terça-feira, 11 de setembro de 2012

Cabanos ou Mocambeiros? Escravos negros no período da Cabanagem






Cabanos ou Mocambeiros? Escravos negros no período da Cabanagem



por Juliana Brandão














Cabanagem: um movimento plural



Entre os anos de 1835 e 1840, o Pará foi palco de um acontecimento marcante e significativo na sua história: a Cabanagem, complexo movimento que agregou uma gama diversificada de agentes sociais com interesses e motivações os mais variados. Compunham este quadro lideranças político-partidárias e, ao lado delas, segmentos populares, tais como caboclos pobres, índios e negros (escravos e libertos) - isto é, uma camada da sociedade que estava insatisfeita com sua situação social, econômica e política, bem como com o fato de a adesão do Grão-Pará à independência em nada ter modificado sua realidade. Isso porque, segundo Geraldo Coelho, a emancipação do Brasil foi um ato mais imediatamente político do que estrutural (...), a transformação das estruturas sociais e das relações de poder na Amazônia dar-se-ia através das conquistas da sua sociedade [1].



Com relação aos interesses que motivaram esses vários agentes sociais, estes eram, conforme já foi dito, diversos; porém nem mesmo as camadas populares formavam um grupo homogêneo! Setores remediados, e proprietários de terras e escravos pretendiam derrubar Lobo de Souza e Silva Santiago, sem com isso alterar as estruturas coloniais mantidas até então; a população cabocla, juntamente com os índios, por sua vez, almejava justamente as mudanças das estruturas sociais herdadas do período colonial; os escravos negros e de vários outros tons de pele lutavam por sua liberdade; e os libertos, pelo direito ao exercício pleno de seus direitos de homens forros. Tudo isso nos permite dizer que dentro da Cabanagem havia várias Cabanagens , conforme nos aponta Bezerra Neto[2].



Inegavelmente, a camada mais popular da sociedade, composta por gente de cor , foram as que mais se destacaram nesse episódio da história paraense, gerando preocupações mesmo entre alguns líderes cabanos e deixando muitos estrangeiros residentes na Província aterrorizados. De fato, conforme explica Eliana Ferreira, o espaço urbano, público, antes permitido ser utilizado pelos populares apenas como lugar de prestação de serviços, a partir da Cabanagem torna-se também num espaço político.



Atualmente, temos uma vasta produção bibliográfica que trata da Cabanagem, cuja característica maior é a mudança acerca de olhar dirigido a ela. Vista primeiramente como um motim[3], com o passar dos anos a Cabanagem foi tratada pela historiografia como um movimento popular[4], chegando a receber em alguns momentos um caráter revolucionário[5]. A partir da década de 1980, com a consagração da Cabanagem como revolução popular da Amazônia, houve a produção de trabalhos significativos, tais como os dos pesquisadores Décio Freitas e Vicente Salles. Eles centraram-se na existência de um tráfico de ideias , em especial o internacional, o qual teria contribuído amplamente para consolidar o clima e ânimos propícios para a eclosão do movimento cabano. Na década de 1990 haverá maior preocupação em ressaltar a participação das massas na Cabanagem: os trabalhos do sociólogo José Cauby e da historiadora Eliana Ferreira procuram identificar etnicamente e socialmente essas massas; Ítala Bezerra, através de seu trabalho, identifica a maioria dos cabanos como roceiros; o trabalho de Claudia Fuller identifica a instituição do Corpo de Trabalhadores como política de controle social; e por fim, a historiadora Magda Ricci possui ampla pesquisa acerca da historiografia e do processo de construção da memória da Cabanagem.



Percebe-se, portanto, como as mudanças historiográficas revelaram as várias faces da multidão de cabanos, identificando a atuação de uma população fazendo uso das palavras de Avé-Lallemant composta por pessoas que vão desde o negro azeviche, do tapuia pardo-escuro até o mameluco quase branco, todas as cores... [6]. Porém, não podemos imaginar esta gama de despossuídos como um bloco homogêneo, pois segundo Pinheiro:



nem todos os segmentos étnico-sociais guardavam as mesmas expectativas ao se lançarem à revolta, sendo, por exemplo, de se esperar que para os negros cuja condição social inferiorizada tendia à imutabilidade em função do estatuto da escravidão a revolta geral da Província, muito mais que qualquer outro movimento isolado de simples resistência, ensejasse expectativas concretas de libertação, configurando-se o movimento em uma oportunidade que não deveria ser perdida ou desprezada[7].



