quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Cinema novo: política e engajamento em Barravento de Glauber Rocha




Cinema Novo: Política, Religião e Engajamento em "Barravento" de Glauber Rocha: Reflexões sobre a relação História-Cinema-Ficção por Hélton Santos Gomes

 Sobre o autor[1]


 Temos como objeto de pesquisa o cinema, mais especificamente a obra ficcional denominada "Barravento"[2], 1961, de Glauber Rocha. Neste trabalho procuraremos evidenciar, teórica e metodologicamente, os motivos que fazem com que a análise desta obra seja importante para a História. De acordo com Pesavento, [...] se a arte se apresenta como fonte ao historiador - ou seja, como marca de historicidade que guarda uma impressão de vida - ela é uma fonte que diz sobre o seu momento de feitura e não sobre o tempo do narrado ou figurado. Assim, temáticas e personagens do ciclo arturiano, retomadas no século XIX pela pintura e pela poesia, servem ao historiador não como indícios de entrada ao mundo medieval, tal como ele teria sido, e sim da maneira como o século XIX pensava a Idade Média, ou ainda do modo como, através da inspiração medieval, os artistas do oitocentos expressavam as questões cruciais do seu próprio tempo. É assim que a arte fala sempre das razões e sensibilidades do presente de sua criação. [...]. A arte é fonte privilegiada para o historiador interessado em resgatar não as verdades do acontecido, e sim as verdades do simbólico, expressas no imaginário de uma época. (PESAVENTO, 2002, p. 57, grifo nosso) Diante do fragmento supracitado podemos dizer que a arte, no nosso caso o cinema, é um objeto cultural e tudo que está relacionado à cultura tem uma dimensão móvel, de modo que se reatualiza constantemente, o que nos permite dizer que cultura é, ao mesmo tempo, herança e transformação. E esta cultura é produzida e disseminada na esfera do social, que é o terreno comum onde acontecem as experimentações, entendidas aqui como algo relacional.

 Deste modo, as representações construídas pelo cinema não deixam de ter o "real" como seu referente, [...] seja como confirmação, negação, ultrapassagem, transformação, inscrição de um sonho, fixação de normas e códigos, registro de medos e pesadelos, exteriorização de expectativas, a arte é um registro sensível no tempo, que diz como os homens representavam a si próprios e ao mundo. (PESAVENTO, 2002, p. 57) Estas palavras de Pesavento se revelam importantes para o nosso estudo à medida que Glauber Rocha trabalha constantemente com estas questões em sua obra. Glauber em "Barravento" parte da premissa de que "a religião é o ópio do povo" e a princípio[3] nega que o fenômeno religioso, em certas condições ou circunstancias sociais, possa exercer um papel crítico, de protesto e até mesmo revolucionário. Ao construir tal enredo, o mesmo reafirma a ideia de que o fenômeno religioso contribui para legitimar o "statu quo". Contudo, para que possamos realizar uma análise mais precisa, seria interessante adotarmos como metodologia o diálogo constante entre as esferas micro e macro, a primeira diz respeito ao indivíduo e a segunda à cultura. (GAY, 2010).

 De acordo com Gay É possível, e pode ser altamente produtivo, que os estudiosos da sociedade, ao ler os romances, oscilem entre o macro e o micro, explorando cada um à luz do outro. O romance, numa palavra, é um espelho erguido ao mundo. Mas fornece reflexos muito imperfeitos. (GAY, 2010, p. 18) Estas palavras são muito importantes para nós, pois evidencia a necessidade de ler as obras de arte sempre em relação com a sociedade que lhes deram origem e que irão receber estas obras. Além disto, o fragmento supracitado, ao usar a metáfora do espelho, deixa claro que a obra de arte não nos evidencia a realidade tal como foi, mas sim uma realidade transformada pela linguagem artística que toma o real como parâmetro/inspiração e a transforma, em outras palavras, a obra de arte, tomando o "real" como ponto de partida, tem a liberdade de criar algo novo, algo que não existia até então.

