Eusébio de Cesaréia e o discurso acerca dos judeus na História Eclesiástica: a construção de uma identidade cristã via diferença judaica
por Thiago de Azevedo Porto e Jemima Brito Barbosa
Sobre o autor*
Sobre a autora**
Introdução
O período compreendido entre o fim do século III e o início do século IV é geralmente apontado como uma época de transição, no chamado mundo romano (STOCKMEIER, 2006). Se por um lado observam-se variadas crises (institucional, política, social, entre outras) que envolvem a sociedade romana no Baixo Império, por outro se nota uma ascensão visível do cristianismo. Este é o contexto mais amplo vivenciado pelo bispo de Cesaréia, Eusébio, quando elabora a sua História Eclesiástica.[1]
Esta obra de Eusébio de Cesaréia, verdadeiro marco historiográfico pela novidade de sua abordagem e por ter se tornado o primeiro grande modelo de uma, assim chamada, história eclesiástica, foi uma das fontes analisadas no âmbito do projeto coletivo Identidade e Alteridade na Antiguidade e no Medievo: uma análise comparativa de hagiografias. Tal projeto de pesquisa foi desenvolvido de março de 2010 a fevereiro de 2012, junto ao Curso de História da Universidade Federal do Pará, mais precisamente no Campus Universitário de Bragança, com a participação de alunos da instituição e sob a coordenação do Prof. M.Sc. Thiago de Azevedo Porto.
O referido projeto de pesquisa teve como foco central refletir criticamente sobre as práticas e os discursos formadores de identidade[2] através da análise comparativa de algumas hagiografias[3] redigidas na Antiguidade e no Medievo. Desta forma, por meio do estabelecimento de um campo de pesquisa e reflexão coletivas, tendo como base uma análise comparativa pautada no conceito de identidade, tal projeto se propôs a estudar, a refletir e a analisar o conjunto de relações e processos que engendraram, de alguma maneira, a formação de identidades diversas nas temporalidades demarcadas.
Nesse sentido, cabe uma primeira ressalva. Embora a História Eclesiástica não tenha sido elaborada, stricto sensu, com o formato de uma hagiografia, o texto de Eusébio foi um dos grandes modelos seguidos pelas obras hagiográficas elaboradas ainda na Antiguidade e nos primeiros séculos da Idade Média. Primeiro porque o bispo de Cesaréia foi um dos primeiros escritores a colocarem os cristãos na posição de protagonistas da História. Depois porque, nesta obra em específico, ele apresenta uma coletânea de relatos de martírios que muito contribuiu para consolidar a imagem dos mártires como verdadeiros "heróis" do cristianismo e, com isso, ajudou na difusão do culto aos mártires. Por fim, porque ele dedica um de seus capítulos a uma espécie de biografia sobre Orígenes, um dos mais conhecidos escritores cristãos dos primeiros séculos, prefigurando o que posteriormente se transformou na Vita, um tipo de texto bastante difundido no âmbito do gênero hagiográfico.
A História Eclesiástica foi a primeira fonte debatida e analisada no âmbito do mencionado projeto coletivo. E foi a partir das reflexões conjuntas realizadas ao longo dos encontros que surgiu a idéia de analisar o discurso de Eusébio de Cesaréia acerca dos judeus. Em primeiro lugar, chamou atenção o espaço ocupado pelos temas referentes ao judaísmo na obra como um todo e, mais especificamente, nos quatro primeiros livros, nos quais Eusébio narra a trajetória das comunidades judaicas paralelamente ao surgimento do cristianismo nos primeiros dois séculos. Além disso, puderam-se notar diversos elementos de diferenciação no discurso do bispo de Cesaréia acerca de episódios envolvendo os judeus, quase sempre caracterizando negativamente os hábitos, comportamentos e, até mesmo, as práticas religiosas deste povo. Nesse sentido, surgiram questões que mobilizaram os esforços de reflexão e análise presentes neste artigo: O que levou Eusébio de Cesaréia a adotar um discurso negativo acerca dos judeus? O que ele pretendia com isso? De que forma o discurso adotado pelo autor se relaciona com o cenário de ascensão do cristianismo no seu contexto de escrita?