O estudo da Cabanagem, no entanto, não se esgota aí. Muitos aspectos e questões referentes ao tema ou ao contexto desse movimento ainda estão sendo esclarecidos. Um exemplo disto foi a mesa temática Cabanagem. Múltiplos olhares, da I Jornada Oitocentista, realizada na Universidade Federal do Pará nos dias 13 a 16 de dezembro de 2011, cujas comunicações e discussões mostraram o quanto este tema ainda pode render estudos e surpresas.



Escravos negros cabanos



Jorge Hurley foi um dos primeiros a mostrar que os negros, escravos e libertos, também tiveram seu lugar no movimento cabano. De acordo com este pesquisador:



Emergindo dos mocambos e das senzalas ou afluindo dos quilombos ignotos, no seio das selvas e nas praias desabitadas, os escravos acostaram-se à causa cabana, com o objetivo da reconquista da liberdade[8].



De fato, a atuação dos escravos negros na Cabanagem é inegável.[9] Durante a invasão de Belém pelos rebeldes, em julho de 1835, por exemplo, marcada por um nítido sentimento de revolta contra os estrangeiros residentes na cidade os quais os rebeldes culpavam pelo despotismo ainda existente na Província , são vários os ofícios que apontam a presença dos índios e da população de cor [10] no levante. Comerciantes e autoridades britânicas informavam a todo o momento, por meio de correspondências, que suas vidas e suas propriedades [estavam] em perigo iminente [11] nesse momento de terror, uma vez que a cidade havia sido dominada pelos rebeldes. Segundo Eliana Ferreira, o fato das pessoas de cor transitarem pela cidade sem o controle rigoroso do Estado ou dos seus proprietários, já se constituía num motivo de grande preocupação. De acordo com a historiadora,



A cidade não estava sofrendo segundo a ótica do então presidente da Província, Manuel Jorge Rodrigues só o bombardeio dos tiros das armas de fogo, mas também apresentava um aspecto deplorável e medonho porque não se encontravam senão pretos e tapuios nas ruas [12].



Atos de rebeldia por parte dos escravos já eram comuns antes da Cabanagem, tais como a invasão às fazendas, roubo ou mutilação de gado, feitos por escravos fugidos. No entanto, na década de 1830, esta rebeldia acentua-se. Entre os anos de 1835 a 1840, serão observadas diversas lideranças negras, libertos ou escravos, encabeçando batalhões de escravos fugidos ou aquilombados nas lutas contra as tropas da legalidade, enviadas pelo governo central da Regência [13]. Em meio a esses líderes, temos: o liberto Patriota, o preto Félix, o preto Cristóvão, Coco, João do Espírito Santo mais conhecido como Diamante , dentre outros. Ao perceber que entre os negros cabanos havia uma lógica organizacional, o governo baixou sucessivos atos, proibindo ajuntamentos e quaisquer atitudes políticas dos escravos [14].



O Médio e Baixo Amazonas foram os mais atingidos pela Cabanagem. Esta região serviu de exílio para líderes, reuniu maior número de rebeldes, os quais resistiram por mais tempo. Segundo Acevedo & Castro, no Baixo Amazonas estavam os 300 cabanos comandados pelo preto Belisário; enquanto no rio Curuá, em Monte Alegre, concentrava-se um grupo de dois mil rebeldes.



No interior da Província, durante o período em que vigoraram as lutas cabanas, presenciou-se a destruição de muitas propriedades e, por conseguinte, a desorganização do sistema escravista. Por conta do medo dos proprietários, do engajamento dos escravos no Movimento Cabano, bem como da fuga de muitos desses os quais se aproveitaram da situação de caos para formarem mocambos , fazendas e engenhos foram abandonados por anos. Finda a Cabanagem, calculou-se que cerca de 40.000 pessoas haviam morrido em toda a Amazônia. Estas mortes se fizeram sentir na falta de braços para trabalhar na coleta das drogas do sertão, no plantio de gêneros agrícolas, nos serviços da fazenda de criação e nos engenhos [15].