Os olhos do poeta/artista ultrapassam a simples "realidade", pois esta realidade que serviu de inspiração para este artista foi, de certo modo, reatualizada ou (re) construída através da mediação, exercida por este artista, entre a "realidade", aquilo que é vivido, e o conhecimento construído, que pode ser uma poesia, um filme, etc. Acerca da cinematografia de Rocha, mais especificamente sobre o filme "Barravento", Lisboa nos diz que Glauber [...] nega a ideia de transposição pura e simples, ou de registro das tradições populares pela obra de arte, a cultura e a tradição popular sempre aparecem em seus filmes de forma hibrida, transformada, decodificada segundo os parâmetros criadores do próprio cineasta.

 O Candomblé de Barravento é uma recriação do universo mítico afro-brasileiro segundo os conceitos do teatro épico, por isso incomodou tanto os especialistas da área na época. Os personagens de Barravento são hora reais do registro humano, ora arquétipos das identidades míticas que eles representam: Aruan filho do casal Oxalá/Iemanjá, mas também "Ulisses" ou líder nato da comunidade de pescadores; Firmino elemento externo, trazendo um outro parâmetro de julgamento para as condições de vida na comunidade de Buraquinho, mas também arquétipo do elemento mágico que representava Exu e seus múltiplos. (LISBOA, 2006, p. 7, grifo nosso) É por isto que a obra de arte tomada como objeto de estudo para o historiador sempre nos revelará alguma coisa sobre o artista e a sociedade a que pertenceu este artista em uma determinada época e espaço.

 Mas para tal, é preciso considerar a obra de arte em sua historicidade, "integrando-a numa rede de relações e significados em movimento, interagindo com a realidade num incessante e recíproco jogo de pressões e limites". (PEIXOTO, 2011, p. 30) De acordo com Ismail Xavier "no inicio dos anos 1960, o Cinema Novo expressou sua direta relação com o momento político em filmes onde falou a voz do intelectual militante, sobreposta à do profissional de cinema" (XAVIER, 2001, p. 57). Deste modo, para que possamos verificar tal assertiva nos será necessário repor o movimento do Cinema Novo, e consequentemente o filme "Barravento", nas condições históricas de sua produção, recolocando-o no debate estético e político da época, o que supõe confrontá-lo com outros autores e recorrer a outros documentos. (PEIXOTO, 2011). Isto nos ajudará a entender os motivos que levaram os "críticos" e autores do Cinema Novo a propagarem a ideia de que os filmes produzidos pelos cinemanovistas não eram sucesso de público devido ao fato de que os filmes realizados eram dirigidos a um público que praticamente não conhecia o cinema nacional. Como é possível afirmar que o público brasileiro não conhecia o cinema nacional se sabemos da existência do sucesso de bilheterias das chanchadas, gênero que predominava até então, e também do sucesso de público de alguns filmes produzidos pelo cinema marginal, como por exemplo, alguns filmes de José Mojica Marins? Como podemos afirmar que um filme como "O homem do Sputnik", 1959, de Carlos Manga ou "À meia noite levarei a sua alma", 1964, de José Mojica Marins não possui um conteúdo crítico? Deste modo, tomaremos de empréstimo as palavras de Pesavento: Mas não só o cânon estético é levado em conta pelo historiador.

 A mediocridade pode lhes dar mais respostas sobre as sensibilidades de uma época do que a obra do gênio. Se este institui o espírito do seu tempo e o estetiza de maneira arguta e fina, pondo-o em narrativa, a boa recepção da obra literária de menor mérito nos diz também muito sobre o plano da recepção. Sucessos de público indicam algo sobre o horizonte de expectativas de um momento dado da história. (PESAVENTO, 2002, p. 67) Portanto, se o historiador pretende avaliar qual evidência um filme pode fornecer ele deve "procurar não apenas a ficção em questão, mas seu criador e a sociedade desse criador" (GAY, 2010: 24), o historiador tem que estar atento não apenas ao que acontece na cultura do artista/poeta/cineasta, ele tem que se atentar às maneiras como este artista recebe estes acontecimentos sociais, os remodela e os devolve para sociedade. Além disto, tem que se atentar aos modos como a sociedade os recepciona. Entretanto, não podemos ser inocentes e imaginar que a análise do contexto da produção de determinada obra nos dará todas as respostas que queremos.

