Mosaico AVENIDA BRASIL
O golpismo do darwinismo social
Por Luís Eustáquio Soares
em 21/08/2012 na edição 708 - Observatório da Imprensa
O Naturalismo foi, como se sabe, uma escola literária do século 19 e início do século 20. Bem mais que se inspirar no evolucionismo de Charles Darwin (1809-1882), do qual tomou de empréstimo o argumento da seleção natural, estava visceralmente implicado com o tumulto das relações de força mais reacionárias vinculadas ao epicentro sísmico da Segunda Revolução Industrial, tendo em vista uma presunção científica de neutralidade no uso da terceira pessoa gramatical, que rebaixava e substituía a livre vontade humana por um aglomerado determinista que era ao mesmo tempo econômico, social, racial, etário, físico, geográfico, sexual, cultural.
O uso do onisciente narrador em terceira pessoa, no Naturalismo, distinguiu-se de sua presença nas narrativas do Realismo – escola literária também do século 19 – precisamente porque se elevou à escala do absurdo e do patológico, para não dizer do totalitarismo, quando pretendeu ocupar a onisciência e a onipresença de Deus. A estética naturalista almejou, muito mais que o Realismo, a tornar-se o impassível, onipresente e onisciente olho de Deus, transformando-nos em cobaias nas mãos de uma terceira pessoa gramatical, apta, em nome da isenção científica, a nos descrever, observar, auscultar, manietar e narrar como ratos de laboratório, tendo em vista a seguinte premissa: o humano, seu inevitável destino, é o resultado de um amálgama hereditário ao mesmo tempo: 1) biológico, sua raça, sua genética, sua anatomia, a cor de sua pele; 2) temporal, a época na qual tal ou qual pessoa vive; 3) ambiental; o meio social e/ou geográfico onde atua e convive com os demais, igualmente predeterminados pelo mesmo espaço de interação; 4) sexual, tendo em vista uma concepção patriarcal e machista de instinto, pois preconcebia um comportamento sexual ativo para o macho e passivo para a fêmea, embora ambos, homens e mulheres, devessem ser arrastados pelas pulsões sexuais quanto menos civilizados eram considerados – logo quanto menos europeus; 5) sociológico, a classe social à qual pertence.
Os efeitos da miséria
Ironicamente, por sua vez, o Naturalismo, em nome de uma lógica fundada no destino manifesto inscrito em nossa raça, classe, anatomia, posição social, era ele mesmo determinado pelo delírio ao mesmo tempo científico, econômico e imperialista das duas primeiras revoluções industriais, as quais pretendiam fazer-se, e fizeram-se, como inevitáveis determinações históricas de e para toda a humanidade, razão pela qual se tornou um estilo de época laico e supostamente científico comprometido com a mais nefasta razão teológica do Ocidente imperialista e colonizador, a saber: a Europa, principalmente a Inglaterra, está determinada a impor-se ao mundo porque constitui o cenário deterministicamente superior do centro de uma civilização ilustrada, tecnologicamente avançada, além de abrigar uma raça humana evoluída intelectual e geneticamente.
Em função mesmo do racismo implícito e explícito na representação naturalista, não foi nada circunstancial o fato de que ela vicejou e se espalhou principalmente na periferia do sistema-mundo, nos países colonizados, pois serviu de suporte à estratégia colonizadora de nos desqualificar e nos inferiorizar a fim de justificar deterministicamente nossa posição de “matéria prima ou insumo humano” para a acumulação primitiva do capital, na suposição de que nossa inferioridade hereditária servia não apenas como mão-de-obra barata para o setor primário das economias do centro industrial, Inglaterra, EUA, Alemanha, mas também se constitui como o corpo vivo e descartável do modelo extrativista de nossa produção econômica, situação que continua a ser a nossa pedra no sapato, de vez que ainda hoje somos uma economia predominantemente extrativista, exportadora de matéria-prima, entendida tanto como recursos naturais não humanos como humanos – buchos de canhões.
Fiz, no entanto, essa digressão toda a fim de defender o seguinte argumento: o Naturalismo não é um estilo de época circunscrito a alguns artefatos artísticos, principalmente no campo da literatura e da pintura, produzidos no século 19 e início do 20, de vez que continua presente ou onipresente nas periferias do sistema-mundo, inclusive no Brasil, como narrativa ou representação cujo principal objetivo determinista é o de justificar o injustificável: o absoluto abandono de milhões de humanos, tendo em vista uma “científica” suposição de que abandono produz abandono num contexto em que os efeitos da miséria (a violência, o desespero, a ausência de infraestrutura, o lixo, o esgoto, a fome e suas consequências deploráveis; as condições precárias de moradia) são filmados, narrados e noticiados como a evidência visível de sua causa.