Parece consensual entre os historiadores que o envolvimento dos escravos no movimento cabano se deu porque esperavam que, dessa forma, iriam adquirir a liberdade. Conforme afirma Muniz, já na década de 1820, as inquietações e crises políticas que lhe foram características só favoreceram a fuga em massa dos escravos. Portanto, por que no período da Cabanagem seria diferente? A propaganda da adesão à independência do Brasil incluía mudanças radicais na Província, as quais, sabemos, não ocorreram. Fazendo um paralelo, os cabanos, de um modo geral, também reivindicavam e lutavam por mudanças radicais, uma vez que ainda era mantido o status quo de uma sociedade colonial. No bojo das agitações políticas que permearam tanto o processo de adesão à Independência como a Cabanagem, os escravos negros associaram a ruptura política da colônia do domínio português com a própria abolição da escravatura [16]. Porém, eles não podiam esperar que outros garantissem sua liberdade, e mobilizaram-se por conta própria, da forma que lhes foi possível.



A partir da análise dos registros carcerários da Corveta Defensora, Luís Pinheiro salienta quão forte foi o propagandismo da luta antiescravista feita tanto pelos próprios escravos como por indivíduos empobrecidos. Leandro Fernandes, lavrador cafuz de idade avançada, por exemplo, teve sua prisão decretada por tramar em Cametá uma insurreição de escravos. O índio Custódio Miguel Ângelo foi preso por ter invadido a fazenda do coronel Araújo Rozo e assediado os escravos dali a segui-lo, tentando ainda assassinar o feitor e dois pretos da referida fazenda por não quererem o acompanhar [17]. A maioria dos escravos presos na Defensora eram acusados de ter agido contra indivíduos brancos, em geral contra a pessoa de seus antigos senhores ou contra aqueles que estavam assumindo sua representação [18].



Em carta a John Hesketh, Vice-Cônsul de Sua Majestade Britânica, datada de 27 de julho de 1835, o Presidente da Província informa que os malvados tem feito ataques contra os brancos em geral , e que os pretos pretendem juntar-se aos movimentos anárquicos com o pretexto de conseguir a liberdade. Diante desta situação, o Presidente confessa não ter forças suficientes para repelir a facção e pede reforços ao Vice-Cônsul.[19]



Os estrangeiros residentes em Belém estavam realmente aterrorizados diante das ações praticadas pelos cabanos principalmente após os acontecimentos ocorridos em Vigia, sobre o qual John Hesketh não poupa exageros, afirmando ter havido um massacre geral dos brancos .[20] Essas pessoas temiam por suas vidas e por suas propriedades, que estavam sendo constantemente saqueadas, e demonstravam espanto ao observar que todos os escravos dos portugueses se uniram aos soldados, de quem se espera as piores consequências .[21]



Segundo José Cauby, cerca de um terço dos cabanos presos no porão da Defensora eram negros, os quais, juntamente com os tapuios, constituíam o maior contingente de óbitos naquela prisão. Contrariamente, o destino da maioria dos cabanos brancos era o desterro ou a liberdade anistiada ou não. Em geral, os brancos falecidos eram desertores inclusive europeus ou seja, pessoas de baixa situação econômica e social. Percebe-se, portanto, que a cor e a condição social pesavam durante a escolha do destino daqueles que eram presos.[22] E a morte de muitos deles parecia ser algo comum e justificada pelo próprio Soares d Andrea como um castigo de justa causa, haja vista que, para ele, os cabanos eram criminosos destituídos de humanidade, pois matavam por prazer, por serem eivados de todos os vícios da barbárie .[23] Em ofício de 1º de agosto de 1836, ao Ministro Secretário do Estado dos Negócios da Justiça, Soares d Andrea reconhece que tinha



perto de trezentos e quarenta prezos, a ferros, mettidos na Curveta Defensora, vivendo em um verdadeiro Inferno, apesar de quantas diligências se fação para melhorar a sua sorte. A todos estes homens, com muito poucas excepções, pertence a morte pelos seus enormes crimes; mas he duro que nunca se fará huma tal matança, e que se chegarem a dar-se providências razoáveis os mais criminosos serão mortos e os outros terão destinos correspondentes às suas e às geraes circunstancias[24].



É importante ressaltar que não podemos simplesmente justificar as ações de rebeldia escrava como resultante da influência de um ideólogo liberal [que] ensinou-lhes a desejar a liberdade , ou porque interpretaram equivocadamente pronunciamentos desgarrados de pessoas como Patroni, Eduardo Angelim ou Francisco Vinagre[25]. Luís Pinheiro explica muito bem esta questão ao dizer que



os próprios escravos logo cedo adquiriram a consciência de que só por meio de sua própria iniciativa poderiam subverter de alguma maneira a ordem escravocrata vigente na região.