White nos alerta sobre isto dizendo que A pressuposição informadora do contextualismo é que os eventos podem ser explicados ao serem postos dentro do "contexto" de sua ocorrência. Por que ocorreram como ocorreram há de ser explicado pela revelação das relações específicas que têm com outros eventos ocorrentes em seu espaço histórico circundante. (WHITE, 1992, p. 32-33) White vai mais além ao interpretar Pepper e diz: O contextualista avança, diz-nos Pepper, isolando algum (na verdade, qualquer) elemento do campo histórico como assunto de estudo, seja o elemento tão amplo como "a Revolução Francesa" ou tão pequeno como um dia na vida de uma determinada pessoa. Em seguida passa escolher os "fios" que ligam o evento que vai ser explicado a diferentes áreas do contexto.

 Os fios são identificados, estendidos para fora, na direção do espaço natural e social circundantes dentro do qual ocorreu o evento, e estendidos para trás no tempo, a fim de determinar as "origens" do evento, e para a frente no tempo, a fim de determinar seu "impacto" e "influência" sobre os eventos subsequentes. Essa operação termina no ponto em que os "fios" ou desaparecem no "contexto" de algum outro "evento" ou "convergem" para provocar a ocorrência de algum novo "evento". [...]. O "fluxo" do tempo histórico é encarado pelo contextualista como um movimento ondulatório [...] em que certas fases ou culminâncias são consideradas intrinsecamente mais significativas do que outras. A operação de estender os fios de ocorrências de modo a permitir o discernimento de tendências no processo sugere a possibilidade de uma narrativa em que as imagens de desenvolvimento e evolução pudessem predominar. Mas, na realidade, as estratégias explicativas contextualistas inclinam-se mais para as representações sincrônicas de segmentos ou seções do processo, cortes feitos, por assim dizer, a contrapelo do tempo. (WHITE, 1992, p. 33-34) Ao que parece a historiografia tradicional tem feito exatamente isto, privilegiam e propagam as narrativas que estejam em sincronia com os discursos produzidos pelo Cinema Novo e rechaçam aqueles que não estão. Por que grande parte dos historiadores, ao analisarem o Cinema Novo, se utilizam da análise contextual para referendar um determinado ponto de vista se utilizando de obras produzidas pelos próprios cinemanovistas para realizar uma análise comparativa e descartam as obras produzidas por outros seguimentos cinematográficos, como por exemplo, do cinema marginal ou da chanchada?

Por que estes historiadores não utilizam obras produzidas por outros seguimentos, como por exemplo, pelo Neorrealismo italiano para confrontar com os filmes produzidos pelo Cinema Novo, sendo que este dizia ter se inspirado no Neorrealismo italiano e na "Nouvelle Vague" francesa? Por que não se realiza uma pesquisa sobre a recepção das obras produzidas pelo Cinema Novo no Brasil e na Europa, mais especificamente na Itália e na França? Quando alguns pesquisadores mencionam o fato de que alguns filmes do Cinema Novo não foram sucesso de público, estes alegam que o público não conhecia o cinema nacional ou que o público não era "maduro" o suficiente para compreender o propósito dos filmes.