E é exatamente com o intuito de responder a estes questionamentos que nos apropriamos do conceito de identidade e o utilizamos como ferramenta de análise do discurso elaborado por Eusébio de Cesaréia na obra mencionada. No atual cenário das Ciências Humanas, existem diferentes tendências teóricas para a interpretação dos processos formadores de identidade e para a utilização deste conceito como instrumento de análise. Por isso, é importante ressaltar que no âmbito do nosso projeto de pesquisa partilhamos da visão conceitual de Tomaz Tadeu da Silva, que entende como sendo fundamental a construção de diferenças nos processos formadores de identidade. Para este filósofo, é através de um processo de diferenciação que tanto a identidade quanto a diferença são construídas e reafirmadas constantemente na vida em sociedade (SILVA, 2000).
Portanto, nessa perspectiva, a identidade não é encarada como um dado da natureza, ou algo que esteja a priori na essência do humano, mas sim como resultado das relações estabelecidas em sociedade. Partindo desse pressuposto conceitual, pode-se afirmar que a demarcação de uma identidade não se dá de forma positiva, autocontida, autocentrada, ou seja, sem nenhuma referência externa. É justamente através do processo de diferenciação, de atribuição de características ao outro, que se dá a construção da identidade. Nesse sentido, a identidade aparece sempre como o resultado de uma relação em que a diferença é fundamental para a sua demarcação.
Eusébio e a História Eclesiástica
Eusébio viveu na Palestina, aproximadamente entre 260 e 340, mais precisamente na cidade de Cesaréia, onde foi bispo. Não há muitas informações sobre sua origem, se era de família pagã ou cristã e sobre seu local de nascimento, sobretudo devido à ausência de evidências na própria documentação. Entretanto, sabe-se que ele era participante ativo das questões políticas e eclesiásticas do seu tempo, sendo considerado por muitos estudiosos como um dos bispos mais eruditos deste período. Defensor ávido de uma versão oficial do cristianismo, em sua História Eclesiástica procura dar maior credibilidade e visibilidade para a Igreja Cristã, já que esta se encontrava em processo de organização e consolidação no âmbito do Império Romano.
Reconhecido na historiografia como "pai da História Eclesiástica" (MOMIGLIANO, 2004), ele elabora a sua obra em um período onde o foco principal dos historiadores eram os fatos políticos, mais especificamente a narrativa de batalhas e a exaltação de grandes personagens. O próprio autor reconhece a novidade de sua abordagem, ressaltando que "[...] como os primeiros dos que entraram no assunto, estamos nos aventurando em um tipo de caminho virgem sem trilhas" (HE I, 1,3).
Tal história visa dar ênfase e legitimidade a uma determinada vertente do cristianismo, em detrimento de outras formas existentes e praticadas em diferentes regiões. Uma de suas principais preocupações era colocar a Igreja Cristã de seu tempo como a legítima herdeira da mensagem de Cristo, consolidando uma versão oficial do cristianismo em detrimento da diversidade de práticas religiosas e de interpretações possíveis das Sagradas Escrituras. Desta maneira, ele contribuiu decisivamente para a própria construção da chamada ortodoxia cristã.
A História Eclesiástica é considerada a obra mais importante de Eusébio de Cesaréia. Seu conteúdo é de suma relevância para o estudo do cristianismo e da Igreja Cristã nos primeiros séculos, sobretudo pelas documentações e informações que ela reúne em suas páginas, mas também pelos próprios posicionamentos assumidos pelo autor ao longo do texto, que testemunham os debates e as controvérsias presentes no cristianismo dos primeiros séculos. Vale ressaltar que algumas das fontes reunidas e apresentadas pelo autor ao longo da obra só foram preservadas e perpetuadas através do trabalho do bispo de Cesaréia.
Segundo o próprio autor da obra, seu principal objetivo era o de reunir a história do cristianismo desde a época de Jesus Cristo até o período vivido por ele. Não que com isso Eusébio pretendesse dar conta de todos os grupos cristãos e das experiências vivenciadas por eles em todos os lugares, ao longo do tempo. Esta história é eclesiástica porque foca as principais lideranças da Igreja e os acontecimentos mais relevantes, dando destaque às igrejas mais ilustres, aos mestres e escritores cristãos, às heresias e práticas pagãs, aos martírios ocorridos aos cristãos e aos fatos referentes às comunidades judaicas em sua relação com os cristãos. Ao delimitar os temas da sua História Eclesiástica, o bispo de Cesaréia vai delineando uma versão oficial do cristianismo, destacando as dificuldades e as vitórias desta vertente frente aos seus adversários religiosos, que aparecem quase sempre no caminho do erro ou como perseguidores da "boa obra".
