quarta-feira, 27 de outubro de 2010

dia 27 de outubro na história do Brasil

MPC 04-01



Hoje nesta data nasceu Arcelina Mochel, advogada e ativista pelos direitos humanos
uma das fundadoras do jornal "Momento Feminino" e da Federação das Mulheres do Brasil




Saiba um pouco neste grande trabalho científico de Betzaida Mata Machado Tavares.
Gênero e política: a questão feminina no interior do Partido Comunista Brasileiro



Betzaida Mata Machado Tavares[1]





Introdução –

o terreno político como espaço para pesquisa e análise das relações de gênero





Dentro da história tradicional, o terreno político, além de constituir o espaço por excelência da pesquisa e do conhecimento histórico, tinha seu significado restrito às atividades do Estado. Num movimento de reação deliberada contra o paradigma tradicional[2], a nova história fez com que a história política caísse no mais profundo ostracismo. Ao ser recuperada, a partir da década de 80, a história política, sob o impacto da nova história, passou por uma renovação[3], de tal maneira que o próprio significado que possuía o termo política dentro da história tradicional foi redefinido. Com essa renovação, houve um alargamento do significado desse campo, que passou a compreender relações de poder que se desenvolvem dentro das mais diversas instâncias sociais. A partir daí, foi aberto espaço para o desenvolvimento de pesquisas históricas no campo político sob novas abordagens.



Como parte desse movimento, começou a haver uma valorização dos fenômenos culturais e da forma como eles atuam nas instâncias e decisões políticas. Para a análise histórica, esse enfoque cultural pode mostrar-se extremamente rico de possibilidades uma vez que, através dele, podem vir à tona elementos presentes nas instituições e práticas políticas que estariam ocultos em um estudo que levasse em conta apenas seus fatores racionais. Conforme afirmou Motta: a análise dos fatores culturais ajuda a esclarecer e a compreender a ocorrência de determinados comportamentos políticos, que não se explicam somente pela vontade, pelo interesse ou por ações concertadas no plano racional, mas também pela crença, pela fé, pela força da tradição ou do costume e por determinações originadas no plano do inconsciente[4]. Esses fatores não racionais que ajudam a explicar comportamentos e decisões políticas de indivíduos ou grupos, na maioria das vezes, não são formados dentro das instâncias políticas. São valores e normas construídos e assimilados pelos indivíduos em outras esferas de sua vida pessoal (na família ou na prática religiosa, por exemplo) e por eles trazidos e incorporados à vida política.



É a partir dessa perspectiva, que retoma a importância dos fatores culturais na prática política, que desenvolvemos nossa análise acerca das relações de gênero no interior de um partido político. O trabalho com a categoria gênero mostra-se importante na medida em que é através dela que o par masculino-feminino revela-se como uma construção social e cultural. Além disso, um estudo sobre relações de gênero implica, necessariamente, um estudo sobre relações de poder. Isso porque, as construções sociais de masculino e feminino se edificam – não apenas através de uma relação de diferença e oposição entre um e outro – como também de uma relação de domínio de um sobre o outro. Assim, as diferenças de gênero, culturalmente edificadas, ocultariam relações assimétricas de poder[5]. Dessa forma, constituindo as relações de gênero relações de poder, o significado de masculino e feminino construído por um determinado grupo social parece ser parte constitutiva da própria forma como o poder político se articula dentro desse grupo. Como afirmou Scott: O gênero não é o único campo, mas ele parece ter constituído um meio persistente e recorrente de tornar eficaz a significação do poder no ocidente, nas tradições judaico-cristãs e islâmicas[6].



Sendo assim, um estudo acerca das relações de gênero em um partido político pode contribuir para compreender como se desenvolvem as relações de poder no interior desse partido e os próprios significados compartilhados pelos membros desse partido em relação ao poder que buscam conquistar nas disputas políticas. A construção que o discurso de um determinado partido elabora em torno do masculino e do feminino diz muito do caráter do poder que ele pretende instituir. Contudo, a forma como um partido constrói as suas representações de masculino e feminino e a maneira como seus membros lidam com as relações de gênero na atividade política não podem ser analisadas apenas a partir do discurso racionalmente elaborado por esse partido. É necessário buscar compreendê-lo através dos valores morais compartilhados pelos seus membros, das relações cotidianas entre homens e mulheres em seu interior, do lugar que um e outro ocupam nas decisões partidárias. Daí, a importância de que sejam abordados os elementos culturais em uma pesquisa que, partindo da realidade de um partido político, propõe uma articulação entre relações de gênero e prática política.



