Ana Cristina Câmara
A queniana Lupita Nyongo'o estreou-se no grande ecrã acabada de sair da Yale School of Drama. Em 12 Anos Escravo, que se passa no Sul da América no século XIX, o papel de Patsey pode valer-lhe a nomeação para o Óscar de Melhor Actriz Secundária.
Ainda não tinha completado dez anos de vida, quase todos passados no Quénia e a ver programas de televisão estrangeiros, quando se apercebeu que a sua cor de pele também tinha lugar num pequeno ou grande ecrã. A epifania deu-se ao assistir ao filme de Steven Spielberg A Cor Púrpura, com Danny Glover, Oprah Winfrey e Whoopi Goldberg nos principais papéis da história de uma família na América do início do século XX. Os dados estavam lançados para, duas décadas depois, com formação nos Estados Unidos, Lupita Nyongo'o se tornar a it girl a não perder de vista, com o desempenho como escrava Patsey em 12 Anos Escravo (já nos cinemas portugueses) a render-lhe uma muito provável nomeação para os Óscares.
Estava a terminar a formação de três anos na Yale School of Drama quando a sua agente recebeu o guião do filme e lhe ligou: talvez houvesse um papel para ela. Fez as malas de Nova Iorque para Los Angeles, a pensar que seria apenas a primeira de muitas audições, a ouvir repetidas vezes “não” - foi mais pela experiência e para ganhar traquejo, mas voltaram a chamá-la: de LA seguiu para o estado do Louisiana, onde se encontrou com Steve McQueen, o realizador, e repetiu a audição.
No dia seguinte recebeu um telefonema: seria a escrava Patsey. “Foi como a busca pela Scarlett O'Hara [protagonizada por Vivien Leigh no clássico de 1939 E Tudo o Vento Levou], mais de mil mulheres entrevistadas e finalmente chegámos a ela. Não conseguia acreditar. Uau. Ela veio de Marte”, resumiu o realizador à Reuters.
Patsey, a escrava que colhia diariamente mais de 225 quilos de algodão numa plantação do Louisiana, na década de 50 de século XIX, na América esclavagista pré-Guerra Civil (1861-1865), existiu de facto - e foi imortalizada em livro por Solomon Northup, um negro livre do Norte dos EUA, raptado e vendido como escravo num estado do Sul.
12 Anos Escravo é a história da sua luta pela sobrevivência e liberdade, da realidade da escravatura que vai conhecer, da crueldade dos homens que distinguem a humanidade pela cor da pele. A jovem Patsey, além de melhor trabalhadora da plantação, é objecto da lascívia e ira do seu dono: uma presa ora nas mãos dele, ora nas da sua perversa mulher. “Há uma profunda dor em Patsey e viver nessa dor não foi fácil”, recordou Lupita. À revista Variety, e sobre o filme, a actriz Whoopi Goldberg disse: “Alguns actores são conhecidos, outros não e uma, Lupita Nyongo'o, dá vontade de parar as pessoas na rua e dizer 'Vejam esta jovem mulher!'“.
Preparou-se para o papel durante seis semanas, mas nada a podia preparar para o Verão húmido e quente do Louisiana. “O calor é uma personagem no filme, muda a forma como nos mexemos, como pensamos”, explicou Lupita ao LA Times, sublinhando o paradoxo de filmar o horror num cenário que era também de beleza: as mesmas árvores frondosas que davam um escape de sombra e descanso aos escravos serviam para os enforcar. Agora parte de um cenário cinematográfico, estas árvores são também testemunhas da História. “Aprendi que não é preciso viver um dia livre para saber o que é a liberdade”.
O caminho para o cinema
Há quatro meses, poucos teriam ouvido falar de Lupita Nyongo'o. O nome começou a aparecer à medida que o filme foi estreando. Em Setembro, no Festival Internacional de Cinema de Toronto, a longa-metragem venceu o Prémio do Público. Sucede-se o reconhecimento com várias associações de críticos da sétima arte nos EUA a concederem à queniana de 30 anos o galardão de Melhor Actriz Secundária. Os mais cobiçados estão próximos: no domingo, talvez leve para casa o Globo de Ouro. E a 16 de Janeiro serão anunciadas as nomeações para os Óscares, o culminar do circuito de prémios, emitidos a 2 de Março.
Nascida no México - onde o pai, político queniano, estava exilado - em 1983, foi crismada com um nome local, Lupita, diminutivo de Guadalupe. Depressa a família Nyongo'o voltou para África, de onde Lupita tornou a sair com um objectivo em mente: tentar a sorte como actriz.
Cursou Cinema e Estudos Africanos na Universidade de Hampshire, nos EUA. Numa pausa escolar, regressou ao Quénia. Perto de casa estava a ser rodado O Fiel Jardineiro (2005), do brasileiro Fernando Meirelles, com Rachel Weisz e Ralph Fiennes. A estudante arranjou um lugar como assistente de produção e, dividida quanto ao rumo a seguir - se à frente ou atrás das câmaras - ouviu do actor britânico: “Lupita, se há outra coisa qualquer que queiras fazer na vida, faz. Sê actriz apenas se não conseguires viver sem isto”.
Não conseguiu. Voltou à América, para se especializar na Yale School of Drama, curso que estava a terminar quando se deu a audição para Patsey. Agora, no frenesim de festivais e antestreias, casas de alta-costura fazem-lhe a corte (Prada, Lanvin, Chanel, Miu Miu…), querem que desfile as suas criações na passadeira vermelha. Até Anna Wintour, editora da Vogue, não dispensou uma foto junto a Lupita, que por sua vez apelidou a 'generala' da moda de “encantadora” .
Num efeito pescadinha-de-rabo-na-boca, a queniana é presença assídua nas páginas das revistas, com análises detalhadas ao que veste em cada ocasião. Nem os lábios carnudos, que gosta de pintar nas mais variadas cores, escapam ao olho clínico dos especialistas da moda. “Vocês estão obcecados, eu estou surpreendida!”, admitiu à Vulture.
No fim do ano, no entanto, foi a ausência de Lupita que se fez notar em Capri, Itália, na 18.ª edição do Festival Internacional de Cinema. A actriz não apareceu na estreia de 12 Anos Escravo, envolta numa controvérsia por os posters do filme darem muito mais destaque a actores brancos (e secundários). O protagonista, Chiwetel Ejiofor, foi relegado para segundo plano nos cartazes. A distribuidora italiana disse que o material não tinha sido aprovado e que vai usar os cartazes originais, em que o escravo fugitivo está a correr em primeiro plano.
Também recentemente, Lupita conheceu a diva e empresária todo-poderosa da televisão, Oprah Winfrey, que a esmagou num abraço de reconhecimento por Patsey. Oprah tinha dito numa entrevista à BBC que o filme era demasiado “devastador” para poder falar sobre ele. Desse passado de homens e mulheres sujeitos a uma violência física e psicológica indizível, que perde espaço na memória, destronado por outras histórias de crueldade, descendem milhões de pessoas.
De Lupita espera-se novo trabalho. Será uma hospedeira de bordo num avião sequestrado, com Liam Neeson e Julianne Moore a protagonizar o thriller Non-Stop. “Foi o antídoto perfeito”, rematou Lupita. E um virar de página.
ana.c.camara@sol.pt
Tags: Lupita Nyongo'o, Cultura, Cinema
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