Professor ou pregador? Acordo com a Santa Sé sobre ensino religioso nas escolas brasileiras vai parar no STF e reinstala o debate sobre o respeito à liberdade de crenças
Com reportagem de Laís Flores
Um acordo entre a União e a Santa Sé inflamou um debate antigo e potencialmente explosivo num país que é um caldeirão de raças e credos, como o Brasil.
Ao instituir que as escolas brasileiras promoverão o ensino “católico e de outras confissões”, o acordo caiu na malha fina da Procuradoria-Geral da República (PGR), que já ingressou no Supremo Tribunal Federal com uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) sob a alegação de que o Estado brasileiro é laico e, portanto, não pode permitir manifestação de caráter religioso em sala de aula.
A lupa dos procuradores se fixou no trecho “e outras confissões”, que daria margem à prática de catequese dentro das escolas. A melhor solução, no entendimento da PGR, seria o modelo “não confessional” (ver quadro sobre os modelos de ensino religioso), no qual as diversas religiões – e também correntes não religiosas, como o ateísmo e o agnosticismo – são expostas e debatidas com o sentido de promover o conhecimento dos estudantes. Se o caso já é controverso o bastante, ganhou um condimento extra no final de março, quando um grupo de cinco ONGs voltadas aos direitos humanos e à educação ganhou sinal verde do STF para fazer parte do processo.
Uma das ONGS mais combativas é a Ação Educativa, que levanta a bandeira do Estado laico para defender que a escola apenas respeite a liberdade religiosa de pais e estudantes. “Não cabe ao Estado promover o ensino religioso, assim como não cabe ao Estado promover o ateísmo ou o agnosticismo”, proclama a ONG em relatório especial sobre o assunto.
O caso do ensino no Estado de São Paulo é considerado um exemplo negativo, na ótica da Ação Educativa. Os alunos do primeiro ao quinto ano do ensino fundamental, que possuem apenas um professor ministrando diversas disciplinas, recebem o ensino religioso junto com as demais matérias. “Isso viola a facultatividade da disciplina de ensino religioso, pois de certa forma os professores se sentem autorizados a abordar a religiosidade no meio das disciplinas comuns”, critica Salomão Ximenes, integrante da ONG Ação Educativa. “Isso é levar para a escola pública uma entrada do campo religioso que pode gerar uma disputa de hegemonia de crenças e também de proselitismo”, adverte Salomão, receoso de que adeptos de religiões de origem africana, como o Candomblé, possam ser vítimas de preconceito de estudantes que seguem outra doutrina. “Já ouvi relatos de outros professores, dando conta que, ao abordarem o assunto, um aluno chamou outro colega de ‘batuqueiro’, dentre outros termos pejorativos”, ilustra Juliana Masutti, professora de Cultura Religiosa e também de História pela rede de ensino estadual do Rio Grande do Sul. Juliana conta que, por determinação da escola, a disciplina possui um conteúdo voltado para valores humanísticos. “Algumas das crianças são de religiões fundamentalistas, e os pais podem se sentir ofendidos por algum conteúdo transmitido em aula”, relata.
Do outro lado – a favor do ensino religioso nos moldes do acordo entre a União e a Santa Sé – estão o Senado Federal e a Advocacia Geral da União. O argumento de defesa é que tanto a Constituição quanto a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) estabelece o caráter optativo da disciplina de ensino religioso.
O jurista Ives Gandra Martins acredita que deve haver a confessionalidade no ensino religioso, visto que os aspectos históricos das religiões são necessariamente passados nas aulas de História. “Se seguirmos a lógica da Procuradoria da República, as cruzadas, então, deveriam ser de ensino facultativo”, provoca Gandra. “Há uma confusão entre o Estado laico e o Estado ateu”, aponta Gandra. “Em um Estado laico, a religião não comanda o Estado, mas isso não significa que quem tem uma religião não possa se manifestar.” E contra-ataca: “Esta ação direta de inconstitucionalidade não passa de uma “caracterização do fundamentalismo ateu”.
Em defesa do que estabelece a LDB, o professor de Cultura Religiosa da PUC-PR Sérgio Junqueira assinala que o ensino da história e da cultura afro-brasileira e indígena são conteúdos obrigatórios nas matérias do ensino fundamental. Mas ele se opõe ao modelo confessional previsto no acordo entre a União e a Igreja Católica. “Se esse acordo prevalecer, nós vamos favorecer guetos. Ele vai contra o espírito da educação brasileira, que é de valorizar a cultura e introduzir as crianças no espírito da pluralidade”, alerta.
Na opinião de Junqueira, o grande problema está na falta de professores preparados para dar conta dessa missão. Na tentativa de obedecer às normas impostas pela lei, as instituições de ensino acabam encaixando um professor que não necessariamente possui treinamento para ministrar as aulas. Em alguns casos, o professor é escolhido pelo fato de ter formação nos cursos de História ou Geografia de universidades privadas ligadas a uma religião, como a PUC. “Eu não me sinto segura para dar uma aula de Cultura Religiosa, pois tive apenas uma disciplina sobre o assunto. Não sou formada em Filosofia ou Teologia”, desabafa Juliana. Salvo Estados como o Paraná, que oferecem cursos e materiais pedagógicos, o professor de Cultura Religiosa encontra pouco apoio para se atualizar, afirma Junqueira. “O professor que ministra essa disciplina não tem preparação, não tem livro didático para apoiar os alunos e não pode dar nota. Isso desestimula o profissional”, lamenta.
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