É exatamente isso o que pretendemos ao examinar o lugar feminino no interior do Partido Comunista Brasileiro. Nosso objetivo é analisar como, muitas vezes, a formação moral e cultural de cada militante acaba permeando sua prática política, podendo entrar em choque com a postura oficial do partido, racionalmente elaborada. No que diz respeito à questão feminina no PCB, esse choque produz uma tensão que se torna visível em seu discurso com relação às mulheres.









As mulheres no discurso do Partido Comunista Brasileiro





O final da II Guerra e a década de 50







Para examinarmos o lugar da mulher no discurso do PCB tomaremos como ponto de partida o final da II Guerra Mundial. Esse marco é particularmente importante para a análise a que pretendemos, uma vez que esse período marca, de um lado, o aumento da participação feminina em vários setores nacionais e, de outro, uma expansão do Partido Comunista Brasileiro, decorrente, em grande parte, de sua legalização. Conforme afirmou Tabak o período que se seguiu imediatamente após ao término da II Guerra Mundial foi de intensa expansão do movimento organizado, através de todo o Brasil e de participação muito mais expressiva das mulheres, no plano social e político.[7]



A coincidência entre uma maior participação feminina nos espaços públicos e uma expansão do Partido Comunista Brasileiro leva o PCB a dedicar uma atenção – muito maior do vinha dedicando até então – à organização das mulheres em seu interior. Dentro desse contexto, o partido fomenta a formação de células femininas e apoia a criação, em 1947, do jornal “Momento Feminino” – órgão informativo que, embora não fosse oficial do Partido Comunista Brasileiro, seguia suas orientações políticas e era dirigido por Arcelina Mochel, militante do PCB eleita vereadora no Distrito Federal em 1947. Além disso, em 1949, foi criada a Federação das Mulheres do Brasil, também sob a hegemonia do PCB, que passou a assumir a organização do “Momento Feminino”.



Contudo, é de uma forma extremamente tensa e contraditória que os militantes lidam com esse aumento da participação e das organizações femininas no PCB. Como exemplo, podemos citar as teses divulgadas para o IV Congresso do Partido, previsto para ocorrer no dia 23 de maio de 1947. Embora o Congresso não tenha ocorrido, devido à ilegalização do PCB em 7 de maio, o que o documento diz acerca da organização das mulheres revela muito dessa contradição presente na forma como o partido entendia a participação feminina:







(...) Precisamos ter em cada organismo do Partido, desde as células até o Secretariado Nacional, encarregados especiais do movimento feminino. Além disso, precisamos procurar as causas verdadeiras do número ainda pequeno de mulheres nas fileiras de nosso Partido a fim de conseguir removê-las definitivamente. É indispensável fazer em cada organismo acurado estudo das condições em que vive a mulher, dos obstáculos que representam suas pesadíssimas tarefas domésticas à possibilidade de qualquer atividade nas fileiras do Partido de maneira que possa reduzir ao mínimo possível as exigências estatutárias para que a mulher possa ser militante comunista, possa progredir politicamente como ativista de nosso Partido sem prejuízo de suas tarefas domésticas.[8]







A forma como esse documento expressa a preocupação do partido em fomentar a participação política feminina em seu interior expressa muito mais o objetivo do partido em aumentar seu alcance entre os vários setores sociais (e a população feminina consistiria um desses setores) do que uma preocupação específica com a condição social em que vive a mulher. Por isso, diante da constatação de condições que criam empecilhos à atuação política feminina, o documento – ao invés de discutir a fundo práticas que transformem essa condição – propõe que se reduzam as exigências estatutárias para que a mulher possa atuar no partido sem prejuízo de suas tarefas domésticas.



É, possivelmente, nessa forma como é tratado o trabalho doméstico que podemos observar com mais nitidez a tensão presente no discurso do PCB com relação às mulheres. Sendo um partido marxista, a libertação feminina e a inserção das mulheres no espaço público deveriam ser defendidas em seu discurso já que, de acordo com a tradição marxista a origem e o sentido da reclusão das mulheres no espaço doméstico estariam em uma sociedade fundada na divisão de classes, na propriedade privada e na sua perpetuação através de herdeiros legítimos. Contudo, o que pudemos observar no trecho acima é que, para o PCB, a idéia do trabalho doméstico como tarefa exclusivamente feminina não é ponto importante a ser discutido e questionado. Essa negligência com relação a uma discussão mais profunda sobre a condição social das mulheres leva o partido a reproduzir valores que reforçam o papel feminino tradicional e que não se afinariam com sua orientação marxista. Alguns elementos poderiam nos ajudar a explicar esse descuido do PCB com relação à questão feminina.