De igual maneira, atrelar a rebeldia negra ao propagandismo político veiculado, implica obscurecer toda uma tradição de protestos, reivindicações e lutas que se mostraram presentes na Amazônia desde que os primeiros negros foram introduzidos na condição de cativos[26].



José Maia afirma que os negros eram cientes de que a abolição da escravatura não era uma bandeira levantada por todos os cabanos. De fato, é possível observar que havia uma luta em prol da liberdade política para os pequenos proprietários de terra e escravos; e pela liberdade sócio-econômica para os despossuídos, os quais não queriam viver num regime de semi-escravidão[27]. Mas a escravidão era uma instituição básica e definidora da ordem social pautada na hierarquia, e nela não se pretendia mexer. Aos próprios governadores cabanos, não apetecia quebrar com a lógica escravocrata: Malcher e Angelim, uma vez no poder, assumiram sua condição de proprietários de terras e escravos. Angelim também ordenou a execução pública de várias lideranças negras que exigiam do governo a abolição da escravidão.



Diante da indiferença dos governadores cabanos para com os anseios de liberdade da escravaria, o preto Diamante organizou clandestinamente o grupo denominado Guerrilheiros, uma facção independente, cujos objetivos não ficaram devidamente esclarecidos. Sabe-se, contudo, que Diamante foi denunciado por um delator [28]. Tudo isto só evidencia, mais uma vez, quão diversificados eram os projetos e interesses políticos que permearam o Movimento Cabano.



Mas houve também outro grupo que ganhou destaque durante a Cabanagem e obteve lugar entre as obras literárias do escritor paraense Inglês de Souza: refiro-me ao grupo liderado por Jacob Patacho. Jorge Hurley descreve este desertor como cangaceiro das águas , afirmando que ele nunca foi cabano, nem pertencera ao partido de Baptista Campos [29]. Já o autor d A Quadrilha de Jacob Patacho, o descreve e a seu bando como caboclos cabanos, que não passavam de bandidos e homens selvagens. Seja como for, cabanos ou não, Patacho e seu bando espalharam o terror na Província, trazendo sérias preocupações às autoridades.



Em 31 de outubro de 1832, o Presidente da Província, José Joaquim Machado de Oliveira, oficiava ao Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Justiça que Jacob Patacho tem cometido os mais horrorosos attentados no baixo Amazonas, para onde ultimamente se dirigira, engrossando o seu partido com os criminosos, dezertores, escravos foragidos, e malvados de que estão cheios os Districtos . Juntos, eles vinham assassinando a todos os Brasileiros adoptivos, e Portugueses . O Presidente informa ainda que o carniceiro pirata e seus monstros vinham atacando as Povoações do Amazonas, e dominando as agôas deste rio com huma fortilha de canoas bem armadas, e equipadas, e que desapparecem ao momento que temem algum encontro das forças destinadas para as bater . Como providência, José de Oliveira havia enviado tropas para prender Jacob Patacho e seu bando, ou matar em caso de resistencia .[30]



Quase um mês depois se tem notícias de que Patacho e seu bando andavam atacando fazendas na Ilha do Marajó, para depois fugir para a Guiana Francesa.[31] É provável que ele não tenha obtido sucesso nesta fuga, pois, no dia 29 de dezembro de 1832, o Presidente da Província continuava informando ao Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Justiça sobre os ataques daqueles criminosos. Dessa vez, eles cometeram attentados, e horrível carniceria no rio Tapajós, em Aveiro, Macapá e na Ilha do Marajó,



onde cometteu barbaramente seis assassinios, violentando a mulheres, e pilhando as casas, encaminhou-se para o rio Tocantins, com o intento de evadir-se para a Província de Goiaz, ou para assaltar de novo a Villa de Cametá e as outras Povoações d aquelle rio, depois de reforçar mais a sua quadrilha.[32]



Enfim, no ano seguinte, conforme as palavras de José de Oliveira, quando já nenhumas esperanças me restavão de ser capturado o grande facinoroso Jacob Patacho, que tão horrorosos crimes havia comettido , este foi preso em Baião, no dia 17 de maio, pelo benemerito e valente Alferes de 1ª Linha, Affonso de Albuquerque e Mello, Ajudante d Ordens do Commandante das Armas . Informava o Presidente da Província ao Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Justiça que Patacho achava-se enfim recolhido ahuma segura prisão no Forte do mar . Desse modo, esperava que tivesse fim as acusações injustas de que ele estava sendo conivente com o criminoso.[33]