O discurso sobre os judeus na História Eclesiástica
Ao analisar a História Eclesiástica, tendo como foco o discurso elaborado acerca dos judeus, um dos primeiros elementos que chamam atenção é a posição cambiante do autor ao tratar das possíveis ligações entre judeus e cristãos. Ao longo da obra, o autor procura demarcar que o cristianismo e o judaísmo são duas religiões diferentes, não compactuando com a visão de que a religião seguida pelos cristãos teria se originado a partir do judaísmo.
Contudo, o posicionamento assumido por Eusébio no tocante à relação entre cristianismo e judaísmo pode gerar alguma confusão nos seus leitores, pois se, por um lado, ele busca deixar claro ao longo do texto as diferenças entre ambos, por outro, ele afirma que o "cristianismo não é uma religião nova, mas foi revelada aos antigos hebreus" (HE, I, 4, 1). Nesse sentido, afirma textualmente que o gênero de vida dos cristãos é semelhante àquele vivenciado pelos antigos hebreus. Porém, é importante ressaltar que ele aproxima os cristãos ao modo de vida dos primeiros hebreus e não ao judaísmo de uma forma geral, que ele busca caracterizar negativamente ao longo da obra.
Pode-se considerar que este posicionamento do autor de aproximar o cristianismo com a tradição religiosa dos antigos hebreus tenha uma relação mais direta com o contexto vivenciado por ele, em que os cristãos eram questionados sobre a veracidade desta "nova religião". Por isso, essa aproximação pode ser interpretada como uma maneira que o autor encontrou para legitimar o próprio surgimento dos cristãos, buscando defender uma suposta antiguidade para as práticas religiosas deste novo grupo:
Mas se somos evidentemente novos e se este nome de cristãos, novo na verdade, é conhecido há pouco tempo entre as nações, nosso gênero de vida e nosso comportamento segundo os ensinamentos da piedade não foram recentemente inventados por nós. Foi, por assim dizer, desde a primordial criação dos homens que os amigos de Deus de outrora, por conhecimento natural os tiveram, conforme vamos demonstrar. (HE, I, 4, 4)
O povo dos hebreus não existe há pouco, mas é respeitável diante de todos por sua antiguidade e geralmente conhecido. A tradição oral e escrita entre eles relata que outrora viveram homens, raros e pouco numerosos, contudo eminentes pela piedade, pela justiça e pelas demais virtudes, uns antes do dilúvio, outros depois, como os filhos e descendentes de Noé, e certamente Abraão, que os filhos dos hebreus se gabam de ter por chefe e ancestral. (HE, I, 4, 5)
Não incorreria em erro quem desse o apelativo de cristãos, se não pelo nome, ao menos pelas ações a todos aqueles cuja justiça é atestada, remontando de Abraão até o primeiro homem. (HE, I, 4, 6)
É interessante como o autor faz uma defesa da "nova religião" argumentando justamente que ela não é nova, nem estranha, pois já havia sido anunciada anteriormente "desde a primordial criação dos homens", em que o modo de vida dos cristãos (seus hábitos e valores) já vinha sendo praticado pelos "amigos de Deus". Desta forma, a aproximação que o bispo de Cesaréia faz dos cristãos com os hebreus é estritamente no campo das práticas, virtudes e ações que estão associadas à tradição religiosa desse grupo e que, na visão dele, foram continuadas pelos cristãos. Visto que, em seu entendimento, as gerações posteriores da tradição judaica não teriam zelado devidamente para a perpetuação deste gênero de vida, ao contrário, o teriam corrompido.
Sendo assim, pode-se desfazer aquela suposta contradição na leitura da História Eclesiástica, mencionada mais acima, acerca de uma possível aproximação entre cristãos e judeus no discurso do autor. Pois fica claro que para ele a semelhança dos cristãos é com os hebreus, que ele identifica como os primeiros a conhecerem à revelação divina e não com os judeus, que aparecem na obra como aqueles que se desviaram dessa tradição religiosa através dos seus atos.
Vivendo em um período de transição política e religiosa, Eusébio procura apresentar argumentos que dêem força para a consolidação do cristianismo como religião legítima e lícita. Neste contexto, os adeptos do cristianismo eram acusados de seguir uma religião que não tinha tradição, que tinha surgido de uma hora para outra, o que dava abertura para a perseguição oficial por parte das autoridades romanas e dificultava a aceitação das práticas cristãs de um modo geral.