Em primeiro lugar, há que considerar o ambiente cultural dos militantes comunistas daquele período: formados em uma sociedade patriarcal, que apenas muito recentemente vinha discutindo a emancipação feminina, muitos militantes acabavam por reproduzir na sua militância política os valores através dos quais haviam sido educados. E esses valores, muitas vezes, permeavam o próprio discurso oficial do partido, que – longe de ser construído apenas conforme suas intenções racionalmente orientadas – elabora-se também incorporando elementos que fazem parte do universo cultural de seus membros.



O universo cultural em que os militantes comunistas se formaram pode explicar a presença de valores patriarcais no discurso oficialmente elaborado pelo partido. Contudo, a ausência de uma autocrítica mais profunda sobre o quanto esses valores estão presentes na forma como o partido trata a questão feminina se explica também pelos objetivos centrais que norteavam a ação do partido nesse período. Diante da sua condição de legalidade (após ter atuado por vinte e três anos quase sempre como um partido clandestino) e da sua expansão explosiva, a atividade do PCB logo após a Segunda Guerra desenvolve-se prioritariamente no sentido de se constituir um partido de massas, buscando aumentar sua influência entre a sociedade e engrossar as suas fileiras de militantes. Dentro dessa estratégia, reduzir as exigências de atuação feminina poderia parecer mais eficaz que buscar discutir a fundo as condições (inclusive as presentes no próprio interior do partido) que inviabilizavam essa atuação.



Essa ausência de uma discussão mais específica sobre a condição das mulheres começa a ser denunciada em 1954, quando então é realizado o IV Congresso do partido. E essa denúncia se observa exatamente nas intervenções feitas por duas mulheres: Iracema Ribeiro e Olga Maranhão. Defendendo que o sectarismo do partido acabava levado-o a ignorar as especificidades da condição feminina e, consequentemente tornando ineficaz seu trabalho realizado entre as mulheres, Iracema Ribeiro afirma:







Em sua maioria, as Organizações de Base femininas realizam mais o trabalho de agitação e propaganda, deixando de lado a tarefa fundamental para a qual foram criadas, isto é, mobilizar e organizar as mulheres partindo das suas reivindicações específicas, da luta contra a carestia, pelo congelamento de preços e elevando-as até às lutas democráticas e emancipadoras.[9]







A partir dessa intervenção, podemos falar em uma tendência do PCB em instrumentalizar as organizações femininas em função de suas atividades práticas. Com isso, as mulheres militantes tenderiam a tornar-se meras executoras de tarefas e a possuir pouca capacidade de interferir nas discussões e decisões do partido. Em sua intervenção, Iracema Ribeiro fornece um exemplo prático de como isso vinha ocorrendo:







É o exemplo do Comitê da Zona de Tatuapé, onde as Organizações de Base femininas vivem voltadas para dentro de si mesmas e as companheiras realizam desde o trabalho finança ordinária ao de colagem de cartazes, sem se cogitar da necessidade de que essas Organizações de Base concentrem seu trabalho na mobilização e organização das massas femininas.[10]







Essa conversão das organizações femininas em executoras de tarefas como arrecadar finanças e colar cartazes apontada por Iracema Ribeiro não parece ter sido um caso isolado do Comitê da Zona de Tatuapé. Ao analisarmos os depoimentos de três mulheres[11] comunistas, também pudemos observar isso. As três mulheres atuavam em células diferentes, mas duas delas tinham em comum o fato de terem atuado em células femininas. As células em que as três militantes atuavam era responsável por arrecadar finanças. Além disso, a fala das três revelam que tinham pouco conhecimento da forma como eram tomadas as decisões no partido e praticamente nenhum poder de interferir nessas decisões.