Os co-denunciantes de uma situação de violência
Se representação etimologicamente significa olhar, o Naturalismo acredita no que vê, tal como se dá a ver, no tempo e no espaço, enquadrando o visível nas míopes lentes do darwinismo social, através de uma estratégia de clonagem ou reduplicação caricatural da miséria humana, razão pela qual reproduz a realidade, confirmando preconceitos, sujando o considerado sujo, aviltando o aviltado, violentando o violentado, condenando o condenado, tendo em vista uma presunção técnico-científica incapaz de fazer relações, razão pela qual isola o que narra ou mostra a fim de dizer-nos, de forma moralista e ao mesmo tempo tautológica: “Narro, mostro ou noticio tal situação porque ela é tal como eu narro, mostro ou noticio, sem mais, cientificamente, tecnologicamente, naturalmente.”
Desde o seu surgimento, na Europa do século 19, o Naturalismo tem sido a principal forma de representação dos povos colonizados, seja através de textos literários, seja através de filmes, seja através de noticiários, sendo normalmente a forma pela qual somos naturalmente vistos, mostrados e concebidos pelas máquinas de representação a serviço das oligarquias de todos os quadrantes; máquinas que são também literárias, que são também cinematográficas, que são também jornalísticas.
Mesmo que as atuais obras literárias, os mais vistos filmes e os noticiários jornalísticos não usem mais a terceira pessoa gramatical, sobretudo considerando a figura do narrador-personagem, a representação naturalista pressupõe, no geral, uma isenta terceira pessoa gramatical, sob o ponto de vista: 1) do autor, que escreve narrativas de ficção, colocando-se como neutro escritor que nada tem a ver com a trama narrada; 2) o cineasta, que roteiriza um filme, realizando-o igualmente como um “criador” que se coloca de fora das cenas filmadas; 3) um repórter, que noticia fatos policiais ocorridos na periferia e que também se põe como alguém que não tem relação alguma com os criminosos, tendo como função a acusação moralista descomprometida com qualquer presunção de inocência e baseando-se no “fato cru”, efeito sem causas a ser denunciado de forma sensacionalista; 4) os leitores de obras literárias naturalistas ou o público de tal ou qual filme igualmente naturalista, ou ainda o telespectador de programas do tipo Brasil Urgente, protagonizado por Datena, os quais, de modo geral, ao entrarem em contato com uma representação naturalista, realizam uma catarse tal que se sentem aliviados por figurarem também como co-denunciantes de uma situação de violência, posicionando-se igualmente de fora.
A predominância do masculino na pós-modernidade
Como se vê, a representação naturalista pressupõe uma mão limpa que denuncia o flagrante delito cometido por mãos sujas de pobres favelados ou de abandonados perfis humanos, sem trabalho, sem cuidado de saúde, sem acesso a qualidade de ensino; sem proteção do estado e da família. Existe, pois, no naturalismo, um jogo cafajeste entre o limpo e o sujo: de um lado está o limpo a denunciar; de outro está o sujo a ser denunciado, de tal sorte que o segundo destaca o primeiro, pois quanto mais sujo se mostra ser o sujo, no nível da representação, mais limpo se acredita o limpo, no nível do que chamamos de realidade.
Costumo dizer, sob esse ponto de vista, que o naturalismo possui a seguinte função catártica: suja o considerado preconceituosamente sujo e limpa o considerado presunçosamente limpo, num contexto em que a pessoa que entra em contato com obras naturalistas tende a sentir-se purgada de qualquer sujeira social, vendo-se como mais limpa do que nunca, como se estivesse saindo de um confessionário. É por isso que as obras naturalistas, sobretudo no cinema, são muito apreciadas, não sendo circunstancial que os filmes brasileiros mais badalados sejam predominantemente naturalistas, como Cidade de Deus, Carandiru, Tropa de Elite I e II.
O mesmo fenômeno tende a ocorrer no campo da literatura. Os autores de obras naturalistas são os mais conhecidos e lidos, como ocorre, no caso brasileiro, com o escritor contemporâneo João Gilberto Noll ou mesmo Raduan Nassar, cuja obra mais conhecida, também transformada em filme, Lavoura Arcaica, é nitidamente naturalista, sujando o que é considerado sujo na atualidade, a figura masculina, num contexto em que o perfil feminino se apresenta como limpo, embora, a bem da verdade, seja mais homem que o homem, razão pela qual acabe confirmando a predominância do masculino no interior da pós-modernidade, embora deslocado geneticamente para o corpo feminino.