Diante deste quadro, o bispo de Cesaréia procura uma saída que lhe permita conferir legitimidade e tradição às práticas cristãs: é aí que entram os hebreus. Conhecedor da tolerância do Estado Romano em relação aos judeus, por estarem ligados a uma religião antiga e legitimamente reconhecida, Eusébio trata de converter esta situação em favor dos cristãos: estes são seguidores de uma tradição religiosa revelada inicialmente aos hebreus, o que pode ser comprovado pelas Escrituras e pelos próprios hábitos dos seus ancestrais, que não teria sido devidamente conservada pelos judeus. Para ele embora os judeus fossem descendentes diretos dos antigos hebreus, eles não teriam tido a capacidade de compreender a totalidade da revelação divina feita aos seus ancestrais e seria exatamente por isso que os cristãos ocuparam o seu lugar como continuadores dessa tradição.
Portanto, esta diferenciação entre cristãos e judeus foi cada vez mais enfatizada pelo autor, pois a afirmação do cristianismo como única vertente religiosa herdeira da obra de Jesus Cristo, e da Igreja Cristã como a representante legítima de Deus na Terra, passava necessariamente pelo distanciamento dos cristãos com os demais grupos religiosos. Sendo assim, era preciso deixar bem claro os diversos aspectos em que os cristãos eram diferentes, ou melhor, construir discursivamente uma identidade cristã, o que, no caso de Eusébio, significava demarcar claramente as características deste "povo novo que se manifestou". Mesmo que para isso fosse necessário atribuir elementos sempre negativos aos demais grupos religiosos.
Nesse sentido, caberia ao autor mostrar claramente como os cristãos eram diferentes dos judeus, e o primeiro passo para isso foi a execração dos últimos como perseguidores dos primeiros. Para o autor da História Eclesiástica, desde o surgimento dos primeiros cristãos eles já teriam sido alvo de perseguição pelos judeus, a começar pelo primeiro deles e grande ícone do cristianismo: o próprio Jesus Cristo. Aliás, esse é um dos principais pontos da argumentação do bispo de Cesaréia, de que a traição dos judeus começa com Cristo e depois se estende a todos os seus discípulos, em especial àqueles que ajudavam a difundir a sua fé. Por isso ele menciona a primeira perseguição sofrida pelos cristãos: "Por ocasião do martírio de Estevão, os judeus desencadearam a primeira e grande perseguição contra a Igreja de Jerusalém e os discípulos, exceto os Doze, se dispersaram através da Judéia e da Samaria" (HE, II, 1, 8).
Embora faça questão de apontar este episódio como "a primeira e grande perseguição" dos judeus, ou seja, como um "fato histórico" indiscutível, apenas registrado em sua obra, Eusébio não aprofunda o assunto, não dá qualquer informação sobre o motivo da perseguição e nem quem foram os envolvidos de um lado e do outro. A idéia que se passa é que foi um primeiro ato dos judeus direcionado a todos os cristãos da Igreja de Jerusalém, o que comprovaria a suposta intenção dos judeus em perseguir abertamente os cristãos.
Contudo, o que o autor deixa de informar poderia dar ao leitor a oportunidade de compreender melhor este episódio envolvendo os cristãos, que, nesse caso, ainda eram freqüentadores do Templo Judaico. Na verdade, aqueles que foram alvo desta perseguição ficaram conhecidos como "helenistas". Tratava-se de um grupo de judeus oriundos da Diáspora que se estabeleceu em Jerusalém, que tinha o grego como língua originária e que adotou o cristianismo em circunstâncias não esclarecidas (SIMON e BENOIT Apud SILVA, 1996, p.10). Este grupo, que era liderado por Estevão, desenvolveu uma interpretação particular da fé em Cristo, que acabou os levando a uma condenação do Templo e a uma desvalorização da lei judaica, fazendo-os entrar em contradição com a liderança judaica e ocasionando os episódios que culminaram no martírio de Estevão e na perseguição dos "helenistas" (SILVA, 1996, p.10).
