Protestos, desejos e compreensão de si
A democracia que descobrimos mudará nossa autocompreensão coletiva: já sabemos que “um outro mundo é possível”
Marcia Tiburi
Felipe Dana/Ap Photo/Glow Images
Para muitas pessoas não é fácil entender as manifestações coletivas em nome de causas e direitos sociais que vêm acontecendo em âmbito global e que, recentemente, surpreendendo a muitos, surgiram também no Brasil. O desconhecimento a respeito da história social e política, bem como sobre o significado profundo das lutas, sublevações e insurreições mundiais e nacionais contribui para a perplexidade quanto à situação presente. Não se conhece o passado, não se entende o presente e, além de tudo, não é possível prever o futuro quanto a mudanças sociais concretas em termos de direitos, cidadania, reforma política ou direção de políticas públicas. Se por um lado o que pensamos do futuro pertence à especulação e à fantasia, por outro é o efeito direto do que não somos capazes de imaginar, daquilo que se dá em bases inconscientes, do que é da ordem imponderável do desejo. Que o desejo de um mundo melhor possa nos amparar é o novo sentimento que surge como um terceiro elemento no instante em que a alternativa estava entre o apático fim das utopias e a ideia de que todas as utopias já tinham sido realizadas.
Certo, no entanto, é que uma mudança de autocompreensão coletiva está em cena no Brasil atual. E este talvez seja o aspecto mais decisivo no contexto dos acontecimentos, a experiência subjetiva que está sendo vivida quando muitos acreditavam no fim do sujeito ético e político aniquilado pelos diversos mecanismos de dessubjetivação que vão da economia à tecnologia. A impressão generalizada, do senso comum à investigação em ciências humanas, era de que as pessoas estavam vendidas ao sistema econômico, tinham cancelado qualquer desejo político, eram servas do consumismo e da publicidade e, portanto, já não pertenciam a si mesmas. Não tinham subjetividade, a instância da decisão, da liberdade que se elabora e forma na intimidade de cada um e em sua relação com o outro.
No contexto, surpreende que a internet – que aparece muitas vezes como a máquina devoradora de subjetividades – se torne um mecanismo democrático, uma instância de trocas intersubjetivas, que faz irromper liberdades individuais na formação da expressão comum tal como a da multidão nas ruas. Que a internet como meio tecnológico tenha sido a ameaça de aniquilação da subjetividade e que, de repente, ajude a forjar outras subjetividades, mostra apenas que o ser humano permanece humano na liberdade de recriar seu sentido, seu modo de viver e que possa usar instrumentos, tais como a internet, simplesmente a seu favor.
Todos estes acontecimentos, devido à força que os caracterizou, afetam o âmbito da autocomprensão. Sabemos que essa autocompreensão pode ser positiva ou negativa, na forma de autovalorização ou autodesvalorização, e orientar ações de uma pessoa, de um grupo, de sociedades inteiras. A autocompreensão é fundamental na definição de projetos pessoais ou coletivos.
A mudança de compreensão de si que está em jogo no momento atual se dá em função da aparição de uma subjetividade negada até então. Aspectos inusitados vêm à tona perturbando compreensões prévias. É neste aspecto que os discursos sobre os brasileiros enquanto massa não poderão mais ser pronunciados sem desconfiança, pois algo que estava oculto sobre a condição brasileira de repente apareceu.
Pesquisas recentes sobre o Zeitgeist contemporâneo diziam que os brasileiros eram os mais “felizes e satisfeitos” do mundo. Pode, nesta base, soar simplesmente curioso que o contrário tenha surgido diante de tantas manifestações por mudanças as mais diversas, exigidas no contexto de uma insatisfação geral demonstrada publicamente e com tanta ênfase como vimos nas ruas de várias cidades tomadas por milhares de pessoas. A queixa geral que ouvíamos como um sussurro social poderia ter continuado seu zunido gasto, mas que tenha se tornado ativismo político é algo que não se esperava dos brasileiros. O que de fato está acontecendo entre nós? É algo que podemos nos perguntar. Mais do que curiosidade, o que está em cena é um abalo sísmico no processo de nossa autocompreensão comum. O que quer dizer que nunca mais nos veremos do mesmo modo porque, devido aos eventos políticos e sociais, já não somos os mesmos.
O MITO DO BRASILEIRO
A autocompreensão está dada no dia a dia na experiência com a própria mentalidade. Assim como “eu me compreendo”, “nós nos compreendemos” no contexto geral. Assim como podemos falar de uma autoimagem pessoal, podemos falar em uma autoimagem coletiva. Ora, é nesse sentido que nossa autocompreensão coletiva implica a crença geral do que podemos chamar de “mito do brasileiro”. Tal mito está em vigência no senso comum, sempre alimentado por certa antropologia, filosofia e sociologia, e até mesmo pela literatura, mas, sobretudo, pela televisão, que se tornou uma verdadeira prótese existencial e cognitiva para nosso povo.