Segundo Hurley, quando foi capturado e preso, Jacob Patacho era acusado de matar quarenta portugueses. O mesmo autor chama atenção também para o fato de, três anos após ter sido preso, haver notícias de um tal Jacob Pedro Borges, vulgo Patacho, filiado aos cabanos independentes de Oeiras que pretendiam assaltar Cametá na madrugada de 28 de Maio de 1836 [34]. Hurley afirma que isso pode ser explicado com a invasão da caudal cabana de 7 de Janeiro de 1835 em Belém, [pois] um dos primeiros actos de Antonio Pedro Vinagre foi soltar os presos... [35]. O fim da existência de Patacho foi, segundo Soares d Andrea, no hospital dos bexigosos [36].



Contudo, é importante lembrar que em meio a todas essas lutas que marcaram o período cabano, alguns escravos continuaram a obedecer aos seus senhores talvez esperando receber alguma boa gratificação futuramente. Houve ainda casos de escravos que engrossaram as fileiras de soldados que lutaram contra os cabanos. Nesse último caso, especificamente, muitos desses escravos-soldados aproveitaram a oportunidade para fugir, tornando-se também desertores.[37] O destino mais procurado por esses desertores era a República da Bolívia, pois, uma vez conquistada sua independência, em 1825, proibiu-se ali o comércio internacional de escravos e, em seguida, aboliu o regime de trabalho servil. Portanto, acreditava-se que, atravessando a fronteira, a liberdade estaria garantida.



Durante as negociações entre o Império Brasileiro e a República Boliviana acerca da extradição dos escravos-soldados desertores, constatou-se que o principal motivo pelo qual aquelas pessoas optaram por se refugiar na Bolívia além da possibilidade de liberdade foi o descumprimento das promessas feitas pelo governo do Grão-Pará. Segundo os escravos, o combinado era que aqueles



que lutassem contra os cabanos fariam jus a um tempo de serviço, funcionando como uma espécie de descanso da escravidão, durante o qual poderiam trabalhar sobre si (para si) e, assim, ter a possibilidade de juntar dinheiro para comprar sua alforria. A chamada liberdade temporária acabou sendo ignorada pelo governo da província após a vitória contra os cabanos, e os cativos milicianos foram entregues aos seus antigos senhores ou receberam duros castigos por reclamar os direitos que pensavam ter adquirido[38].



É interessante que durante as investigações solicitadas pelo Império Brasileiro, os escravos-soldados desertores afirmaram que foi a partir de notícias vindas do Rio de Janeiro, informando ser a Bolívia a terra da liberdade , que a fuga fora planejada. A partir das pesquisas de Bosisio, Caldeira e Kozlowsky, apesar da demora das autoridades bolivianas em decidir se concederiam asilo ou atenderia aos pedidos vindos do Brasil de extradição daqueles indivíduos, parece que muitos escravos realmente obtiveram a tão sonhada liberdade ao atravessar a fronteira durante o período da Cabanagem.



Cabanos ou Mocambeiros?



Segundo Danielle Moura, em discurso proferido na abertura da 1ª Sessão da Assembléia Provincial, em 1838, Soares d Andrea descreve o Pará como uma Malfadada Província desgraçada por uma furiosa anarquia . Esta anarquia se expressava através da recorrente impunidade dos crimes, da insubordinação e subversão da ordem, e do desrespeito às autoridades [39]. Um dos exemplos de insubordinação e subversão da ordem que podemos identificar foram as constantes fugas dos escravos e a consequente formação de mocambos.



De fato, muitos escravos negros aproveitaram a brecha decorrente das fissuras ocorridas no interior da classe dominante, na primeira metade do século XIX, para se refugiar nas florestas, uma vez que nesse contexto as forças repressivas não dispunham de poder suficiente sequer para garantir o controle institucional na capital e nas principais vilas da província [40]. Logo nos primeiros anos da década de 1830, as fugas de cativos alcançarão níveis alarmantes, surgindo novos mocambos e fortalecendo outros já existentes. Com o assassinato das autoridades legais em 1835, muitos desses fugitivos tornar-se-ão mais ousados, organizando com maior frequência saques e pilhagens às fazendas, em incursões que visavam também a libertação da escravaria e, muitas vezes, a punição de seus antigos algozes, senhores e capatazes [41].