Portanto, esta suposta "grande perseguição" aos cristãos, mencionada por Eusébio, na prática foi direcionada a um pequeno grupo, ainda freqüentador do Templo Judaico, que por suas reflexões e interpretações tinham entrado em contradição com a doutrina e as práticas judaicas, ocasionando o episódio narrado. O bispo de Cesaréia omite tais informações e não se aprofunda no episódio, embora deixe escapar que os "Doze" não foram alvo desta "grande perseguição". Nesse caso, ele se refere aos apóstolos. E a pergunta que Eusébio não procurou responder é: por que eles não foram também perseguidos ou martirizados? A resposta desta pergunta certamente descaracterizaria a tese de uma "grande perseguição" ou de uma perseguição sistemática dos judeus aos cristãos. Como se pode notar, o autor não aprofunda o assunto porque isto enfraqueceria o próprio argumento que ele tenta desenvolver na obra:
Ora, após a ascensão do nosso Salvador, os judeus, além do que haviam ousado contra ele, armaram contra os apóstolos quantas ciladas puderam. Em primeiro lugar, Estevão foi morto a pedradas; depois dele, Tiago, filho de Zebedeu e irmão de João, foi decapitado e, sobretudo Tiago, o primeiro após a ascensão de nosso Salvador a ocupar a sé episcopal de Jerusalém, foi morto do modo acima descrito. Os outros apóstolos sofreram mil embustes, que visavam a matá-los. (HE, III, 5, 2)
O discurso de Eusébio busca criar uma linha de raciocínio que aponte claramente a ideia de uma perseguição sistemática promovida pelos judeus. Este é o motivo para não dar maiores informações sobre os conflitos envolvendo judeus e cristãos e para não analisar os casos separadamente. Por que, se assim o fizesse, isso poderia mostrar que os conflitos ocorridos eram resultado de um longo período de divergências entre os dois grupos, num contexto em que ainda não era totalmente clara a separação entre judaísmo e cristianismo, e ambos os lados iam definindo mais claramente identidades próprias justamente a partir da convivência e das diferenças que iam sendo criadas.
Essa intensificação das divergências entre judeus e cristãos pode ser observada no episódio do martírio de Tiago, o justo, e nas décadas que se seguiram. Tiago é apontado como um dos apóstolos, diz-se que seria irmão de Jesus, e, como o próprio Eusébio informa, teria ocupado o episcopado de Jerusalém após a morte de Cristo, ficando responsável pela liderança dos cristãos nesta região. Por volta do ano 62, ele foi martirizado em um episódio assaz estranho: o apóstolo teria sido convocado pelos judeus a comparecer ao Templo com o propósito de renegar a fé em Cristo diante do povo reunido. Contra as supostas expectativas dos judeus, Tiago teria reafirmado a fé em Cristo e a sua crença de que Jesus era o filho de Deus. Diante desta atitude, os judeus o teriam precipitado do pináculo do Templo e o assassinado a pauladas (HE, II, 23, 1 a 3).
O que causa estranheza neste episódio é principalmente a suposta expectativa da liderança judaica de que Tiago pudesse publicamente negar o principal fundamento da fé cristã, sendo ele justamente um daqueles que trabalhava para a sua difusão. De qualquer maneira, a divergência manifestada entre judeus e cristãos no martírio de Tiago gira em torno da divindade de Jesus, um dos aspectos de maior controvérsia entre os grupos envolvidos.
Pouco tempo após o martírio de Tiago, teve início o confronto que ficou conhecido como Guerra da Judéia, entre 66 e 70, envolvendo os judeus e a autoridade romana. Pelo que se tem notícia, os cristãos não prestaram qualquer tipo de apoio aos judeus nesse confronto, tendo a maioria deles migrado para a Transjordânia durante a guerra e retornado somente ao fim do conflito, que culminou com a derrota dos judeus e a destruição do Templo Judaico pelos romanos. Para Stockmeier, o episódio envolvendo Tiago foi sem dúvida um dos principais motivos para os cristãos não assumirem em causa própria a revolta dos judeus contra a ocupação romana e para, além disso, terem considerado o resultado final da guerra como uma manifestação do juízo divino (STOCKMEIER, 2006, p.11).
Aliás, este é outro elemento marcante da argumentação de Eusébio acerca dos judeus. Ao longo do texto ele pontua as supostas desgraças ocorridas aos judeus como um resultado dos seus atos contra os cristãos, mostrando o quanto eles seriam culpados por crimes contra os primeiros cristãos e contra a 'obra de Jesus', tendo como ponto clímax de acusação a crucificação de Cristo, ou seja, o autor da obra identifica os judeus como os principais culpados e causadores da morte de Jesus.