Finalmente, esse pouco espaço que as mulheres tinham para atuar no interior do PCB também foi observado por Maria Elena Bernardes[12] em sua dissertação sobre Laura Brandão e a invisibilidade feminina na política. De acordo com Bernardes, para a grande maioria das mulheres (sobretudo para aquelas que eram companheiras de dirigentes) o partido reservava as tarefas “menores” ligadas a campanhas de solidariedade organizadas pelo PCB como, por exemplo, campanhas para fundos de greve.[13] É curioso observar que aqui também o universo cultural em que vivam os militantes contribuem para essa pouca visibilidade da atuação feminina: de acordo com Bernardes, a obscuridade das mulheres dos dirigentes comunistas devia-se ao próprio fato de, em casa, elas terem que “concorrer” com um militante masculino. Nesse sentido, o depoimento de Auxiliadora Bambirra é emblemático por demonstrar o quanto a presença masculina dentro de casa poderia inibir uma participação política mais ativa das mulheres. Perguntada pela entrevistadora se os homens eram favoráveis à participação de suas companheiras dentro do PCB, Auxiliadora responde:







Eram favoráveis. Eles eram e precisavam. Eu acho que eles precisavam disso, não é? O Bambirra [Sinval Bambirra, marido de Auxiliadora], por exemplo, na época que eu comecei ele dizia “(...) ...não gosto que você fique atuando nessa frente com as mulheres porque os dois não podem queimar...”(...) “A gente não pode queimar porque um tem que ficar tomando conta das crianças (...) É bom que você reduza um pouco essas suas saídas”. Quer dizer, de certa maneira, ele queria determinar, limitar minha atuação, mais em função da educação das crianças, que eram pequenas. Mas, ao mesmo tempo, ele não podia proibir.[14]







Além desse poder inibidor que a presença de um militante homem dentro de casa tem sobre a militância política feminina, a fala de Auxiliadora também deixa claro que, para o homem militante do PCB, lidar com a participação política de sua esposa (e com o fato de, necessariamente, ela estar em maior contato com a rua e menos tempo no lar) era algo extremamente conflituoso. Sob o argumento de que os dois não poderiam se queimar, Sinval Bambirra, como marido, tentava reduzir ao máximo as atividades de Auxiliadora. Ao mesmo tempo, como militante, ele não podia proibir, já que nessas atividades ela também estava trabalhando pelo partido.



As décadas de 60 e 70







No início da década de 60, no período que antecede ao golpe, são poucas as novidades que podemos perceber no discurso do Partido Comunista Brasileiro com relação à “questão feminina”. Na Resolução Política de seu V Congresso, em 1960, o partido não dedica mais que umas poucas linhas para tratar a organização das mulheres em seu interior:







Maior atenção deve ser dedicada ao trabalho de massas entre as mulheres, que podem ser reunidas nos mais variados tipos de organizações, especificamente femininas ou não, para a luta em torno de reivindicações, tais como o amparo à criança, o combate à carestia, a abolição da desigualdade de direitos, a melhoria das condições de vida nos bairros, etc.[15]







Ao tentar contemplar os espaços específicos de reivindicação feminina, esse documento parece buscar responder às críticas feitas em 1954. Contudo, ele não faz mais que ressaltar, de forma vaga, a importância do partido dar uma maior atenção à organização feminina e enumerar alguns desses espaços que constituiriam a especificidade da luta feminina.



O golpe militar levou o PCB a uma crise e desarticulação profundas, da mesma maneira que enfraqueceu e desarticulou os movimentos sociais que haviam ganhado força na década de 60, especificamente as organizações femininas. Curiosamente, é após o golpe militar, quando todos os esforços do PCB centram-se na luta contra o regime instaurado, que a atuação feminina começou a ser tratada com maior consideração, levando-se em conta a especificidade da condição social da mulher. Na Resolução de seu VI Congresso, realizado na clandestinidade em 1967, assim foi tratada a atuação política das mulheres:







É grande a capacidade de acção política das mulheres. Sua mobilização muito contribuirá para o reforçamento da luta contra a ditadura. É necessário, com esse fim, organizá-las, sob diversas formas, para a luta por suas reivindicações próprias, contra as discriminações sociais e jurídicas, que as colocam em situação de inferioridade na vida brasileira, pela igualdade de direitos da mulher trabalhadora, pela protecção à maternidade e à infância. Também por meio da luta contra a carestia de vida, pela solidariedade aos presos e perseguidos políticos, elas poderão dar importante contribuição democrática.[16]







Em 1975, as organizações femininas voltam a se fortalecer no Brasil, impulsionadas, sobretudo, pela declaração do Ano Internacional da Mulher. No exílio, o Coletivo de Dirigentes Comunistas aprova uma Resolução de Organização do Comitê Central. Com uma perspectiva otimista em relação ao “avanço antifascista e patriótico” a participação das mulheres, nesse documento, é tratada de forma superficial:







Factor de grande importância para a formação da frente é a luta das mulheres pela igualdade de seus direitos, contra a carestia e pela democracia. [17]







