quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Cabeça de vaca corpo de mulher

Marcia Tibury


Cabeça de vaca, corpo de mulher. A vaca, uma novilha. O corpo, estereótipo da “gostosa” em trajes de pin-up. A descrição é a do cartaz da festa “Calourada do abate”, da escola de veterinária da Universidade Federal de Minas Gerais. A montagem da “minotaura” causou indignação na comunidade universitária. Foi logo substituída por um novo cartaz com a imagem de um jovem de pijama com estampa de vaquinha. O moço da montagem faz muxoxo de bebê chorão.

A imagem do “bebê chorão”, embora dê o tom de humor necessário a evitar brigas, não é uma desculpa proporcional. Ela nos traz uma dúvida: por que o novo cartaz não tem um corpo de homem estilo “gostoso” e uma cabeça de “touro”, que seria o “macho” da vaca? É que o “homem”, no imaginário machista, até se deixa infantilizar, fazer o tipo de “bezerro mamão” – em que tetas ele mamará? –, mas não se deixa “abater”. Antes, ele chora e comove pela “fofura” que é… A imagem da Minotaura da festa do “abate” deixa claro que se come a vaca e a mulher, ou a mulher-vaca, mas não o bezerrinho chorão. E isso porque o bezerro é infantil, em seu “fofo” pijama malhado, enquanto que a mulher-vaca é sensual em sua lingerie apelativa. A lógica da piada machista está exposta: a humilhação das mulheres deve parecer divertida; coisa que não faz mal a ninguém. O bezerro chorão vem confirmar que era só brincadeirinha, que o filhotinho da vaca é irresponsável como uma criança. E assim fica tudo bem.

Comer uma vaca

A análise do vocábulo “comer” demonstra a lógica do que a ativista Carol Adams chamou de A política sexual da carne (Ed. Alaúde, 2012). “Comer” é expressão brasileira usada para definir o ato sexual. Diz-se que fulano comeu fulana, mas não o contrário. Não se “come” um homem, mas apenas uma mulher. Come-se a vaca, e isso vem refletir o imaginário social sobre mulheres desde há muito tempo.
A política sexual da carne foi publicado, nos Estados Unidos, há mais de 20 anos. O livro demonstra a relação lógica entre feminismo e vegetarianismo contra a aliança entre a dominação masculina e o carnivorismo. A crítica ao especismo, a ideologia que afirma a superioridade  dos seres humanos em relação aos outros animais, é foco a ser desmontado.

Numa pesquisa de anos, Adams demonstrou a associação imagética e ideológica entre mulheres e animais, produzida no contexto da dominação masculina e alicerçada na matança e na violência. Neste contexto, a associação simbólica entre o ato sexual e o ato de comer animais revela a animalização das mulheres e a sexualização dos animais em nome da valorização de uma “virilidade” sem a qual a dominação masculina não se sustentaria. A virilidade dos homens é marca estética da violência à qual serve a sensualização das mulheres. E da vaca do cartaz da “Calourada do abate”.

A relação simbólica entre bife e virilidade faz parte do autoritarismo masculinista. No Brasil, vemos a lógica da política sexual da carne exposta quando um homem faz o churrasco. Mesmo que o arroz e o feijão sejam produzidos por mulheres para o consumo do dia a dia, é comum que os homens escolham, cortem e assem a carne do churrasco em dias especiais. Mas não fazem a salada. Não conhecemos mulheres açougueiras. A manipulação da carne (seja da mulher, seja da vaca) é “coisa de homem”. Por isso, também não vemos um minotauro estampado na festa do abate da calourada… O “abate” que está em jogo, em nosso imaginário, é o da mulher.  Feminicídios são muitos, não há, contudo, “virilicídios” ou “masculinicídios”.  Uma mulher pode ser morta apenas porque é mulher, um travesti, um homossexual (no imaginário masculinista, este “não é bem homem”). Um homem jamais será “abatido” ou “comido” pelo fato de ser homem.

Contudo, o discurso “carnofalocêntrico” apresenta uma virilidade ansiosa demais por autoafirmação. O que isso pode realmente significar? Na contramão, a luta feminista continua pelos direitos de seres espezinhados, simbólica e fisicamente, pela dominação masculina. Ser mulher e vegetariana é a lógica à qual todos – e todas – estão convidados.

marciatiburi@revistacult.com.br


Fonte - Revista CULT

Nenhum comentário:

Postar um comentário

opinião e a liberdade de expressão

Manoel Messias Pereira

Manoel Messias Pereira
perfil

Pesquisar este blog

Seguidores

Arquivo do blog