No entanto, a floresta ou sertão, conforme a fala da legalidade não era local de refúgio apenas de escravos negros fugidos, mas também de toda uma gama de despossuídos constituída por índios, libertos, soldados desertores, homens brancos pobres, vadios. Os cabanos também faziam do sertão o seu reduto. Ali eles se refugiavam, planejavam suas táticas, assaltos e invasões, e era a partir dali que eles vinham para atacar vilas e freguesias. Por conta disso, a legalidade verá o sertão como o lugar de toda sorte de criminosos [42]. E o fato dos rebeldes utilizarem este local, oposto da cidade, como refúgio, só comprovava para Soares d Andrea a sua tese de que eles eram dotados de incivilidade. Segundo este Brigadeiro, escondendo-se nas matas, pelos furos e canais de rios, dali os cabanos vinham para acabar com a tranqüilidade quando a sede de sangue os chama ao assassínio e ao roubo , e animados pelo bom resultado do seu último crime, não deixarão de isentar novos, para saciar suas almas nunca fartas de maldades .[43]



Em ofício de 29 de dezembro de 1836 à Soares d Andrea, o Major Comandante João Raimundo Carneiro Junqueira comunica que em Soure andavam algumas quadrilhas de cabanos unidos a desertores, e escravos fugidos praticando insultos . Na diligência enviada como combater este grupo, foi morto hum índio q. era guia da deligencia, e dois soldos. [ficaram] feridos , sem que ao fim do combate os diligentes tivessem algum sucesso, pois o grupo de desordeiros fasendo fogo rettirarão se pa os Mattos .[44] Já em 1º de janeiro de 1837, o Tenente Comandante da Vila de Soure, Antônio Fernandes de Andrade, oficiava à Soares d Andrea que no Marajó havia diferentes Quadrilhas de Cabanos, Dezertores, e Escravos fugidos .



Vê-se a partir desses ofícios, que os cabanos também se amocambavam e, em alguns casos, como os apresentados, associavam-se a desertores e escravos fugitivos. Juntos, eles atacavam fazendas, destruíam propriedades, praticavam assassinatos, depois se acoitavam e preparavam-se para novos ataques. De acordo com Danielle Moura, estas atitudes representavam para Soares d Andrea e para as demais autoridades com os quais se correspondia uma ameaça à ordem, à autoridade, à província, ao Império, à civilização [45]. E cada vez mais a legalidade mostrava-se preocupada quando eram descobertos novos mocambos, que reuniam esta gama de rebeldes (cabanos, escravos negros e indígenas fugitivos, soldados desertores), e apontava a emergência em combatê-los.



No dia 27 de janeiro de 1837, João Raimundo Carneiro Junqueira oficiava a Soares d Andrea que



A escolta que mandei a Monsaraes Commandada pelo Alfes Alexandre Francisco Augusto distruhiu o mocambo do Iguará Cabeceiras do Juhîba na quele Districto no dia 22 do expirante aonde encontrando hum fogo activo morrerão da parte do inimigo dez, e dois feridos gravemente que julgo terão o mesmo fim, e marcharão no outro dia, a outro q. ainda não sei o rezultado, onde dizem há porção de cabanos, e dezertores.[46]



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* Este artigo é um desdobramento resultante da minha monografia de conclusão de curso, a qual possui o mesmo título.



** Bacharela e Licenciada Plena em História pela Universidade Federal do Pará, e integrante do Oitocentos - Grupo de Pesquisa de História da Amazônia.



[1] COELHO, Geraldo Mártires. Anarquistas, Demagogos & Dissidentes: A imprensa liberal no Pará de 1822. Belém: CEJUP, 1993, p.93.



[2] BEZERRA NETO, José Maia. A Cabanagem: a Revolução no Pará. In: ALVES FILHO, Armando dos Santos; SOUZA JÚNIOR, José Alves de; BEZERRA NETO, José Maia. Pontos De História da Amazônia. vol I. Belém: Paka-Tatu, 2001, p.93.



[3] O primeiro a escrever sobre a Cabanagem foi Domingos Antonio Raiol, o Barão de Guajará, em meados de 1865. Sua obra, Motins Políticos ou História dos Principais Acontecimentos Políticos da Província do Pará desde o ano de 1821 até 1835, Raiol trata este episódio como sinônimo de motim político, que resultara das conturbações sociais e políticas que vinham ocorrendo no Pará. Através desta sua obra, Raiol firmou a imagem do cabano como malvado e sedicioso , e a lembrança da Cabanagem como uma dolorosa recordação , a qual marcou a historiografia por muitos anos.



