A erva-mate é nativa de algumas regiões da América do Sul, dentre as quais: nordeste do Paraguai; província de Missões na Argentina e; nos estados brasileiros do Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul (o qual denominamos neste artigo de "Antigo Sul de Mato Grosso" ou "SMT", devido ao período estudado ser anterior a divisão em dois estados, ocorrida em 1977). Assim, antes de qualquer coisa, devo salientar que, embora algumas informações venham parecer demasiado superficiais, isso se deve ao espaço e ao fato deste artigo ser uma tentativa de abertura de diálogo, comparativo diga-se, sobre as relações de trabalho e as condições de vida dos trabalhadores dos ervais, mas não só isso, tomando três localidades diferentes, os estados do Paraná, Santa Catarina e Mato Grosso, cujas atividades comerciais em relação à erva-mate vêm desde o século XIX, pelo menos, e se relacionam ao longo dos processos históricos e ciclos da economia ervateira, envolvendo ainda questões relacionadas à evolução das técnicas de trabalho.
Temos que nas localidades por mim consideradas neste artigo fazia-se uma separação, baseada no
status dos indivíduos, entre trabalhadores, proprietários, produtores de erva-mate cancheada
[2] e mesmo industriais (ou beneficiadores) do mate, assumindo diversas denominações de acordo com a localidade observada. Nem sempre os donos dos ervais, ou ainda os industriais, trabalhavam eles mesmos na extração, no cancheamento ou no beneficiamento do produto. É certo que nos pequenos ervais paranaenses e em Santa Catarina fossem usadas formas familiares de trabalho, onde os proprietários trabalhavam, por vezes juntamente com seu núcleo familiar, na elaboração do produto, onde também não faltavam formas de hierarquização.
Voltando nossos olhares para o século XIX, deparamo-nos com a questão de existirem ou não o uso de trabalhos escravos nos ervais, no que Temístocles Linhares nos diz que "havia um traço pouco compatível com a situação do escravo: a sua inconstância". Seria mais correto falar em "servidão", "trabalho forçado" ou "compulsório". No Paraná desde esse período já se falava em "salário", no uso dos "jornaleiros", empregados na coleta, ou mesmo simplesmente em "trabalhadores"
[3]. Depois, também, "o trabalhador assalariado era submetido a um sistema de controle e incentivo
[...], além de estar sujeito a demissão e admissão, segundo as necessidades da empresa"
[4].
Segundo Virgílio Corrêa Filho, os "mineiros"
[5] no estado de Mato Grosso sujeitavam-se "aos processos de trabalhos mais primitivos e brutais", concordando com ele Gilmar Arruda, quando trata das condições de trabalho impostas pela Companhia Mate Laranjeira
[6]. Além disso, Corrêa Filho complementa falando sobre a origem do trabalhador, que na sua maioria dominante era constituída de paraguaios. É claro que entre esses trabalhadores era grande o contingente indígena, que viram suas terras serem ocupadas pela Companhia Mate Laranjeira, por colonos rio-grandenses e depois também pela Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND)
[7], a partir da década de 1940. Muitos tiveram que se submeter aos trabalhos nos ervais como forma de sobreviver e permanecer em suas terras tradicionais, ou próximas delas.
O que restava na região fronteiriça mato-grossense-paraguaia, pelo menos à "massa" trabalhadora dos ervais, seria um regime de "semi-escravidão", ou "servidão" como prefere Caio Prado Júnior (1979), onde eram presos os empregados em regimes de trabalho compulsório. Assim ocorria, por exemplo, nos domínios da Companhia Mate Laranjeira, onde esses mesmos homens eram submetidos a códigos de postura e por vezes ao policiamento, coisa que ia além do horário de trabalho, ficando patente essa situação em Guaíra e Campanário
[8], aglomerados com características urbanas de propriedade da Companhia
[9]. Ao mesmo tempo, são inúmeros os casos conhecidos de fugas, conflitos e mortes por causa das condições em que viviam esses trabalhadores nos ranchos ervateiros da Companhia Mate Laranjeira
[10].
