese forte de Carlos Nelson e que se apresenta da mesma maneira em Ellen Wood) – como provam os pensamentos dos clássicos do pensamento político burguês como Hobbes e Locke, mas também a sociologia burguesa alemã como em Weber – como sempre manteve uma relação pragmática e utilitária com a ordem democrática, nunca deixando de descartá-la quando esta representava, ainda que potencialmente, um risco ao processo de acumulação de capital.
Prova disso é o nazifascismo, as ditaduras militares na America Latina, a destruição da África, o genocídio nas Filipinas e as ditaduras no oriente médio. Isso nas suas expressões mais dramáticas, mas, de igual maneira, nos chamados países democráticos, com destaque para os EUA. O berço da democracia moderna que embala os mais ternos ideais de Hanna Arendt, é a terra da liberdade que manteve a escravidão, da igualdade que demorou mais de um século para chegar aos direitos civis para os negros, que massacrou os povos indígenas, que teve que destruir pela violência a representação e a luta sindical autônoma, que se funda em uma forma política anunciada pelo O federalista de seus pais fundadores (Hamilton, Jay e Madison) como a forma de “evitar a tirania da maioria e um governo popular”.
Isso bastaria para concordar com Virgínia Fontes que interessa aos trabalhadores que a luta de classes ocorra em um cenário democrático, resistindo à ordem burguesa que tenta destruí-lo quando lhe interessa. Lenin já afirmava em seu famoso estudo sobre o Estado e a Revolução, que os trabalhadores devem preferir a Republica Democrática à Ditadura aberta do capital, ressaltando que a República Democrática é a melhor forma de expressão do domínio de classe da burguesia sobre os trabalhadores. Mas, completa Lenin, “estaríamos mal se esquecêssemos que a exploração é o quinhão que cabe aos trabalhadores mesmo nas repúblicas mais democráticas”.
Umas das contribuições mais significativas de Carlos Nelson Coutinho sobre este tema é nos lembrar que o Estado, na concepção de Gramsci, implica na unidade entre os mecanismos de coerção (próprios da sociedade política, ou o Estado considerado estritamente) e de formação e consenso, de formação de uma hegemonia, que em sua unidade garante o que o comunista sardo chamava de “supremacia” de uma classe dirigente e hegemônica. No processo histórico de constituição de nossas formações sociais, estes elementos se combinam, ora enfatizando um, ora outro, mas sempre com a determinação de um deles (a coerção ou o consenso). Gramsci separava as sociedade ditas “orientais”, onde o Estado é forte e se vê uma sociedade civil-burguesa gelatinosa (prevalência do momento da coerção), e os estados “ocidentais”, nos quais o Estado lança na sociedade civil trincheiras avançadas que consolidam seu poder na formação de consensos que o legitimam (prevalência da hegemonia).
Coutinho identificava como traço particular de nossa formação social a forma política pelo alto, isto é, “por meio da conciliação entre frações das classes dominantes, de medidas aplicadas de cima para baixo” que acabam conservando no processo de modernização da sociedade brasileira, os elementos de seu arcaísmo (as relações de produção tradicionais no campo e a dependência em relação ao capitalismo internacional). Tal fato o leva a identificar aqui o processo que Lenin denominava de “via prussiana”. Nestes termos o Brasil seria um país “oriental”, nos termos gramscianos.
Para o autor o caminho para eliminar o “prussianismo” seria apostar no processo de democratização da sociedade brasileira, o que só seria possível com a entrada protagônica dos trabalhadores na cena política. Desta maneira, a luta por democracia teria mais que uma dimensão tática, mas estratégica. Nos diz Coutinho:
“A luta pela eliminação do ‘prussianismo’ confunde-se com uma profunda renovação democrática do conjunto da vida brasileira. Essa renovação aparece, portanto, não apenas como alternativa histórica à ‘via prussina’, como modo de realizar em condições novas as tarefas que a ausência de uma revolução democrático-burguesa deixou abertas em nosso pais, mas também – e precisamente por isso – como processo de criação dos pressupostos necessários para um avanço no Brasil no rumo do socialismo”
(A democracia como valor universal, 1979)
O que tornaria possível este cenário é que na crise da ditadura e no processo de desenvolvimento capitalista que ela propiciou, teriam se gestado as condições que tornariam possível o desenvolvimento de uma “sociedade civil” no Brasil, de um lado pela emergência de sujeitos coletivos de um novo tipo e suas formas de organização próprias (comissões de fábrica, associações de moradores, CEBs, movimento de mulheres, a questão ecológica, etc.) e, de outro, o fortalecimento de aparelhos privados de hegemonia que expressariam esta sociedade civil (OAB, CNBB, ABI, etc.). Tal processo cobrava e gerava as condições para uma “socialização da política” que poderia levar a superação da “via prussiana”.
O eixo central deste desenvolvimento seria o da democratização, primeiro pela conquista da democracia (negação da ditadura), depois por seu aprofundamento e consolidação e, finalmente, pela sua transformação substantiva (a passagem de uma democracia burguesa para uma democracia proletária).
Mais recentemente, o autor avaliando o desenvolvimento do cenário político brasileiro conclui que:
“Malgrado todos seus limites, a transição revelou, em seu ponto de chegada, um dado novo e extremamente significativo: o fato de que o Brasil, após 20 anos de ditadura, havia se tornado definitivamente uma sociedade ‘ocidental’ no sentido gramsciano do termo”.