[4] Ao longo dos anos de 1920 e 1930, trabalhos como os de Jorge Hurley, Dilke Rodrigues e Ernesto Cruz interpretaram a Cabanagem como um movimento popular que reagiu ao autoritarismo e desmandos das autoridades civis e militares da Província, nomeadas à revelia dos paraenses pelo governo central da Regência (BEZERRA NETO, op. cit., p. 77). Este foi ainda um período em que houve a preocupação em mostrar quem era a massa de cabanos anônimos que foi à luta a exemplo de Hurley , sem com isso, no entanto, considerá-los protagonistas da Cabanagem, haja vista estes ainda serem considerados incapazes de exercer liderança por conta própria.



[5] Passados 150 anos da Cabanagem, em plena época da reabertura política ou de guerra aberta contra o regime militar imposto em 1964, [os] pesquisadores buscavam no passado cabano um símbolo inicial de afirmação e de luta por cidadania (Cf. RICCI, Magda. Cabanagem, cidadania e identidade revolucionária: o problema do patriotismo na Amazônia entre 1835 e 1840. Revista Tempo, vol. 11, n. 22, 2001, p. 10). Deste grupo, pode-se destacar Carlos Rocque, José Júlio Chiavenato e Pasquale Di Paolo, sendo o trabalho deste último Cabanagem: a revolução popular da Amazônia galardoado com o Prêmio Nacional de Monografias lançado pelo primeiro governo do PMDB no Pará, através do Conselho Estadual de Cultura, o qual fazia parte das comemorações do Sesquicentenário do Movimento Cabano e tinha por finalidade enaltecer as lutas do povo pela liberdade contra a tirania e o autoritarismo (BEZERRA NETO, op. cit., p. 80).



[6] Apud FERREIRA, Eliana Ramos. Em Tempo Cabanal: cidade e mulheres no Pará imperial, primeira metade do século XIX. São Paulo: Programa de Pós-Graduação em História Social/PUC-SP, 1999, dissertação de mestrado, p. 127.



[7] Ibid., p. 177.



[8] HURLEY, Jorge. Traços cabanos. Belém: Officina Graphica do Instituto Lauro Sodré, 1936, p. 209.



[9] Aqui cabe lembrar que em meio a esses escravos estavam presentes também as mulheres, cuja atuação se deu tanto contra como a favor da Cabanagem. Esta trama foi analisada por Eliana Ferreira em sua dissertação de mestrado.



[10] MRE 128, C 21, F 398-99. 24 de agosto de 1835. Transcrição em: CLEARY, David (org.). Cabanagem: documentos ingleses. Trad. Christine Moore Serrão. Belém: SECULT/IOE, 2002.



[11] Idem.



[12] FERREIRA, op. cit., p. 158-9.



[13] BEZERRA NETO, José Maia. Fugindo, sempre fugindo: escravidão, fugas escravas e fugitivos no Grão-Pará (1840-1888). Campinas: Programa de Pós-Graduação em História Social do Trabalho/UNICAMP, 2000, dissertação de mestrado, p. 75-6.



[14] SALLES, Vicente. O negro no Pará. Sob o regime da escravidão. 3ª ed., Belém: Instituto de Artes do Pará, 2005, p. 302.



[15] ACEVEDO, Rosa; CASTRO, Edna. Negros do Trombetas. Guardiães de Matas e Rios. 2ª ed. Belém: CEJUP, 1998, p. 71. A fim de reorganizar a mão-de-obra na Província, as autoridades criaram o Corpo de Trabalhadores (1838-1855), colocando, deste modo, centenas de trabalhadores à disposição de fazendeiros, comerciantes e dos serviços públicos. Porém, muito mais do que garantir braços, o Corpo de Trabalhadores era ainda uma forma de manter a ordem e o controle, evitando vadiagens e que homens entregues ao ócio perambulassem pela cidade.



[16] BEZERRA NETO, José Maia. Fugindo, sempre fugindo: escravidão, fugas escravas e fugitivos no Grão-Pará (1840-1888). Campinas: Programa de Pós-Graduação em História Social do Trabalho/UNICAMP, 2000, dissertação de mestrado, p. 73.



[17] PINHEIRO, Luís Balkar Sá Peixoto. De mocambeiro a cabano: Notas sobre a presença negra na Amazônia na primeira metade do século XIX. Terra das Águas: Revista de Estudos Amazônicos, v. 1, n. 1, 1999, p. 166.