Em Mato Grosso os "conchavos" eram as formas correntes de "contratação" dos trabalhadores paraguaios, realizadas por um intermediário que recebia por número de "conchavados". Envolvia uma estratégia de sedução para que o trabalhador aceitasse o contrato. Acontecia, geralmente, durante um
jeroki(um baile), quando os "conchavadores" aproveitavam-se dos paraguaios para reuni-los e deixá-los disponíveis para os trabalhos em determinadas localidades
[11]. Nesse contexto, como complemento da coação era feita a entrega de
antecipos(adiantamentos), a fim de chamar a atenção dos possíveis trabalhadores e prendê-los no trabalho por dívida.
Sobre a rotina dos ervais do extremo sul de Mato Grosso, Gilmar Arruda descreve o dia a dia dos trabalhadores da Mate Laranjeira
[12], que bem serve também, em certa medida, para a produção independente da empresa no estado (produtores geralmente chamados pela empresa de
changa-y, ladrões de erva), já que os processos, com algumas sutis modificações continuaram os mesmos. Tudo começava antes mesmo da instalação dos ranchos, com o descobrimento dos ervais, sua localização dentro das matas, trabalho esse feito pelos
monteadores, ou simplesmente chamados de "exploradores". "Aos dois ou três, a pé ou montados, armados, com instrumentos para abertura de picadas e providos dos alimentos necessários, internavam-se nas matas, onde passavam de dois a cinco dias"
[13].
Fez e faz-se ainda uma discussão sobre os benefícios à saúde proporcionados pelo mate
[14], onde se menciona a resistência física e sensação de saciedade que seu consumo proporciona. No caso do Mato Grosso, isso aparecia nos relatos sobre os trabalhadores, os quais tendo uma vida de poucos recursos, constantemente tendo que se embrenhar nas matas em busca das "minas", viam no mate um "instrumento para enganar a fome".
Na década de 30, já com o advento da "Marcha para Oeste", no Estado Novo, o Governo Federal pregou o progresso e a nacionalização das fronteiras com os países vizinhos, especialmente o Mato Grosso com o Paraguai, na região onde o Guarani era a língua mais falada. Uma das primeiras medidas, antes mesmo de implantar as colônias agrícolas, foi a instauração da Lei de Nacionalização de Mão de Obra, chegando a enviar trabalhadores desempregados dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro para os ervais mato-grossenses. Para o bem ou para o mal, ao que se sabe, os mesmos não teriam se adaptado às condições de trabalho que eram impostas aos paraguaios e indígenas, mesmo nos casos em que não trabalhassem diretamente nos ervais.
A desclassificação do trabalhador nacional, através da divulgação de sua suposta não adaptação às condições de trabalho exigidos nos ervais, revela de um lado, as reais condições à que estavam submetidos os trabalhadores paraguaios, de outro, a maneira encontrada pela Mate [Laranjeira] para continuar recrutando mão de obra de origem paraguaia[15].
Fica neste ponto evidente uma preferência pelos trabalhadores fronteiriços por serem eles antes de qualquer outra coisa mão de obra barata. Os enviados da região Sudeste do Brasil também não estavam enquadrados em disciplinamentos nos locais de origem, também não estavam inseridos nas relações de trabalho mais afiguradas aos tipos capitalistas nas localidades, que já avançavam, de certa forma, na questão de urbanização. Com as colônias agrícolas nacionais, neste caso especialmente a Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND), no sul de Mato Grosso, "menina dos olhos" de Getúlio Vargas, é que ocorreu de fato um aumento populacional de trabalhadores não paraguaios
[16], vindos, sobretudo, do Nordeste brasileiro. Uma grande parte desses migrantes encontrou erva-mate em seus lotes, sendo que uns arrancaram as árvores para a limpeza e implantação de culturas agrícolas, outros, no entanto, viram na economia ervateira um meio de sobreviver em um espaço de difícil escoamento de qualquer tipo de produção, mas que tinha um mercado certo para a
caa[17], ainda que este mercado por algum tempo tivesse sido a própria Companhia Mate Laranjeira.
Já no estado do Paraná, os trabalhadores conhecidos como "camaradas" não pareciam ter melhor sorte. Segundo Linhares, o estado teria passado por pelo menos três fases de transformações técnicas no que diz respeito à produção ervateira, que alteraram as relações de trabalho e as formas de convivência na região. A princípio, na primeira fase, as técnicas dos engenhos do século XIX, com processos rústicos de sapeco e morosidade no preparo, incluiria ainda os engenhos movidos a água, em alguns casos a vapor, técnicas extremamente rústicas, processos basicamente manuais. A presença de escravos é notada, embora, segundo o autor, seja em número bem reduzido, como já vimos, e em algumas poucas atividades. A segunda fase ganharia novas técnicas, com processos mecânicos sendo introduzidos, mas com permanência ainda de formas manuais em diversas cidades da então província do Paraná, já tendo avançado, também com a adoção de barbacuás de "tipo paraguaio". Já na terceira fase, começando entre 1875 e 1880, teríamos uma verdadeira transformação nas técnicas industriais, ganhando finalmente ares de modernidade.