Ora, nos parece que tal afirmação é equivocada e imprecisa. Se o público não conhecia o cinema nacional como poderemos explicar o sucesso de público das chanchadas? Como o público pode não ser "maduro" o suficiente para compreender os filmes sendo que, de acordo com o discurso cinemanovista, era o próprio "povo" que estava sendo retratado nas telas? O "povo" não era "maduro" o suficiente para compreender a sua própria realidade? Para que possamos tentar responder minimamente a tais questões nos seria necessário realizar um estudo que tivesse como objeto a estética da recepção destas obras. Mascarello diz o seguinte a respeito da falta de novas abordagens em torno do Cinema Novo: De forma que a desestruturação das teorias da incomunicabilidade, bem como sua substituição pela comunicabilidade do culturalismo e do cognitivismo, são noticias internacionalmente correntes que parecem ter sofrido alguma espécie de censura, difícil de compreender, nos estudos de cinema do Brasil. Ou, Talvez, nem tão incompreensível: reconhecer a falência do modernismo político [...] equivaleria, certamente, a consentir na ultrapassagem da maior parte da produção do Glauber teórico e de seus pares latino-americanos dos anos 60 e 70 (Solanas, Espinosa etc.). Daí a opção cômoda da maioria pelo silêncio omisso. O pouco interesse na atualização da teoria do espectador em padrões internacionais obstrui o cumprimento de uma função precípua da Academia: o diálogo com a linha de frente do pensamento contemporâneo (por mais que esta "vanguarda" teórica venha colocar em xeque as estimadas cinematografias dos anos 60). Além disso, em um de seus efeitos mais danosos, produz a inviabilização da recepção. [...]. E o dado mais definitivo: nunca um estudo acadêmico sobre a recepção de um filme brasileiro foi montado no país. As consequências? Óbvias, nefastas. A Universidade se demonstra impotente para fornecer respostas (mesmo que parciais) a questões repetidamente indagadas pela comunidade cinematográfica. Faz-se urgente, em meio às permanentes dificuldades para a afirmação mercadológica e sociocultural do cinema brasileiro, responder a perguntas tão singelas e fundamentais como: Que pensa o público nacional do "seu" cinema? O que espera dele? Que lugar este ocupa em seu imaginário? Constitui (e em que medida) sua identidade cultural? Que opinião tem o público sobre as representações de Brasil nos filmes nacionais? Estas questões, sabe-se muito bem, não têm sido respondidas pela Academia, pelo simples fato de não as ter incorporado à sua agenda investigativa. (MASCARELLO, 2004, p. 7, grifo nosso) Uma abordagem nos moldes propostos por Mascarello nos seria muito útil, haja vista que, segundo o discurso dos cinemanovistas, o Cinema Novo tinha a intenção de realizar um cinema que expressasse um suposto legítimo homem brasileiro que, em outras palavras, seria a classe trabalhadora nacional. E, partindo do pressuposto de que nosso objeto de estudo tem relação direta com o cinema produzido no continente europeu, principalmente na Itália e na França, ser-nos-ia interessante utilizarmos a metodologia de Jacques Revel, denominada por ele de "jogos de escalas". Para ele é o princípio da variação que conta, não a escolha de uma escala em particular (REVEL, 1998)

De acordo com Ricoeur, Depende deste jogo de escalas a postura micro-histórica adotada por alguns historiadores italianos. Ao reterem como escala de observação um vilarejo, um grupo de famílias, um indivíduo apanhado no tecido social, os adeptos da microstoria não somente impuseram a pertinência do nível micro-histórico no qual operam, mas trouxeram para o plano da discussão o próprio princípio da variação de escalas. [...] A ideia chave ligada à ideia de variação de escalas é que não são os mesmos encadeamentos que são visíveis quando mudamos de escala, mas conexões que passaram despercebidas na escala macro-histórica. (RICOEUR, 2007, p. 220-221, grifo nosso) Deste modo, acreditamos que seria interessante trabalhar dialeticamente entre as esferas macro e micro, pois ao mudarmos de escala vemos coisas diferentes, tanto é que no âmbito nacional o discurso autojustificador do Cinema Novo era de que os filmes produzidos por eles possuíam certa "originalidade" e "autenticidade" em relação aos demais, contudo, se utilizarmos da variação de escalas perceberemos que este discurso merece ser tratado com cautela e atenção. Ao sairmos da esfera ou do contexto restrito que envolve a produção do Cinema Novo e ampliarmos um pouco o nosso olhar para o contexto de toda a cinematografia nacional, confrontando vários documentos e obras, perceberemos que várias destas obras produzidas pelos cinemanovistas possuem pontos de aproximação e distanciamento com obras produzidas antes da constituição do Cinema Novo, assim como com obras produzidas em "Hollywood". Um exemplo disto é a obra de Glauber Rocha "Deus e o Diabo na Terra do Sol", 1964, que possui aproximações com o gênero "Western", assim como com "O Cangaceiro", 1953, de Lima Barreto. Além disto, podemos afirmar que não foi o Cinema Novo, mas sim a obra de Nelson Pereira dos Santos "Rio 40 Graus", 1955, que inaugurou a possibilidade de se fazer cinema independente no Brasil, já que na época houve a falência dos grandes estúdios cinematográficos paulistas. Agora ampliaremos um pouco mais a nossa escala e iremos até a Europa.