O “mito do brasileiro” é transmitido pelos meios de comunicação em geral, inclusive os de massa, na forma de “verdades” explicativas sobre a população e seus indivíduos. Tanto o “Brasil” quanto “o brasileiro” restam compreensíveis por meio da narrativa mítica. A tendência de explicar o que não se pode entender com o arsenal conceitual que se tem à mão não é nenhuma novidade. O risco de “mitificar” (ou mistificar) é evidente. No âmbito do mito, isso quer dizer que talvez a pergunta “quem somos nós?” não seja jamais colocada com seriedade, mas uma resposta está sempre pronta a ser usada mesmo quando jamais se questionou o sentido da própria pergunta.
O desejo de identidade está dado e é nele que se depositam não apenas a esperança de autoconhecimento, mas também o desejo de explicar o “outro” a partir do “mesmo”. Isso quer dizer que a identidade é caracterizada pela tendência a imperar sobre a alteridade, nem que precise construir a “alteridade”. Isso quer dizer em último caso, que é preciso tomar cuidado com definições de pessoas ou grupos, pois elas podem ser altamente falsas. É isso que fez alguns teóricos afirmarem que o antissemitismo criou o “judeu”, assim como Colombo criou os “índios”. Essa é a função do mito, explicar e definir – inventando a “identidade do outro” a partir de uma identidade de si –, não deixando espaço para nenhuma diferença. O susto de muitos com a novidade brasileira se deve à alteridade que surge sem caber no parâmetro da identidade sempre afeita a “essências” e “naturezas”.
Na construção da “identidade nacional”, podemos lembrar a figura de Macunaíma, o “herói sem nenhum caráter” de Mário de Andrade. Nesta linha o “brasileiro” é eminentemente acomodado e preguiçoso, ama o futebol e o carnaval mais do que tudo. Cerveja, praia e uma vida fácil são, para ele, o efetivo paraíso da vida sem esforço. Conchavo e cordialidade, em vez de trabalho e estudo, compõem o retrato desse indivíduo alienado e acostumado à escravidão e à colônia. Herói do jeitinho, ele só pensa em levar vantagem no que for possível. Curioso, na contramão, é que O Guarani, de José de Alencar, cujo herói Peri é um índio valente e guerreiro, não esteja presente como símbolo no nosso imaginário. É que na base do mito está o interesse. E o interesse só se desmascara na análise dos contextos. O mito como explicação evita que se olhe para as transformações históricas, as novidades sociais e tecnológicas que afetam profundamente as subjetividades em geral, inclusive a do “brasileiro”. Pois foi justamente esse “mito do brasileiro” o que caiu por terra nas manifestações.
Quem analisa a história do Brasil e o presente de sua desigualdade social, econômica e cultural verá, em primeiro lugar, que “brasileiros” (ou argentinos, ou franceses ou angolanos) não podem mais ser definidos por um “padrão”. Se quiséssemos ser irônicos, considerando que a ironia é, em filosofia, um método para olhar o lado falso da verdade e o lado verdadeiro que está por trás da falsidade, poderíamos dizer que partilhamos apenas duas coisas: a língua e a injustiça social. Em segundo lugar, a carga horária de trabalho e de estudo dos brasileiros mostra de modo mais evidente um país de pessoas que fazem esforços desmedidos para superar sua condição social e econômica em meio a toda sorte de adversidades e precariedade social. As manifestações dos últimos tempos mostram que a cordialidade, a acomodação, o desinteresse político já não nos retratam, se é que um dia disseram alguma verdade.
Contra a ideia gasta da identidade (de gênero, classe, raça, partido político, desejo e necessidade), podemos, em termos mais democráticos, postular a singularidade. É ela que, no Brasil e no mundo, vai às ruas. É ela que perturba a nossa compreensão, pois estamos acostumados a pensar a política na base da soberania, ou seja, da pertença do poder a alguém ou algum grupo. A democracia que descobrimos neste momento está além disso, está intimamente ligada à nossa subjetividade e, certamente, mudará nossa autocompreensão coletiva. Já sabemos que “um outro mundo é possível”, agora é a hora de assumir a responsabilidade sobre o desejo que surgiu entre nós como algo comum e que nos devolve ao contexto de relações em que o político se recria. Ética, como ação de uma subjetividade enriquecida pela experiência espiritual da comunidade e da alteridade real, é o passo que há de vir.