Nos meados do século XX, tendo como destaque o aparecimento, embora não em todos os lugares, da energia elétrica, o próprio Linhares se isenta de caracterizar uma nova fase, preferindo sair pela tangente, dizendo que o mate, ao menos no Paraná, quando ele escreve em 1969, já "ultrapassou seu período áureo"
[18].
No Mato Grosso nenhum autor chegou a separar, ao que parece, a produção de erva-mate por fases (a não ser antes, durante e após a existência da Mate Laranjeira). Em termos de inovações tecnológicas, embora os ranchos fossem considerados melhor equipados do que os "soques" rio-grandenses (principalmente os maiores), o que temos é uma permanência nos processos produtivos simples de experiências e técnicas herdadas dos indígenas e paraguaios. Talvez uma das poucas inovações que tenha se destacado neste ponto seja a introdução de "cilindros" movidos por animais para o cancheamento, a partir da década de 1910, mas, ainda assim, reservado aos ranchos em que existissem ervais grandes e mais densos, isso porque nos ranchos menores, chamados também de "ranchadas"
ou
"ranchitos", em que predominavam instalações precárias, a tendência era a da mudança de lugar de acordo com a duração da extração, sendo incompatível com tal aparelho
[19]. Outra instalação que inovou de certa forma os trabalhos ervateiros nesse estado foi a "tambora", usada para o sapeco, que semelhante ao que ocorreu com o
"cilindro", seria destinada especialmente aos ranchos de caráter mais permanente. A "tambora" protegia a planta da ação destrutiva dos cortes, tradicionalmente feitos com facões, sendo que não havia necessidade de galhos grandes, ficando o corte mais próximo ao talo e das folhas. Tempos depois, o Instituto Nacional do Mate chegou a tentar a introdução do uso de tesouras
Entretanto, apesar das intenções do Instituto e da concorrência de alguns patrões, os mineiros não aceitaram as propostas de mudança. O argumento usado para rejeitá-la foi bastante revelador do peso da tradição: "recusaram de imediato posto que assim procediam seus antepassados e quem não carregasse o raído de erva às costas, como faziam, não era hombre[20].
Para além do aspecto econômico, vale notar ligeiramente que no mundo do trabalho de Mato Grosso (e creio que não seria tão diferente nos outros estados ervateiros), o aspecto simbólico era bastante presente nas manifestações culturais, nos tratos interpessoais e formas de compreensão de si mesmo e dos "outros". Desde o fim do século XIX, passando pelas décadas iniciais do XX e o período por mim estudado (até a década de 1970), o "ritual", se assim podemos chamar, de produção de erva-mate parece ter uma permanência muito forte, indo sempre do corte com facão das erveiras, ao sapeco e secagem pelos
urus[21] nos
barbacuás[22], ao
cancheamento, etapa do semipreparo, e finalmente ensacamento e transporte para beneficiamento (que nesse caso era feito já na Argentina). Essas práticas, formas de trabalho e as ferramentas tradicionais usadas (facões para cortar, a estrutura dos barbacuás para secagem, os raídos, etc.), apesar de algumas ações por parte do estado e mesmo dos produtores com o fim de modernizá-las, se mostraram bastante duradouras, envolvendo simbolismos muito fortes. Um exemplo disso é a ligação da virilidade dos
"mineiros"com o tamanho de um
raído[23] por ele carregado, quanto maior e mais pesado melhor, mais
hombre ele era. É como se repetissem constantemente em suas mentes que quanto maior estivesse sua carga, a quantidade de galhos cortados e amontoados nos
raídos, maior seria sua fama, seu reconhecimento, escondendo toda carga simbólica e as representações que isso viesse a carregar, incutindo em sua mente apenas uma necessidade supostamente natural, quando na verdade levaria o interesse dos encarregados pelos ranchos ervateiros e mais amplamente os dirigentes da Companhia Mate Laranjeira. Creio que esse simbolismo da hombridade tenha permanecido ainda com os colonos da CAND, por certo que no caso em que fossem contratados trabalhadores paraguaios, que passavam a ficar disponíveis com o fim dos arrendamentos de terra por parte da Companhia.