Já evidenciamos anteriormente que os filmes de Rocha se aproximam com os de outros autores/diretores em diversos aspectos. Como exemplo podemos citar o próprio "Barravento" que se assemelha muito em alguns aspectos com o filme "La Terra Trema", 1948, de Luchino Visconti. Com isto o discurso autojustificador de originalidade pretendida pelo Cinema Novo cai por terra. Entretanto, vale ressaltar que num estudo como este a variação de escalas só será bem sucedida se tomarmos como objeto vários tipos de documentos, relatos e/ou indícios, e o estudo da estética da recepção pode ser um bom começo. Posto isto, acerca da recepção do público europeu aos filmes do Cinema Novo, Paula Siega, em seu artigo intitulado aponta: [...] ingressam os primeiros filmes do Cinema Novo em festivais internacionais, onde privilegia-se uma concepção autoral de cinema que distingue entre produção comercial e artística. A aceitação dos cineastas brasileiros será mediada por esta expectativa de "autoridade" que propiciará leituras críticas contrastantes: de um lado, as que vêem nos filmes autenticas obras de arte e, de outro, as que consideram falsificações de matrizes estéticas européias. (SIEGA, 2008, p. 2) De fato, percebemos inovações na forma de se pensar e problematizar questões sociais em filmes oriundos do Cinema Novo, mas, quanto à estética, a qual muitos defendem como também sendo inovadora, não compartilhamos tais posicionamentos: exemplo da não inovação é a forma com que os mesmos foram recebidos na Europa, sobretudo na Itália onde por muitas vezes foram apontados como cópias de mau gosto de obras existentes.

 Desta forma acreditamos que as palavras proferidas por Silva, ao interpretar La Capra, são importantes para nós. Ele diz: [...]. Em oposição a essa concepção documental, o teórico propõe outra que toma o texto a partir de uma perspectiva que leve em consideração o respeito à sua condição enquanto obra: pensar o texto como um "ser obra" que não se liga mecanicamente a uma realidade histórico-social e que é capaz de propor e construir experiências temporais em sua narrativa. [...]. É seguindo essa linha de raciocínio que o autor reclama da má utilização, através de uma leitura reduzida, de obras literárias durante o fazer historiográfico. Disso deduz-se que se deve explorar não apenas os fatos narrados e que guardam uma relação representacional com uma realidade vivida - a vida do autor (filiações políticas e desventuras pessoais) ou o contexto sócio-político em que se encontra - mas, também, a própria linguagem como constitutiva e constituída de temporalidade histórica. (SILVA, 2011, p. 196-197, grifo nosso) Logo, acreditamos ser de grande importância utilizarmo-nos do conceito "o ser obra" cunhado por La Capra. De acordo com este, " o ser-obra complementa a realidade empírica com acréscimos e roubos" (LACAPRA, 1998, p. 245-246). A partir do momento que nós, pesquisadores do Cinema Novo, tomarmos consciência de que o texto não se liga mecanicamente a uma realidade histórico-social e que é capaz de propor e construir experiências temporais em sua narrativa correremos menos riscos de cometermos injustiças interpretativas e, consequentemente, de propagá-las através de nossas narrativas. Referimo-nos a isto porque, conforme já mencionamos, em diversas leituras localizamos tentativas de hierarquização do cinema brasileiro, onde no ápice desta "cadeia" temos o Cinema Novo como o referencial político, estético e ideológico. Como exemplo podemos citar Ismail Xavier que em sua obra "Cinema Brasileiro Moderno" afirma que No inicio dos anos 1960, o Cinema Novo expressou sua direta relação com o momento político em filmes onde falou a voz do intelectual militante, sobreposta à do profissional de cinema. Assumindo uma forte tônica de recusa do cinema industrial - terreno do colonizador, espaço de censura ideológica e estética -, o Cinema Novo foi a versão brasileira de uma política de autor que procurou destruir o mito da técnica e da burocracia da produção, em nome da vida, da atualidade e da criação. Aqui, atualidade era a realidade brasileira, vida era o engajamento ideológico, criação era buscar uma linguagem adequada às condições precárias e capaz de exprimir uma visão desalienadora, critica, da experiência social. (XAVIER, 2001, p. 57, grifo nosso) Não discordamos de Xavier quanto à importância e o caráter político ativista empregado no trabalho de cineastas ligados ao movimento do Cinema Novo, mas percebemos em sua defesa certo juízo de valor acerca da negação da linguagem do cinema industrial, o que torna seu processo de análise impreciso. Assim sendo, a nosso ver, Ricoeur é muito feliz ao trocar o conceito de "representação" pelo de "representância" com o intuito de evidenciar que a representação não é neutra em si mesma, ela tem intencionalidade. Segundo Ricoeur A palavra "representância" condensa em si todas as expectativas, todas as exigências e todas as aporias ligadas ao que também é chamado de intenção ou intencionalidade historiadora: designa a expectativa ligada ao conhecimento histórico das construções que constituem reconstruções do curso passado dos acontecimentos. Introduzimos acima essa relação sob a feição de um pacto entre o escritor e o leitor. Diferentemente do pacto entre um autor e um leitor de ficção que se baseia na dupla convenção de suspender a expectativa de qualquer descrição de um real extralinguístico e, em contrapartida, reter o interesse do leitor, o autor e o leitor de um texto histórico convencionam que se tratará de situações, acontecimentos, encadeamentos, personagens que existiram realmente anteriormente, isto é, antes que tenham sido relatados, o interesse ou o prazer de leitura resultando como que por acréscimo. A pergunta agora colocada visa a saber se, como e em que medida o historiador satisfaz à expectativa e à promessa subscritas nesse pacto. (RICOEUR, 2007, p. 289)