[18] Ibid., p. 169.



[19] MRE 128, C 21, F 394. 27 de julho de 1835. Transcrição em: CLEARY, op. cit.



[20] MRE 128, C21, Xc 11841. 13 de outubro de 1835. Transcrição em: CLEARY, op. cit.



[21] Carta sem identificação, escrita do dia 12 ao dia 14 de maio de 1835. Transcrição em: CLEARY, op. cit.



[22] Cf. MONTEIRO, José Cauby Soares. Rebeldes, Deschapelados e Pés-descalços: Os Cabanos no Grão-Pará. Belém: Curso Internacional de Mestrado em Planejamento do Desenvolvimento do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos/UFPA, 1994, dissertação de mestrado.



[23] Relatório do ano de 1840, apresentado pelo Ministro da Justiça, Antonio Paulino Limpo de Abreu, à Assembléia Geral Legislativa na sessão ordinária de 1841 apud MOURA, Danielle Figuerêdo. Malfadada Província : Lembranças de anarquia e anseios de civilização (1836-1839). Belém: Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia/UFPA, 2009, dissertação de mestrado, p. 34. Nesse mesmo trabalho a autora trata ainda sobre a construção da imagem dos cabanos no discurso da legalidade.



[24] HURLEY, op. cit., p. 176-77.



[25] PINHEIRO, op. cit., p. 153.



[26] PINHEIRO, op. cit., p. 153-4. Grifo meu.



[27] MONTEIRO, op. cit., p. 45.



[28] SALLES, op. cit., p. 307.



[29] HURLEY, op. cit., p. 214.



[30] Correspondências de Diversos com o Governo, Códice 901, Documento 66. Fundo da Secretaria da Presidência da Província. Série Ofícios. Arquivo Público do Estado do Pará.



[31] Correspondências de Diversos com o Governo, Códice 901, Documento 72. Fundo da Secretaria da Presidência da Província. Série Ofícios. Arquivo Público do Estado do Pará.



[32] Correspondências de Diversos com o Governo, Códice 901, Documento 76. Fundo da Secretaria da Presidência da Província. Série Ofícios. Arquivo Público do Estado do Pará.



[33] Correspondências de Diversos com o Governo, Códice 901, Documento 105. Fundo da Secretaria da Presidência da Província. Série Ofícios. Arquivo Público do Estado do Pará.



[34] HURLEY, op. cit., p. 217-8.



[35] Ibid., p. 218.



[36] Ibid., p. 219.



[37] É interessante como Rudé trata dos limites da eficácia das forças de repressão, da lei e da ordem. Esses instrumentos utilizados para conter as atividades da multidão dependem de uma série de fatores, dentre eles o grau de fidelidade ou descontentamento dos guardas, da polícia ou dos militares , a partir do qual se estabeleceria o fracasso ou sucesso da repressão. Cf. RUDÉ, George. A Multidão na História: Estudos dos Movimentos na França e na Inglaterra (1730-1848). Rio de Janeiro: Campus, 1991, p. 10.



[38] CALDEIRA, Newman Di Carlo; BOSISIO, Rafael de Almeida D.; KOZLOWSKY, Cristiane. Liberdade sem fronteiras. Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 6, n. 61, 2010, p. 42.



[39] MOURA, op. cit., p. 23.



[40] PINHEIRO, op. cit., p. 165.



[41] Ibid., p. 170.



[42] MOURA, op. cit., 40. Danielle Moura, ao analisar a falas da legalidade, observa que o mato configura-se sempre num lugar de refúgio. Porém, este lugar refugiou tanto criminosos como pessoas que deles fugiam.



[43] Discurso com que Francisco José de Souza Soares d Andrea, Presidente da Província do Pará, fez na abertura da 1ª Sessão da Assembléia Provincial, no dia 02 de Março de 1838 apud MOURA, op. cit., p. 24.



[44] Correspondências de Diversos com o Governo, Códice 853, Documento 111. Fundo da Secretaria da Presidência da Província. Série Ofícios. Arquivo Público do Estado do Pará.



[45] MOURA, op. cit., p. 37.



[46] Correspondências de Diversos com o Governo, Códice 853, Documento 132. Fundo da Secretaria da Presidência da Província. Série Ofícios. Arquivo Público do Estado do Pará.















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Manoel Messias Pereira

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