Não era tão fácil também a vida de um bom número de donos de ervais e pequenos produtores (no Mato Grosso os independentes da Companhia Mate Laranjeira), sendo que vários fatores influenciavam na perda de ganhos com o produto. Para que possamos dar um exemplo disso, o Instituto Nacional do Mate, através de suas reuniões da Junta Deliberativa e da Diretoria, trabalhando com suposições e prospecções, executava análise de mercado, das taxas de câmbios, além de estudos diplomáticos, através dos quais tentava prever o futuro do produto e traçar medidas a serem tomadas ou repassadas na forma de pedidos às entidades e autarquias do Governo Federal. O que se sabe é que nem sempre essas previsões tinham os resultados esperados, isso por serem dependentes de muitos fatores e estarem sujeitos a muitos imprevistos, dentre os quais um mau andamento das colheitas em um dos estados produtores, que poderia ser agravado por mau tempo, geadas, pragas nos ervais (como o caso do coruquerê
[24]), etc.
Além disso, nos casos de Mato Grosso, Paraná e Santa Catarina, em relação às suas exportações para a Argentina, poderiam surgir ânimos desfavoráveis dos importadores, por vezes resultantes de conflitos de interesse entre produtores e industriais daquele país, sendo que os primeiros defendiam sempre a suspensão das importações do produto brasileiro e ampliação do parque moageiro no próprio país. Poderiam ocorrer também, como ocorreram, crises políticas e econômicas. Por fim, teríamos as ações diplomáticas, que poderiam ou não favorecer as exportações do produto brasileiro, cumprir ou não acordos firmados.
Todos esses fatores apontados afetavam diretamente o dia a dia do trabalhador, seja na sua remuneração, que já era baixa, seja ainda em relação aos esforços e cobranças, que presumo fossem aumentados em situações de crise ou desconforto na economia ervateira. Estes não eram necessariamente também os donos dos ervais em que trabalhavam, podendo ser pagos por produção, empreitada, ou em alguns casos como mensualeiro, recebendo por mês trabalhado, como era geralmente o caso dos urus (barbacuazeiros).
Para Laércio Cardoso de Jesus
O baixo padrão de vida do trabalhador ervateiro de Mato Grosso decorria das incertezas dos mercados consumidores ervateiros e também da ausência de mercado de trabalho alternativo. Isto levava as populações fronteiriças a aceitar as duras condições nos ervais, restando a estas, refúgios ao embrenhar-se nas matas ervateiras, a fim de obter um mínimo de possibilidades de sobrevivência[25].
Temístocles Linhares fala sobre a presença dos imigrantes europeus nas regiões ervateiras, sobretudo nos estados sulinos, mostrando seu apreço por sua sabedoria e inventividade
[26]. Pode ser que os europeus tenham trazido experiências diferentes e técnicas que não eram conhecidas, especialmente nos estados do sul do Brasil, contudo, as invenções e inovações propostas quase sempre esbarravam nos escassos recursos dos pequenos ervateiros, se limitando ao alcance de uns poucos grandes industriais. Mesmo nas invenções de brasileiros, exemplo muito citado de Francisco de Camargo Pinto, um dos "fundadores" da
terceira fase do mate paranaense, tais limitações se mostravam latentes. Discordando em parte de Linhares, Samuel Guimarães da Costa diz que "o imigrante se fez ervateiro
[...]. Foi mais influenciado que influenciou"
[27].
Com relação às limitações de recursos e materiais, parece não ter sido diferente também no estado de Mato Grosso, onde até a década de 1940 predominava a Companhia Mate Laranjeira, sobrando aos pequenos produtores, antes do surgimento das cooperativas nessa mesma década, recorrer à natureza e aos seus conhecimentos adquiridos e transmitidos religiosamente por gerações, pelos regionais, paraguaios ou indígenas, habituados ao trata do mate, daí por ter-se o seu
know-how indispensável e insubstituível
[28]. É certo que a Companhia investia em infraestrutura e meios de escoamento da produção no estado, mas os melhoramentos nem sempre, ou quase nunca, se convertiam em qualidade de vida para os trabalhadores.