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A democracia que descobrimos mudará nossa autocompreensão coletiva: já sabemos que “um outro mundo é possível”
Marcia Tiburi
Felipe Dana/Ap Photo/Glow Images
Para muitas pessoas não é fácil entender as manifestações coletivas em nome de causas e direitos sociais que vêm acontecendo em âmbito global e que, recentemente, surpreendendo a muitos, surgiram também no Brasil. O desconhecimento a respeito da história social e política, bem como sobre o significado profundo das lutas, sublevações e insurreições mundiais e nacionais contribui para a perplexidade quanto à situação presente. Não se conhece o passado, não se entende o presente e, além de tudo, não é possível prever o futuro quanto a mudanças sociais concretas em termos de direitos, cidadania, reforma política ou direção de políticas públicas. Se por um lado o que pensamos do futuro pertence à especulação e à fantasia, por outro é o efeito direto do que não somos capazes de imaginar, daquilo que se dá em bases inconscientes, do que é da ordem imponderável do desejo. Que o desejo de um mundo melhor possa nos amparar é o novo sentimento que surge como um terceiro elemento no instante em que a alternativa estava entre o apático fim das utopias e a ideia de que todas as utopias já tinham sido realizadas.
Certo, no entanto, é que uma mudança de autocompreensão coletiva está em cena no Brasil atual. E este talvez seja o aspecto mais decisivo no contexto dos acontecimentos, a experiência subjetiva que está sendo vivida quando muitos acreditavam no fim do sujeito ético e político aniquilado pelos diversos mecanismos de dessubjetivação que vão da economia à tecnologia. A impressão generalizada, do senso comum à investigação em ciências humanas, era de que as pessoas estavam vendidas ao sistema econômico, tinham cancelado qualquer desejo político, eram servas do consumismo e da publicidade e, portanto, já não pertenciam a si mesmas. Não tinham subjetividade, a instância da decisão, da liberdade que se elabora e forma na intimidade de cada um e em sua relação com o outro.
No contexto, surpreende que a internet – que aparece muitas vezes como a máquina devoradora de subjetividades – se torne um mecanismo democrático, uma instância de trocas intersubjetivas, que faz irromper liberdades individuais na formação da expressão comum tal como a da multidão nas ruas. Que a internet como meio tecnológico tenha sido a ameaça de aniquilação da subjetividade e que, de repente, ajude a forjar outras subjetividades, mostra apenas que o ser humano permanece humano na liberdade de recriar seu sentido, seu modo de viver e que possa usar instrumentos, tais como a internet, simplesmente a seu favor.
Todos estes acontecimentos, devido à força que os caracterizou, afetam o âmbito da autocomprensão. Sabemos que essa autocompreensão pode ser positiva ou negativa, na forma de autovalorização ou autodesvalorização, e orientar ações de uma pessoa, de um grupo, de sociedades inteiras. A autocompreensão é fundamental na definição de projetos pessoais ou coletivos.
A mudança de compreensão de si que está em jogo no momento atual se dá em função da aparição de uma subjetividade negada até então. Aspectos inusitados vêm à tona perturbando compreensões prévias. É neste aspecto que os discursos sobre os brasileiros enquanto massa não poderão mais ser pronunciados sem desconfiança, pois algo que estava oculto sobre a condição brasileira de repente apareceu.
Pesquisas recentes sobre o Zeitgeist contemporâneo diziam que os brasileiros eram os mais “felizes e satisfeitos” do mundo. Pode, nesta base, soar simplesmente curioso que o contrário tenha surgido diante de tantas manifestações por mudanças as mais diversas, exigidas no contexto de uma insatisfação geral demonstrada publicamente e com tanta ênfase como vimos nas ruas de várias cidades tomadas por milhares de pessoas. A queixa geral que ouvíamos como um sussurro social poderia ter continuado seu zunido gasto, mas que tenha se tornado ativismo político é algo que não se esperava dos brasileiros. O que de fato está acontecendo entre nós? É algo que podemos nos perguntar. Mais do que curiosidade, o que está em cena é um abalo sísmico no processo de nossa autocompreensão comum. O que quer dizer que nunca mais nos veremos do mesmo modo porque, devido aos eventos políticos e sociais, já não somos os mesmos.
O MITO DO BRASILEIRO
A autocompreensão está dada no dia a dia na experiência com a própria mentalidade. Assim como “eu me compreendo”, “nós nos compreendemos” no contexto geral. Assim como podemos falar de uma autoimagem pessoal, podemos falar em uma autoimagem coletiva. Ora, é nesse sentido que nossa autocompreensão coletiva implica a crença geral do que podemos chamar de “mito do brasileiro”. Tal mito está em vigência no senso comum, sempre alimentado por certa antropologia, filosofia e sociologia, e até mesmo pela literatura, mas, sobretudo, pela televisão, que se tornou uma verdadeira prótese existencial e cognitiva para nosso povo.