 De acordo com as reflexões de Ricoeur podemos dizer que a linguagem histórica é atravessada por temporalidades, e a compreensão de qualquer realidade passa, necessariamente, por uma análise atenta e contextualizada das formas narrativas sob as quais essa linguagem se organiza. Deste modo, concordamos com Silva quando este nos diz que Ricoeur é muito feliz ao destacar em seus estudos a influência do local de leitura, ou seja, a importância da experiência estética da leitura e o ato de ler como prática histórica que, segundo ele, é marcada por lugares e expectativas que devem ser levadas em consideração no momento da problematização histórica do texto literário. (SILVA, 2011) Diante de tudo que foi exposto tomaremos de empréstimo as palavras de Nietzsche quando este nos diz: O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu o que são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam a sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas. (NIETZSCHE, 1873, p. 57, grifo nosso)

 Destarte, partilhamos das palavras de Vieira quando esta nos diz que "as linguagens conferem memoriabilidade à experiência ("mise em memoire"), e embora estejam ambas, sensibilidade e formas linguísticas, submetidas à mudança histórica, seus ritmos de transformação são manifestamente diferentes" (VIEIRA, 2011, p. 357). Portanto, A linguagem não é um efeito direto do que poderíamos chamar de realidade: ela é um elemento constitutivo dessa realidade. Logo, a linguagem, como categoria histórica, é constituída de temporalidade. [...]. Em outro nível, a linguagem pode funcionar como ferramenta/suporte para a compreensão das formas como, numa dada configuração, o ser humano se põe no mundo, se constitui como ser histórico (temporal). (SILVA, 2011, p. 199, grifo nosso) É preciso termos em mente que as linguagens constituem e institui o mundo real, logo, nós historiadores temos que ser responsáveis e éticos na prática de nosso oficio. Conforme já mencionamos, ao analisarmos algum objeto, seja ele uma obra de arte ou não, temos que recolocá-lo no debate estético e político de sua época e, consequentemente, confrontá-lo com outros autores e recorrer a outros documentos (PEIXOTO, 2011), mas sem perder de vista, na medida do possível, a mobilidade do olhar, ou seja, o jogo de escalas. Além disto, não podemos perder de vista que este passado, erigido pela linguagem, sempre é mediado pela visão do historiador/pesquisador que está imerso em seu presente que sem dúvida será um tempo e espaço diferente de seu objeto de estudo. De acordo com Vieira, nesta relação [...] se dá um inevitável entrelaçamento entre subjetividade e objetividade, julgamento e construção, temporalidades passadas e presentes, cuja irredutível interação exige negociações complexas e uma tensão que preserve o máximo de espaço possível para a alteridade do que foi, mas já não se mantendo mais a crença na ideia de reatualização ou reconstrução fiel de outro tempo. (VIEIRA, 2011, p. 356) Por isto é necessário realizarmos um estudo criterioso de nosso objeto em questão, mediante procedimentos de pesquisa, mas para isso é preciso estarmos bem munidos teórica e metodologicamente, até mesmo porque, conforme afirma White, "relatos narrativos não consistem apenas em afirmações factuais (proposições existenciais singulares) e argumentos, mas também em elementos retóricos e poéticos", (WHITE, 2006, p. 193) o que faz de todo "texto", entendido aqui como relatos narrativos, uma representação