Nesse sentido, também, uma diferença dos engenhos paranaenses em relação aos ranchos ervateiros de Mato Grosso era quanto ao número de trabalhadores, mudando, às vezes, as formas de instalação e materiais utilizados. No Paraná, quase sempre, o número de "camaradas" era reduzido, menos de uma dezena em alguns casos, segundo Linhares, isso em todas as
fasesda história ervateira no estado, não diferindo muito do caso catarinense
[29]; enquanto que o número de "mineiros" mato-grossenses variava bastante, podendo concentrar alguns poucos ou algumas dezenas de pessoas, considerando que o número de "ranchadas" ervateiras mato-grossenses era grande e sempre rotativo, ocupava-se entre 10 e 20 pessoas, aumentando o número de trabalhadores nos ranchos maiores e de maior permanência
[30].
Em relação às questões de trabalho em Santa Catarina, Alcides Goularti Filho nos diz que "até meados dos anos 40, a base produtiva da economia catarinense
[no conjunto] era comandada pelo pequeno e pelo médio capital mercantil". Era pequena a parcela das indústrias com mais de 80 trabalhadores, em todos os setores produtivos, uma pequena parcela no conjunto, tanto na produção como na geração de emprego
[31]. Dada a entrada constante de imigrantes, a oferta de mão-de-obra nunca foi escassa nesse estado, não chegando ao ponto de estrangular a produção das principais mercadorias exportadas. O mercado de trabalho para todos os setores era formado por colonos imigrantes, pescadores açorianos, caboclos do planalto e mão de obra oriunda de outros estados
[32].
As condições de trabalho ervateiro eram precárias, assim como as condições de vida dos trabalhadores catarinenses, diferindo claramente da situação de uma parte dos proprietários e por certo dos industriais.
Mesmo em Mato Grosso, temos ainda, com algumas nomenclaturas diferentes, os empreiteiros e empregadores, além dos produtores e donos de armazéns, especialmente em Dourados e Ponta Porã. Temos depoimentos de moradores da região que contratavam paraguaios ou outros moradores para os trabalhos de extração e "cancheamento", tendo em vista que a erva-mate cancheada era o único tipo de produto para exportação do estado para a Argentina, seu principal mercado consumidor.
Uma questão que se colocou em relação à economia ervateira e é interessante para discussão de mercado e mão de obra é a oposição de interesses entre industriais e produtores, valendo uma rápida menção neste artigo. Para Samuel Guimarães de Costa os produtores sempre perderam essa queda de braço, mesmo, e, sobretudo, quando do tempo de vida do Instituto Nacional do Mate, que priorizava, ao que parece, os industriais, especialmente o "parque moageiro" paranaense, tendo em conta este estado ser o maior produtor e exportador de erva-mate
[33]. Para Temístocles Linhares o Instituto teria dado atenção aos produtores, embora ele mesmo reconheça que algumas medidas restritivas impediram o bom desenrolar da economia para as centenas de produtores, que dependiam do mate para sua sobrevivência. Uma ata de uma reunião da Junta Deliberativa do Instituto Nacional do Mate, de 19 de dezembro de 1942
[34], deixa transparecer o descontentamento de um representante dos produtores de Mato Grosso, quando o senhor Lício Borralho, salientando a pouca atenção que a autarquia dispensava aos mesmos. Ele se manifestou no sentido de que se promovesse um estudo para o aumento da erva-mate produzida nos estados ervateiros, lembrando o fato de estar o produtor "ao contrário do exportador, no caso de Mato Grosso, desamparado pelo INM".
A oposição entre industriais e produtores como era de se esperar afetava os trabalhadores
[35], no sentido de que as medidas privilegiavam os industriais, com taxas de exportação, restrições e cotas de venda aos mercados tradicionais. Para Costa, com esse privilegiamento, o poder ficava na mão dos industriais, que representavam uma parcela ínfima na produção ervateira. Ele, assim como Linhares e a maioria dos autores, não trata das questões de trabalho ou nem mesmo se debruçam no assunto sob a ótica dos "microespaços" e "microanálises", visualizando o mercado
como "um todo", não focando a figura dos trabalhadores, personagens chaves dessa "história ervateira", o que ocorreu na tentativa feita por Gilmar Arruda em seu livro "Frutos da terra: os trabalhadores da Matte Laranjeira", de 1997, já mencionado e discutido anteriormente.