Isso se torna para ele crucial para a confirmação do cristianismo contemporâneo a sua época. Pois diferente do judaísmo, o cristianismo ainda precisava ser mostrado como uma religião de bases sólidas e verdadeiras. Dessa forma, mostrar todas as desgraças que sobrevieram ao povo judeu era uma forma de caracterizar o judaísmo, assim como seu povo, como ingratos e desobedientes a Deus. Por isso sofreram as conseqüências de seus atos:
Ora, os membros da Igreja de Jerusalém, através de uma profecia proveniente de uma revelação feita aos fieis mais ilustres da cidade, receberam a ordem de deixar a cidade antes da guerra e transferir-se para uma cidade de Peréia, chamada Pela. Para lá fugiram de Jerusalém os fiéis de Cristo, de sorte que os santos varões abandonaram totalmente a régia capital dos judeus e toda a terra da Judéia. Então a justiça de Deus atingiu os judeus que haviam praticado tais iniquidades contra Cristo e os apóstolos e esta geração de ímpios desapareceram inteiramente do meio dos homens. (HE III, 5.3)
Esse parágrafo é um dos primeiros da obra a fazer referência à justiça divina aplicada aos judeus. Nesse sentido, ele faz alusão às guerras ocorridas na Judéia como um instrumento da justiça de Deus, isentando plenamente os romanos dos seus atos e colocando os judeus na posição de culpados pelas guerras, pois precisavam de um "corretivo" para os seus atos contra os cristãos. Interessante é perceber como a mesma passagem dá uma justificativa para a fuga dos cristãos que viviam na Judéia: como "amigos de Deus" eles foram avisados da desgraça e ordenados a deixar a cidade. Ou seja, o castigo era só para os judeus, por todos os erros que eles vinham cometendo, sobretudo pela perseguição aos cristãos.
Portanto, é relevante enfatizar que Eusébio de Cesaréia outorga todo tipo de perseguição e sofrimento ocorrido aos judeus. Por isso, quando os adeptos do judaísmo passaram a ser perseguidos pelas autoridades imperiais, os cristãos em nenhum momento prestaram apoio ou solidariedade a eles, o que para o autor da obra não é um problema. Afinal as desgraças que sobrevieram ao povo judeu eram claramente ações da justiça divina, mostrando dessa forma que o cristianismo era o legitimo herdeiro da mensagem de Cristo e que todos aqueles que ousassem se levantar contra essa "obra" sofreriam as devidas conseqüências:
Quantos e quais os males que de toda parte se abateram sobre o povo inteiro; como especialmente aos habitantes da Judéia sobrevieram as maiores desgraças; quantos milhares de jovens, bem como de mulheres e crianças, tombaram pela espada, fome e inúmeros gêneros de morte; quantas e quais as cidades judaicas sitiadas; além disso, quais os males terríveis e mais que terríveis presenciados pelos refugiados, enquanto em metrópole bem fortificada, na própria Jerusalém; o modo como se desenvolveu a guerra e quais os acontecimentos peculiares; de que modo, enfim a abominação da desolação prenunciada pelos profetas (Dn 9,27; 12,11; Mt 24,15; Mc 13,14) se instalou no Templo de Deus, outrora célebre e ao qual estava reservada a ruína na completa destruição final pelo fogo - tudo isso, quem o quiser, encontrará com a maior exatidão na História exarada por Josefo. (HE - III, 4)
Convinha de fato, que nos dias em que os judeus haviam infligido a paixão ao Salvador e benfeitor de todos, o Cristo de Deus, eles fossem metidos de certo modo numa prisão a fim de sofrerem a ruína originada da justiça divina. (HE, III, 5.6)
Omitindo, porém, os pormenores dos eventos, e quanto contra eles se empreendeu por meio da espada ou de qualquer outra forma, julgo necessário expor apenas as tribulações ocasionadas pela fome, a fim de que os leitores possam parcialmente saber de que modo sobreveio-lhes sem demora o castigo divino, por causa do crime cometido contra o Cristo de Deus. (HE, III, 5.7)
Sendo assim, a quantidade e a diversidade de desgraças ocorridas aos judeus são, para Eusébio de Cesaréia, provas irrefutáveis dos erros cometidos por esse povo e da maneira como a justiça de Deus recaiu sobre eles, demonstrando claramente que eles haviam falhado na tarefa de condução da verdadeira religião, que tinha lhes sido revelada com a devida antecedência e para a qual eles haviam "virado as costas". Desta forma, justificava-se plenamente a ascensão dos cristãos, aqueles que dariam sustentação e continuidade às revelações divinas, mesmo diante das "duras provas" que lhes sobrevinham. Ou seja, as perseguições, guerras, fomes e demais desgraças ocorridas ao povo judeu eram manifestações claras da justiça divina, por conta dos erros cometidos por esse povo. Já no caso dos cristãos, tratavam-se apenas de provas para testar a sua fidelidade à mensagem divina. E desta maneira, o bispo de Cesaréia vai diferenciando cristãos de judeus, demonstrando que os "acontecimentos" ocorridos com estes povos devem ser devidamente interpretados. Ou melhor, como a interpretação destes supostos acontecimentos no discurso do autor da História Eclesiástica é uma das bases fundamentais para a construção de uma identidade cristã, que ganha um sentido mais evidente justamente através do jogo da diferença com os judeus.