É, contudo, em 1979, que o PCB, ainda no exílio, lança um documento em que a situação da mulher e suas condições de libertação são tratadas de forma detalhada. Zuleika Alambert, dirigente comunista que teve importância fundamental na elaboração desse documento, disse que com ele, pela primeira vez nos documentos do PCB, a mulher foi considerada não como um simples instrumento de fácil mobilização para suas atividades políticas gerais. E sim, como um sujeito, apto a lutar por sua emancipação e libertação (...)[18]. Esse documento, faz um levantamento minucioso sobre a situação feminina no Brasil: suas condições de trabalho, de saúde e seu acesso à educação. Sem deixar de se manter na perspectiva de análise marxista, o documento insere a luta pela libertação feminina na luta operária contra a exploração de classes, contudo, e nesse ponto diferencia-se dos documentos anteriormente analisados, há uma profunda consideração pelas especificidades da luta feminina:







Iniciar uma renovação em todo o Coletivo comunista, tanto em relação à sua maneira de pensar como na forma de organizar seu trabalho para levar à prática sua política para a mulher, afim de que todo o Coletivo, reconhecendo o caráter específico e autônomo do movimento feminista, possa desempenhar um papel efetivo na mobilização de amplas massas femininas e manter-se vinculado a elas, exercendo um papel de orientador e organizador permanente.[19]







Para o partido que até então voltava-se para as mulheres apenas como um setor social a mais a ser conquistado, evitando uma discussão mais profunda sobre a condição feminina, tal documento representa uma mudança substancial no lugar que as mulheres passam a ocupar no discurso do Partido Comunista Brasileiro. E as autocríticas à forma como o partido tratou à questão feminina em seu interior são diretas e contundentes:







Até hoje, no entanto, não houve, entre nós, a exata compreensão do caráter e da dimensão da problemática da mulher e do movimento feminista, decorrendo, deste fato, a subestimação do papel da mulher na sociedade e, consequentemente, em nossas fileiras.



(...)



O machismo, o paternalismo, o patriarcalismo milenares refletiram-se em nossa concepção sobre o papel da mulher na sociedade, o que levou à subestimação de suas potencialidades políticas e à aceitação da velha divisão de trabalho por sexo também dentro do Coletivo.[20]







Essa reviravolta que há na forma como o PCB se posiciona com relação à questão feminina pode ser explicada em função alguns fatores. Em primeiro lugar, devemos considerar o posicionamento das próprias militantes comunistas que, possivelmente em função do exílio e da expansão do movimento feminista após a década de 60, começaram a ter um maior contato com as idéias feministas e, a partir daí, questionar a postura que o partido vinha adotando em relação às mulheres.



Em segundo lugar, essa tentativa do PCB em incorporar as especifidades da condição feminina poderia ser explicada em função da explosão, a partir da década de 70, de movimentos sociais que se organizavam fora da lógica dos partidos comunistas através da qual a classe operária deveria estar à frente de todo o processo revolucionário. Tais movimentos, teriam levado à constituição de uma “nova esquerda”, na qual o Partido Comunista deixaria de ser referência. Assim, essa tentativa do PCB em incorporar as especificidades dos diversos movimentos sociais e não submetê-los a uma estrutura partidária vertical poderia ser uma tentativa de manter sua própria posição de referência entre a esquerda. O cuidado maior com a “questão feminina” pode ser explicado levando em consideração a importância fundamental dos movimentos femininos da década de 70 na luta contra o regime militar.











Considerações finais – relações de gênero, relações de poder







Michelle Perrot[21], ao analisar os níveis de poderes femininos, demonstra que a rigidez das fronteiras entre o público e privado é construção do século XIX, quando houve a constituição de um espaço político que se confunde com o espaço público e do qual as mulheres são excluídas. A partir daí, será atribuído às mulheres apenas o poder informal, ou poder social. O poder político formal seria identificado com o masculino. Essa representação de poder tende a se estender pelo século XX de tal maneira que o feminino será sempre associado ao poder dos bastidores.



Na análise que fizemos acerca da participação das mulheres no interior do PCB, pudemos observar que, muitas vezes, havia uma tendência em delegar ao sexo feminino as “tarefas menores”, as atividades informais, enquanto os espaços formais de decisão e discussão política eram ocupados quase que exclusivamente por homens. Ao mesmo tempo, como pudemos observar sobretudo nos documentos de 54 e 79, as mulheres não se conformam a esse espaço informal de poder e, dessa maneira, forjam no interior do PCB uma discussão que além de questionar a importância que o partido atribui às organizações femininas em seu interior, torna-se mais ampla ao buscar debater à condição da mulher na sociedade como um todo. A partir daí, as representações que identificam o homem com o espaço público e o poder formal e a mulher com o espaço privado e o poder informal se dissolvem.