Por fim, vale dizer que, apesar dos aspectos econômicos permearem este artigo, não podemos nos esquecer que outras relações ocorriam, especialmente as culturais, com trocas de experiências e vivências, com momentos dedicados ao lazer e ao cultivo das relações interpessoais, não podendo ser resumidos às relações de trabalho. Tanto trabalhadores quanto produtores e industriais, de maneira geral, tinham seus espaços privados de convivência, onde podemos incluir: as
bailantas ou
jerokis dos ervateiros de Mato Grosso; festas religiosas; usos e experiências trocadas com os indígenas; os clubes sociais (CTGs gaúchos, clubes de campo, etc.); outras festas requintadas de alguns poucos que tinham amplos recursos financeiros; sobrando espaço ainda aos eventos esportivos
[36], como as cavalgadas e hipismo, os jogos de futebol, vôlei, além de outros
[37]. O certo é que havia tantas outras formas de conviver socialmente, que não podem ser resumidas, claro, apenas às festividades, incluindo ainda as relações conjugais e as brincadeiras de criança
[38].
Portanto, se aprofundarmos o assunto, perceberemos, consideradas suas proporções, que a vida nos ervais não era feita só de sofrimento e pesar.
Referências bibliográficas
ARRUDA, Gilmar. Frutos da terra: os trabalhadores da Matte Laranjeira. Londrina: Editora UEL, 1997.
CORRÊA FILHO, Virgílio. A sombra dos hervaes mattogrossenses. São Paulo: São Paulo Editora, 1925.
COSTA, Samuel Guimarães da. A erva-mate. Curitiba: Coleção Farol do Saber, 1995.
GOULARTI FILHO, Alcides. A formação econômica de Santa Catarina. in Ensaios FEE, v. 23, n. 2, Porto Alegre: 2002.
JESUS, Laércio Cardoso de. Erva-mate: o outro lado - a presença dos produtores independentes no antigo Sul de Mato Grosso. 2004. Dissertação (Mestrado em História) - PPGH/FCH/UFMS, Campos de Dourados, MS.
LINHARES, Temístocles. História Econômica do mate. São Paulo: José Olympio Editora, 1969.
OLIVEIRA, Benícia Couto de. A política de colonização do Estado Novo em Mato Grosso (1937-1945). 1999. 255 f. Dissertação (Mestrado em História) - FCL/UNESP, Assis, SP.
PRADO JR., Caio. A questão agrária no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1979.
VALVERDE, Orlando. Geografia Agrária do Brasil. 1° Vol. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Estudos Pedagógicos, 1964.
[1] Mestre em História pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) com a dissertação "Erva-mate e frentes pioneiras: dois mundos em um só espaço (1943 a 1970)". E-mail:
jose_jaf@hotmail.com.
[2] Forma de preparo da erva-mate, considerada pelos industriais e alguns autores como "semipreparada". O processo final da produção simplificada de erva-mate, quando ocorre a malhação, coagem e ensacamento, diferenciando do beneficiamento por este acrescentar alguns cuidados adicionais, como embalagens padronizadas, por exemplo.
[3]LINHARES, 1969, p. 239.
[4]LINHARES, 1969, p. 239.
[5] Designação dada aos trabalhadores dos ervais mato-grossenses, fazendo alusão à erva-mate como um "tesouro", aqueles que faziam a colheita, o
sapeco e o transporte aos pontos de carregamento.
[7] Sobre a presença dos indígenas nos trabalhos ervateiros cabe uma consideração a respeito da dificuldade corrente de muitos autores em diferenciar a população indígena, sobretudo da etnia guarani, mas também Kadiwéu, em meio aos demais trabalhadores, sendo por vezes confundidos com os paraguaios. Sobre isso ver trabalho de Eva Maria Luiz Ferreira e Antonio Brand, "Os Guarani e a erva-mate", Fronteiras - Revista de História, vol. 11, n. 19, UFGD, 2009. Outro texto mais completo, da mesma autora, é sua dissertação de Mestrado, também pela UFGD, "A participação dos índios Kaiowá e Guarani como trabalhadores nos ervais da Companhia Matte Laranjeira", 2007.