Considerações finais
Partindo da proposta apresentada na introdução deste trabalho, vale ressaltar mais uma vez que as reflexões e as idéias presentes neste texto devem ser entendidas como fruto de um trabalho coletivo, desenvolvido no âmbito do projeto de pesquisa "Identidade e Alteridade na Antiguidade e no Medievo: um estudo comparativo de hagiografias". Foi justamente no decorrer das reuniões e dos debates acerca da História Eclesiástica, de Eusébio de Cesaréia, que surgiram as questões que mobilizaram os esforços dos autores do presente texto: O que levou Eusébio de Cesaréia a adotar um discurso negativo acerca dos judeus? O que ele pretendia com isso? De que forma o discurso adotado pelo autor se relaciona com o cenário de ascensão do cristianismo no seu contexto de escrita?
Foi com o intuito de responder a essas questões que nos apropriamos do conceito de identidade, tal como definido pelo filósofo Tomaz Tadeu da Silva, entendido como um produto das relações sociais cotidianas e que necessita constantemente da diferenciação para ser produzido. Partindo deste referencial teórico, buscou-se analisar o discurso elaborado por Eusébio acerca dos judeus na obra analisada. Como resultado deste processo de leitura, reflexão e análise da História Eclesiástica, pôde-se destacar no presente artigo três aspectos da argumentação do bispo de Cesaréia que relacionam mais diretamente cristãos e judeus: a proximidade do cristianismo com os valores e o modo de vida dos primeiros hebreus; a traição dos judeus a Cristo e a suposta perseguição aos cristãos; e as desgraças ocorridas aos judeus entendidas como manifestação da justiça divina.
Em princípio, o primeiro aspecto destacado poderia apontar um posicionamento cambiante do autor da obra, já que vai buscar nos primeiros hebreus a tradição de valores e o modo de vida dos cristãos. Algo que destoa bastante do posicionamento crítico e negativo que ele demonstra ao longo da obra toda vez que se refere aos judeus. No entanto, o possível paradoxo pode ser desfeito quando se leva em consideração o contexto de escrita da obra, período em que ainda ocorriam perseguições e questionamentos da licitude das práticas cristãs, apontadas como manifestações de uma nova religião, algo que não era bem aceito por uma sociedade marcada pela tradição. Portanto, ao aproximar os cristãos ao gênero de vida e aos valores já manifestados entre os primeiros hebreus, Eusébio procurava garantir uma antiguidade ao cristianismo, encontrando neles a tradição que faltava aos cristãos naquele contexto. Sendo assim, não perde de vista a demarcação de diferenças entre cristãos e judeus, classificando os últimos como traidores da "obra cristã", como aqueles que tiveram a oportunidade de conhecer a "verdade", mas acabaram se desviando do "caminho bom e justo".
Eusébio aponta as supostas perseguições dos judeus aos cristãos como uma prova irrefutável da sua traição "aos desígnios divinos" e do desvio da conduta anteriormente demonstrada pelos primeiros hebreus. Nesse sentido, apresenta em sua obra supostos "fatos históricos" que testemunham uma perseguição sistemática dos judeus aos praticantes do cristianismo. Como se pôde observar na análise, os "fatos" apresentados são na verdade produtos da própria interpretação do autor, que no seu intuito claro de caracterizar os judeus como perseguidores, acaba até isentando os romanos de seus atos, defendendo a idéia de que eles foram, na verdade, instrumentos da ação divina, castigando os judeus pelos seus erros e servindo como prova para a fé dos cristãos.
Ou seja, no final das contas, os romanos não podem ser responsabilizados pelas perseguições e vistos como opressores porque agiam como instrumentos dos "desígnios divinos", o que demonstra claramente a visão providencialista de História manifestada por Eusébio de Cesaréia. Desta forma, todas as "desgraças" ocorridas aos judeus e registradas não sem certa frieza pelo autor da História Eclesiástica, devem servir apenas para demonstrar a eficácia da justiça divina. Porém, a mesma idéia não tem validade quando se trata das "desgraças" ocorridas aos cristãos, nesse caso, são interpretadas como provas necessárias para o testemunho da força de sua fé. Essa dupla argumentação para fatos semelhantes demonstra muito claramente o processo de diferenciação levado a cabo na argumentação do autor da obra.