Por esse motivo, o estabelecimento de fronteiras rígidas e intransponíveis entre público e privado não seria cabível dentro de uma análise acerca da atuação política feminina no interior do Partido Comunista Brasileiro e do próprio discurso que o partido elabora em torno dessa atuação. Tais aspectos devem ser entendidos a partir de um conjunto complexo de relações que se travam na vida política e familiar dos militantes.



Conforme pudemos observar, os espaços de participação política da mulher no interior do PCB se definiram a partir de um conjunto de relações que não se limitavam à esfera partidária. O depoimento de Auxiliadora Bambirra, nesse sentido, é bastante elucidativo, uma vez que demonstra como relações de poder, em princípio pertencentes ao espaço privado – já que travadas dentro da esfera familiar – são também relações que dizem respeito à vida pública, pois contribuem para determinar em que nível se dará a atuação política de uma militante.











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[1] Mestranda no Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais.



[2] BURKE, Peter. Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história – novas perspectivas. São Paulo: Unesp, 1992. P. 10.



[3] Sobre a nova história política ver FERREIRA, Marieta de Moraes (apr) in: RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 1996.



[4] MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A história política e o conceito de cultura política. LPH: REVISTA DE HISTÓRIA, Mariana, n.6, 1996, Dep. De História/ UFOP. p.90



[5] Cf. BLACKBURN, Simon. Gênero. In: BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. P. 167.



[6] SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Tradução: Christine Rufino Dabat & Maria Betânia Ávila. Texto Original: Gender: an usefull category of historical analyses. Gender and the politics of history. New York. Columbia Universiy Press, 1989.p 16.



[7] TABAK, Fanny. Autoritarismo e participação política mulher. Rio de Janeiro: Graal, 1983.



[8] Publicado em 28 de março de 1947 no “Jornal do Povo” – órgão oficial do PCB em Belo Horizonte. Coleção Linhares / Biblioteca Central da Universidade Federal de Minas Gerais.



[9] Intervenção de Iracema Ribeiro ao IV Congresso do Partido Comunista do Brasil – 7 a 11 de novembro de 1954. Revista Problemas, nº64, dezembro de 1954/ fevereiro de 1955.



[10] Idem.



[11] Depoimento de Auxiliadora Bambirra à Magda de Almeida Neves – 14 de dezembro de 1993. Acervo do Programa de História Oral / UFMG. Depoimentos de Eva Roivenbruch e Berta Goifman à Betzaida Mata Machado Tavares – 9 de julho de 1999.



[12] BERNARDES, Maria Elena. Laura Brandão – a invisibilidade feminina na política. Orientadora: Maria Clementina da Cunha. Dissertação (mestrado) – Unicamp. Campinas, 1995.



[13] Idem. p. 15.



[14] Depoimento de Auxiliadora Bambirra à Magda de Almeida Neves – 14 de dezembro de 1993. Acervo do Programa de História Oral / UFMG.



[15] Resolução Política do V Congresso do Partido Comunista Brasileiro – 1960. In: Documentos do Partido Comunista Brasileiro (1960 – 1975). Lisboa: Edições Avante!, 1976.



[16] VI Congresso do Partido Comunista Brasileiro. Informe de balanço do Comitê Central – Dezembro de 1967. In: Documentos do Partido Comunista Brasileiro (1960 – 1975). Lisboa: Edições Avante!, 1976.



[17] Resolução Política – dezembro de 1975. In: Documentos do Partido Comunista Brasileira (1960 – 1975). Lisboa: Edições Avante!, 1976.



[18] ALAMBERT, Zuleika. In: Os comunistas e a questão da mulher. São Paulo: Cerifa – Novos Rumos, 1982. P. 7-8.



[19] A condição de vida da mulher no Brasil e a luta para transformá-la: visão e política do PCB – Maio de 1979. In: Os comunistas e a questão da mulher. Apr.: Zuleika Alambert. São Paulo: Cerifa – Novos Rumos, 1982. P. 46.



[20] Idem. p. 63-64



[21] PERROT, Michelle. As mulheres, o poder, a história. In: PERROT, Michelle. Os excluídos da história – operários, mulheres, prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. P. 167-184.

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Manoel Messias Pereira

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