(Contra a corrente)
O paradoxo é que o processo de democratização e do acúmulo de forças pretendido se verificou, mas o resultado foi muito diferente do esperado. De certa maneira este desfecho diverso das intenções anunciadas se explica pelo fato que a modernização (ou ocidentalização, se preferirem) que levou à socialização da política foi, de certa forma, visto de maneira unilateral, isto é, como se beneficiasse apenas a perspectiva dos trabalhadores contra o Estado Burguês e sua ordem. Perde-se de vista que a alternância da forma de domínio da burguesia, da ditadura à democracia, representava de igual maneira uma necessidade para a ordem capitalista. A socialização da política se dá no interior da luta de classes. Se é verdade que na perspectiva dos trabalhadores, pelo menos no interior da formulação estratégica que se tornou determinante – a estratégia democrática popular –, se tratava de acumular forças para realizar a passagem da democracia consolidada para sua substantivação, na perspectiva burguesa tratava-se de superar seu problema de hegemonia, isto é, legitimar sua ordem societária para além dos restritos limites das classes e frações de classe que dela se beneficiam.
Como o próprio Coutinho gostava de dizer, na luta de classes não há empate. Se os interesses burgueses prevalecem é sinal que os proletários foram derrotados e vice e versa. O que vemos é que a ordem burguesa se mantém sob a forma instável daquilo que Florestan Fernandes denominou de “democracia de cooptação”, tornada possível pelo governo de pacto social protagonizado pelo PT. Ora, neste cenário, a forma democrática deixa de ser patamar para o projeto transformador e vira um dos elementos de perpetuação da ordem do capital.
O dilema é que, pensam alguns, a forma democrática ainda é um patamar que nos interessa. Como afirmávamos, então, ainda que não possamos ir além no sentido de sua substantivação, é um bom lugar para esperarmos tempos melhores para seguir na luta pelo socialismo. Infelizmente as coisas não são bem assim.
Para a burguesia, nos alertava Coutinho em seu livro Contra a corrente, não é mais possível manter inalterada a forma que lhe foi tão útil da ditadura descarada de classe a serviço do capital monopolista, ou seja, uma “dominação sem hegemonia”, mas também a forma de controle pelo alto das massas trabalhadores para sustentar um desenvolvimento capitalista que lhes exclui dos benefícios, como no caso do populismo, também não e mais possível. Isto leva Coutinho a uma visão um tanto otimista. A ordem burguesa teria que combinar sua dominação com formas de direção hegemônica que lograsse consolidar “razoável grau de consenso por parte dos governados”.
Digo otimista pelo fato de que fosse esse o caso, o impulso do processo de democratização teria como se manter e a perspectiva de uma “reformismo revolucionário” como ele defendia poderia ainda se manter como estratégia. A tensão neste quadro se daria em outro ponto. Para manter esta combinação entre domínio e direção hegemônica, o poder burguês teria que ceder em direitos e demandas vindas da parte mais organizada da classe trabalhadora e dos setores médios, alem, é claro, das demandas da burguesia monopolista, formando desta forma a base do consentimento. O caráter dependente da economia e a síntese com o arcaísmo oligárquico (por exemplo com a estrutura agrária e o fisiologismo estatal das elites), no entanto, impediria o atendimento das demandas da maioria da população, principalmente os setores mais pauperizados e desorganizados.
Esta constatação é profundamente coerente por parte de Coutinho e se relaciona com a própria concepção que organiza seu pensamento sobre sociedade civil nos termos de Gramsci, mas igualmente na sua fonte hegeliana (a sociedade civil como mediação entre os indivíduos singulares e o momento genérico do Estado por meios de corporações e grupos particulares). Em poucas palavras, quem está organizado pela mediação particular de seus aparatos privados de hegemonia interfere na política de Estado, quem não está ficaria fora.
O problema não está na coerência teórica, mas na relação com o devir do real: não foi o que aconteceu. Nos termos da democracia de cooptação, a focalização das políticas sociais miraram os desorganizados e em situação de miserabilidade ao mesmo tempo em que garantiram os patamares de acumulação de capitais para o capital imperialista. E para isso teve de atacar direitos e represar demandas dos setores organizados dos trabalhadores e das camadas médias. O único meio de realizar isso é pelo transformismo do PT e o apassivamento da classe trabalhadora, principalmente no seu setor mais organizado e decisivo para o funcionamento da economia capitalista. Isso se dá pela precária garantia de emprego (com as flexibilizações impostas) e pelo acesso ao consumo via certo grau de controle da inflação combinado com a facilitação do crédito.
Ora, quanto mais a democracia de cooptação se efetiva pela inserção passiva e subordinada via acesso à sociedade de consumo via crédito ou bolsas, mas a democracia se distancia de sua substancialização e nem mesmo paralisa no seu momento de consolidação institucional, política e jurídica. De fato, neste cenário ela é constrangida a recuar até mesmo nos elementos de conquista na luta contra a ditadura. A combinação entre a dominação e formas de direção hegemônica exigem uma “democracia forte” no sentido de ter os elementos de controle e garantia da ordem. Destrói-se o mito do auto aperfeiçoamento da democracia na direção única da socialização da política na perspectiva da revolução: seu aperfeiçoamento pode, e de fato assim se deu, ser garantia de continuidade da ordem o capital e não caminho de sua superação.
De Rousseau a Gramsci: ensaios de teoria política, o último livro de Carlos Nelson Coutinho já está disponível em versão eletrônica (ebook) por metade do preço do livro impresso aqui. Confira uma prévia do livro aqui.
Mauro Luis Iasi é um dos colaboradores do livro de intervenção Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, organizado pela Boitempo. Com textos de David Harvey, Slavoj Žižek, Mike Davis, Ruy Braga, Ermínia Maricato entre outros. Confira, abaixo, o debate de lançamento do livro no Rio de Janeiro, com os autores Carlos Vainer, Mauro Iasi, Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira:
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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
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