Diante do que foi apresentado neste trabalho, a argumentação elaborada por Eusébio de Cesaréia acerca dos judeus na obra em questão pode e deve ser entendida como parte de um processo mais amplo de demarcação de uma identidade cristã e de fortalecimento do cristianismo no campo da política imperial romana, algo que correspondia às necessidades contextuais do grupo que ele representava. Como bispo da Igreja Cristã e conhecido defensor do cristianismo no âmbito do Império Romano, cabia-lhe a tarefa de contribuir para o fortalecimento desta religião no período vivenciado por ele e um dos caminhos possíveis para isso era apresentar os cristãos como um grupo religioso completamente diferente dos demais existentes nesse período: é aí que entram os judeus. Estes servem claramente de contraponto às práticas e crenças cristãs, sempre ressaltadas positivamente, servem como pólo negativo sem o qual o pólo positivo não existiria, figuram como aquele "outro" portador das características indesejadas e que supostamente não estariam presentes no "eu", este exaltado sempre através de uma comparação, no mínimo, tendenciosa. Portanto, é através de um procedimento de diferenciação que Eusébio de Cesaréia vai delineando mais claramente uma identidade cristã via diferença judaica, através de um discurso tendencioso que sempre atribui aos judeus características e ações que ajudem a exaltar as virtudes e demais aspectos positivos atribuídos aos cristãos, em oposição àqueles.
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SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: ______. (Org.), HALL, Stuart, WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. P. 73-102.
STOCKMEIER, Peter; BAUER, Johannes B. Antiguidade. In: LENZENWEGER, Josef (et alli). História da Igreja Católica. 3ed. São Paulo, SP: Ed. Loyola, 2006. P.7-112.
* Professor Assistente I da Universidade Federal do Pará, atuando no Curso de História, do Campus Universitário de Bragança, como Professor de História Antiga e Medieval. Mestre em História Comparada (PPGHC/UFRJ). Coordenador do projeto de pesquisa Identidade e Alteridade na Antiguidade e no Medievo: um estudo comparativo de hagiografias, desenvolvido de março de 2010 a fevereiro de 2012, no âmbito da Faculdade de História de Bragança, com a participação de discentes do Curso de História.
** Discente do Curso de História da Universidade Federal do Pará, no Campus Universitário de Bragança. Pesquisadora integrante do projeto de pesquisa Identidade e Alteridade na Antiguidade e no Medievo: um estudo comparativo de hagiografias.
[1] Ao longo do artigo, eventualmente, utilizaremos a sigla HE para fazer menção a esta obra. Após as citações, como modelo de referência, depois da sigla serão colocados os números que indicam o livro, o capítulo e o parágrafo em que se encontra a passagem citada, tal como neste exemplo: (HE, II, 6, 8) [Obra, Livro, Capítulo, Parágrafo].
[2] No âmbito do referido projeto não foi definido, a priori, um conjunto de identidades a serem verificadas através da análise das hagiografias selecionadas. Partiu-se do princípio que a própria análise das documentações iria apontar os tipos de identidades formadas através do discurso hagiográfico. No caso da análise apresentada neste artigo, o foco recaiu sobre a formação de uma identidade religiosa.
[3] O termo hagiografia possui raízes gregas (hagios=santo; grafia=escrita) e, geralmente, é utilizado para designar o conjunto de textos que têm como temáticas centrais os santos e seus cultos, podendo apresentar-se em diferentes tipos literários: atas de martírio, paixões, legendários, vidas, tratados de milagres, relatos de transladações, martirológios, entre outros. Para maiores informações, vide: SILVA, Andréia C. L. Frazão da (Org.). Hagiografia e História: reflexões sobre a Igreja e o fenômeno da santidade na Idade Média Central. Rio de Janeiro: HP Comunicação, 2008.; BAÑOS VALLEJO, Fernando. La Hagiografía como género literario en la Edad Media: Tipologia de doce Vidas individuales castellanas. Oviedo: Departamento de Filología Española, 1989; CERTEAU, M. de. Uma variante: a edição hagio-gráfica. In: . A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense, 1982. P.266-278; VELÁZQUEZ, I. Hagiografía y culto a los santos en la Hispania Visigoda: aproximación a sus manifestaciones literarias. Mérida: Museo Nacional de Arte Romano, 2002.
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