[8] Guaíra, era ponto estratégico no Paraná, hoje é cidade, já Campanário, central da Companhia Mate Laranjeira em Mato Grosso, ao contrário do que alguns visitantes imaginaram, não se tornou uma cidade de fato, continuando como propriedade particular até os dias atuais.
[12] Muitos autores fizeram descrições sobre os processos de trabalho, mas uma boa parte deles não se preocupou em dar voz aos próprios trabalhadores. Mais recentemente, parte deste trabalho tem sido feito através de entrevistas de História Oral, como, por exemplo, "A história dos ervais sob a ótica dos trabalhadores rurais",
produzido pelo Arquivo Público do Estado de Mato Grosso do Sul em 2000; o próprio Gilmar Arruda, em seu "Frutos da terra", de 1997, nos diz ter ouvido alguns ervateiros, saindo também do âmbito das elites, dos mandantes da Companhia. O caso, no entanto, é que a quase totalidade desses trabalhos se voltaram mais especificamente para os trabalhadores da Mate Laranjeira. Em meu projeto de pesquisa, anteriormente apresentado, trabalharei com entrevistas, procurando dialogar também com outros trabalhadores ervateiros, especialmente os moradores da Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND).
[14]cf.CORRÊA FILHO, 1925; LINHARES, 1969; entre outros.
[16]OLIVEIRA, B. C. A política de colonização do Estado Novo em Mato Grosso (1937-1945). 1999. Dissertação (Mestrado em História) - FCL/UNESP, Assis.
[17]Caa é o nome guarani da
ilex paraguaiensis, a erva-mate.
[18]LINHARES, 1969, p. 172.
[19] ARRUDA, 1997, p. 64.
[20]ARRUDA, 1997, p. 91, citando Athamaril Saldanha, 1986.
[21]Era a forma como se chamava o trabalhador responsável pela secagem e sapeco da erva no barbacuá, trabalho feito a noite e sob calor intenso. Seu apelido é ligado a ave uru, encontrada no atual Mato Grosso do Sul e outros estados do Sul do Brasil.
[22] Local de secagem da erva-mate antes de ser ensacada e levada para o beneficiamento.
[23] Fardo de erva-mate carregado pelos colhedores (mineiros) após o corte.
[24]Coruquerê (
Alabama argilacea) é uma larva metamorfoseante, praga frequente e resistente ao uso de inseticidas. Tinha o poder de transformar, em poucas horas, o aspecto frondoso e copado de qualquer erveira ou erval (LINHARES, 1969, p. 283).
[26]Existem casos citados em documentos de imigrantes em Mato Grosso, sobretudo após a década de 1940, mas esse número é pequeníssimo, se incluindo em contexto diferente dos estados de Santa Catarina e Paraná.
[29]Ainda segundo Temístocles Linhares, o estado de Santa Catarina, embora correntemente se encontrasse em conflitos políticos e fundiários com o Paraná, quase sempre se confundia com esse na produção ervateira, por comportar interesses comuns e formas de produção muito semelhante.
[30]Sem contar mulheres e crianças.
[31]GOULARTI FILHO, 2002, p. 983.
[34]As atas do Instituto foram digitalizadas pelo professor Paulo R. Cimó Queiroz e se encontram disponíveis no Centro de Documentação Regional da Universidade Federal da Grande Dourados, UFGD.
[35]Muitos deles eram os próprios produtores, pelo menos em Santa Catarina e no Paraná, existindo os produtores independentes no Mato Grosso também, conforme estudo de Laércio Cardoso de Jesus.
[36]Alguns esportes citados em documentos e bibliografia para Campanário e Guaíra, além também das cidades que foram se formando no Paraná e Santa Catarina motivadas especialmente pela produção de erva-mate.
[37]Depoimento do senhor Joaquim Mangini Fernandes, ex-morador e dentista em Campanário. Consta em "A história dos ervais sob a ótica dos trabalhadores rurais",
produzido pelo Arquivo Público do Estado de Mato Grosso do Sul, 2000.
[38]Isso quando estas tivessem tempo para as mesmas, sendo que em Mato Grosso, segundo depoimento de um senhor, Idelfonso Centurião, trabalhavam desde cedo. Ele mesmo, nascido em 1904, diz ter começado a trabalhar com 9 anos de idade. Consta em "A história dos ervais sob a ótica dos trabalhadores rurais",
op. cit..
Obrigado por compartilhar o texto. Abraço!
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