O “mito do brasileiro” é transmitido pelos meios de comunicação em geral, inclusive os de massa, na forma de “verdades” explicativas sobre a população e seus indivíduos. Tanto o “Brasil” quanto “o brasileiro” restam compreensíveis por meio da narrativa mítica. A tendência de explicar o que não se pode entender com o arsenal conceitual que se tem à mão não é nenhuma novidade. O risco de “mitificar” (ou mistificar) é evidente. No âmbito do mito, isso quer dizer que talvez a pergunta “quem somos nós?” não seja jamais colocada com seriedade, mas uma resposta está sempre pronta a ser usada mesmo quando jamais se questionou o sentido da própria pergunta.
O desejo de identidade está dado e é nele que se depositam não apenas a esperança de autoconhecimento, mas também o desejo de explicar o “outro” a partir do “mesmo”. Isso quer dizer que a identidade é caracterizada pela tendência a imperar sobre a alteridade, nem que precise construir a “alteridade”. Isso quer dizer em último caso, que é preciso tomar cuidado com definições de pessoas ou grupos, pois elas podem ser altamente falsas. É isso que fez alguns teóricos afirmarem que o antissemitismo criou o “judeu”, assim como Colombo criou os “índios”. Essa é a função do mito, explicar e definir – inventando a “identidade do outro” a partir de uma identidade de si –, não deixando espaço para nenhuma diferença. O susto de muitos com a novidade brasileira se deve à alteridade que surge sem caber no parâmetro da identidade sempre afeita a “essências” e “naturezas”.
Na construção da “identidade nacional”, podemos lembrar a figura de Macunaíma, o “herói sem nenhum caráter” de Mário de Andrade. Nesta linha o “brasileiro” é eminentemente acomodado e preguiçoso, ama o futebol e o carnaval mais do que tudo. Cerveja, praia e uma vida fácil são, para ele, o efetivo paraíso da vida sem esforço. Conchavo e cordialidade, em vez de trabalho e estudo, compõem o retrato desse indivíduo alienado e acostumado à escravidão e à colônia. Herói do jeitinho, ele só pensa em levar vantagem no que for possível. Curioso, na contramão, é que O Guarani, de José de Alencar, cujo herói Peri é um índio valente e guerreiro, não esteja presente como símbolo no nosso imaginário. É que na base do mito está o interesse. E o interesse só se desmascara na análise dos contextos. O mito como explicação evita que se olhe para as transformações históricas, as novidades sociais e tecnológicas que afetam profundamente as subjetividades em geral, inclusive a do “brasileiro”. Pois foi justamente esse “mito do brasileiro” o que caiu por terra nas manifestações.
Quem analisa a história do Brasil e o presente de sua desigualdade social, econômica e cultural verá, em primeiro lugar, que “brasileiros” (ou argentinos, ou franceses ou angolanos) não podem mais ser definidos por um “padrão”. Se quiséssemos ser irônicos, considerando que a ironia é, em filosofia, um método para olhar o lado falso da verdade e o lado verdadeiro que está por trás da falsidade, poderíamos dizer que partilhamos apenas duas coisas: a língua e a injustiça social. Em segundo lugar, a carga horária de trabalho e de estudo dos brasileiros mostra de modo mais evidente um país de pessoas que fazem esforços desmedidos para superar sua condição social e econômica em meio a toda sorte de adversidades e precariedade social. As manifestações dos últimos tempos mostram que a cordialidade, a acomodação, o desinteresse político já não nos retratam, se é que um dia disseram alguma verdade.
Contra a ideia gasta da identidade (de gênero, classe, raça, partido político, desejo e necessidade), podemos, em termos mais democráticos, postular a singularidade. É ela que, no Brasil e no mundo, vai às ruas. É ela que perturba a nossa compreensão, pois estamos acostumados a pensar a política na base da soberania, ou seja, da pertença do poder a alguém ou algum grupo. A democracia que descobrimos neste momento está além disso, está intimamente ligada à nossa subjetividade e, certamente, mudará nossa autocompreensão coletiva. Já sabemos que “um outro mundo é possível”, agora é a hora de assumir a responsabilidade sobre o desejo que surgiu entre nós como algo comum e que nos devolve ao contexto de relações em que o político se recria. Ética, como ação de uma subjetividade enriquecida pela experiência espiritual da comunidade e da alteridade real, é o passo que há de vir.
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