Uma marcha de protesto contra o anteprojecto de reforma da lei do aborto, aprovado em Dezembro pelo Governo espanhol e actualmente em fase de consulta no parlamento, juntou milhares de pessoas em Madrid, em mais uma manifestação de força que deixa o líder conservador Mariano Rajoy numa posição delicada – dentro do partido e perante a opinião pública.
A mobilização arrancou ao fim da manhã, quando uma composição baptizada como o “comboio da liberdade” terminou a marcha na central ferroviária de Atocha, na capital. No percurso das Astúrias até Madrid, o comboio parou em Valladolid, onde decorre a Convenção Nacional do Partido Popular: activistas e manifestantes foram até ao pavilhão onde estava reunida a cúpula do partido do Governo para exigir que a revisão da lei fosse vetada.
A proposta do Governo, que foi desenhada pelo ministro da Justiça Alberto-Luiz Gallardón, restringe significativamente as condições para o exercício da interrupção voluntária da gravidez Espanha, que actualmente pode ser praticada livremente até às 14 semanas de gestação. Com a reforma, o aborto ficará limitado aos casos em que a gravidez resulte de uma violação, ou quando ponha em risco a saúde física e psíquica da mãe – uma situação que tem de ser cientificamente comprovada através de dois atestados médicos.
Com cartazes de “Aborto livre, a mulher decide”, e gritos de “Si se puede”, milhares de participantes iniciaram uma marcha pela capital, com uma paragem pelo ministério da Saúde, até ao Congresso de Deputados: várias organizações de defesa dos direitos das mulheres, sindicatos e partidos políticos da oposição associaram-se ao protesto, coordenado pela plataforma “Decidir Nos Hace Libres”, exigindo a retirada do anteprojecto legislativo e a demissão do ministro da Justiça.
Num palco instalado no átrio da estação de comboios, a vice-secretária geral do Partido Socialista espanhol, Elena Valenciano, descreveu o projecto governativo como “um atentado contra a dignidade e a liberdade das mulheres”. Pelo seu lado, o deputado da Izquerda Unida, Gaspar Llamazares, descreveu a reforma como “uma lei arcaica e medieval, que busca impor o dogma religioso às mulheres e à sociedade”.
Além do “comboio da liberdade”, chegaram a Madrid dezenas de autocarros com manifestantes, provenientes de várias cidades do país. O El País falou por exemplo com María Rosa, que viajou desde Barcelona com a filha, para defender o direito ao aborto. “Compete-nos a todos, a nós, aos nossos filhos e aos nossos netos. É por isso que nos mobilizamos”, observou, ao diário da capital.
Portuguesas solidárias
Solidárias com a iniciativa, várias associações europeias organizaram acções de protesto em frente às embaixadas de Espanha. “Somos todas mulheres espanholas”, repetiram as manifestantes nas cidades de Paris, Roma ou Londres, criticando os “ataques” do Governo de Madrid contra os seus direitos. Em Portugal, um grupo de activistas, escritoras, actrizes e artistas assinaram um manifesto “Porque Eu Decido”, redigido pelas suas congéneres espanholas. O texto lembra que noutros tempos muitas portuguesas cruzaram a raia para poder abortar “longe da condenação e do opróbio” do seu país. “Assusta-nos que as mulheres espanholas, para o exercício da sua dignidade, sejam forçadas a atravessar a fronteira para interromper a gravidez no nosso país”, escrevem.
“A nova lei é um retrocesso enorme em todos os direitos alcançados pelas mulheres. É uma lei que nos retira a liberdade de decidir e nos obriga a ser mães quando não queremos. E numa sociedade democrática ninguém pode obrigar uma mulher a ser mãe contra a sua vontade, ou criminalizá-la por exercer um direito consagrado, como é o do aborto”, declarou Victoria García Corte, da Associação de Mulheres pela Igualdade, uma das passageiras do comboio da liberdade.
Apesar de ter sido aprovada por unanimidade no Conselho de Ministros, a proposta de revisão da lei do aborto veio abrir um diferendo dentro do Partido Popular espanhol, que detém a maioria absoluta nas Cortes. O presidente do Governo, Mariano Rajoy, admitiu que o anteprojecto contém alguns aspectos “controversos” e pediu aos legisladores que introduzam as alterações necessárias para melhorar a reforma. A bancada popular já disse que a disciplina de voto funcionará para aprovar a nova lei.
As sondagens demonstram que uma maioria de 80% dos espanhóis apoia a actual legislação relativa ao aborto e está contra a reforma. “Um partido político não deve ignorar a opinião dos eleitores. As sondagens são muito claras em relação ao que os espanhóis pensam desta reforma”, alertou a deputada conservadora Celia Villalobos, citada pela Reuters.
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