de uma determinada realidade. Referências bibliográficas GAY, Peter. Represálias Selvagens: realidade e ficção na literatura de Charles Dickens, Gustave Flaubert e Thomas Mann. São Paulo: Cia das Letras, 2010. LISBOA, Fátima Sebastiana Gomes. A arte revolucionária recusa a mistificação da revolução: a contribuição de Glauber Rocha para a discussão sobre a relação cinema e história. In: Anais Eletrônicos do VII Encontro Internacional da ANPHLAC, Campinas, 2006. MASCARELLO, Fernando. O dragão da Cosmética da Fome Contra o Grande Público: uma análise do elitismo da crítica da cosmética da fome e de suas relações com a Universidade. In: Intexto. Porto Alegre: UFRGS, v. 2, n. 11, p. 1-14. NIETZSCHE, F. [1873] - Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. Tradução de Rubens Rodrigues T. Filho. Coleção "Os Pensadores". São Paulo: Nova Cultural, 1999. OLIVEIRA E SILVA, José L. Narrativas Urbanas: Sensibilidades e fantasmagorias modernas em O Coração Denunciador, de Edgar Allan Poe. In: História e Perspectivas. Uberlândia, 45, p. 193-215, 2011. PEIXOTO, Maria do Rosário da C. Saberes e Sabores ou conversas sobre história e literatura. In: História e Perspectivas. Uberlândia, 45, p. 15-33, 2011. PESAVENTO, Sandra J. Este mundo verdadeiro das coisas de mentira: entre a arte e a história. In: Estudos Históricos, RJ, n. 30, 2002, p. 56-75. REVEL, Jacques. Jogos de Escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora FGV. 1998. RICOEUR, Paul. Explicação/Compreensão e A representação historiadora. In: A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, p. 193-301. SIEGA, Paula. Ressonâncias Sertanejas em Alberto Moravia e Gianni Amico: Leituras do Centro sobre a periferia. In: XI Congresso Internacional da ABRALIC: Tessituras, Interações, Convergências. São Paulo, 2008. VIEIRA, Beatriz de Moraes. Ecos e ressonâncias teóricas: para pensar a relação entre poesia e história. In: A palavra perplexa: experiência histórica e poesia no Brasil nos anos 1970. São Paulo: Hucitec, 2011, p. 346-392. WHITE, Hayden.

 A poética da história. In: Meta-História: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: EDUSP, 1992, p. 17-56. WHITE, Hayden. Enredo e verdade na escrita da história. In: MALERBA, J. (Org.). A História Escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006, p. 191-210. XAVIER, Ismail. Cinema Brasileiro Moderno. 3ª ed. São Paulo. Paz e Terra. 2001. [1] Mestrando em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia, integrante do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (NEHAC) e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

 E-mail: hellpet@hotmail.com [2] Barravento narra a estória de um grupo de pescadores de Xaréu que vivem numa aldeia pobre da Bahia, cujos antepassados vieram da África como escravos. Com eles permanecem antigos costumes como, os cultos místicos ligados ao Candomblé. A chegada de Firmino, antigo morador da aldeia, que havia se mudado para a cidade para fugir da pobreza, altera todo o panorama local, polarizando tensões. [3] Mencionamos "a principio" porque a obra de Glauber é bastante complexa, de modo que não poderemos discuti-la em seus pormenores neste trabalho, pois se o fizéssemos iríamos estender demasiadamente este trabalho, haja vista que teríamos que estabelecer alguns diálogos com vários pensadores marxistas, inclusive com os autores que defendem e divulgam a Teologia da Libertação.

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