Um país tomado por um povo corrompido
Considerando que tanto João Gilberto Noll como Raduan Nassar produziram obras que pouco se assemelham ao naturalismo do século 19 e início do 20, a afirmação de que são escritores naturalistas soará evidentemente como absurda. Aproveito, portanto, para destacar que o naturalismo atual ( vale para o cinema) obviamente não é do mesmo tipo que o do passado. Embora mantenha a mesma lógica do naturalismo de um escritor como Aloísio de Azevedo (1857-813), sujando o considerado sujo a fim de que o presunçosamente limpo se confirme como limpo, as obras naturalistas atuais possuem uma linguagem contemporânea, plástica, dotada de extrema variação formal, inclusive usando estratégias e recursos experimentais produzidos pelas vanguardas artísticas do início de século 20.
E aqui chegamos à atual novela das 9, da TV Globo, Avenida Brasil, de João Manoel Carneiro, igualmente naturalista, razão pela qual possui uma função catártica através da qual suja o considerado sujo e limpa o considerado limpo, absolvendo tanto o autor ou o produtor (a limpa TV Globo), embora nem tanto assim o telespectador, por ser convocado a se identificar com a estilizada imagem alegre, sensual e banal do povo brasileiro, no fundo e no raso o sujado por excelência, embora nos seja apresentado como festivos, sarados e bonachões.
Avenida Brasil tem motivações naturalistas parecidas com a do filme Cronicamente Inviável (2000), do cineasta Sérgio Bianchi, embora, diferentemente do filme, que tem uma estrutura típica do naturalismo do século 19, seja uma novela de linguagem plástica, típica do naturalismo pós-moderno, neoliberal. O filme Cronicamente Inviável (2000) suja o Brasil como um todo, independente da região e da posição social dos personagens. Com exceção de Adam (representado pelo ator Dan Stulbach), garçom do restaurante de Luis (Cecil Thieré), todos os personagens do filme são cronicamente inviáveis, inclusive o misto de escritor e cientista social, Alfredo (Umberto Magnani), personagem que percorre todo o território brasileiro a fim de procurar algum lugar do Brasil que não seja sujo, comprovando imparcial e deterministicamente que produzimos um país inviável, pois está tomado por um povo corrompido (direita, esquerda; rico e pobre; proprietário e sem-terra) não escapando o próprio pesquisador Alfredo, envolvido que estava, conforme se depreende no final do filme, com o tráfico de órgãos humanos, aproveitando a naturalista pesquisa que fazia pelo Brasil afora para sorrateiramente transportar de forma clandestina órgãos humanos, a fim de ganhar uma grana extra.
Lixo jamais pode ser transformado em luxo
Não circunstancialmente o único personagem do filme que demonstra ser incorruptível e digno seja o polonês Adam (Dan Stulbach), pela simples razão de que não é naturalmente brasileiro, isto é, naturalmente sujo.
Tal como o filme Cronicamente Inviável, a novela Avenida Brasil é naturalista porque sua função catártica é a de sujar todo o povo brasileiro, independente da posição social dos personagens, se rico, pobre, homem, mulher, negro, branco. O Brasil é cronicamente inviável, segundo a moral da história de Avenida Brasil, porque sua elite econômica é decadente e parasitária; seu povo é banal, ingênuo, tosco e facilmente corruptível; sua classe emergente não tem força coletiva, seja porque se enriquece através do futebol, coisa que não dá camisa para muita gente, como o caso de Tufão (Murilo Benício); seja porque é constituída de um perfil tosco de novo rico, como a empreendedora cabeleireira Monalisa (Heloísa Périssé), a qual, embora arregace a manga, seja honesta e “gente boa”, é incapaz, por outro lado, de encarnar um país viável e próspero, por ser demasiadamente periférica, tosca.
Por outro lado, o lixão da novela, onde gerações de miseráveis brasileiros convivem e vivem promiscuamente como catadores de lixo, é seu elemento mais evidentemente naturalista, podendo ser interpretado como o epicentro da Avenida Brasil, sua insalubre, inviável e literalmente suja praça pública. O lixão, portanto, é o Brasil, lugar onde miseráveis extrativistas inviáveis vivem de extrair restos de lixo para manter suas imundas vidas. Ele é, pois, o viveiro de onde brotamos, germinamos e para onde inevitavelmente voltaremos, deterministicamente, seletivamente, hereditariamente.
Do lixo viemos, para o lixo voltaremos; eis a catártica e naturalista moral da história de Avenida Brasil. No entanto, se a fórmula da representação naturalista está implicada com o jogo de sujar o já preconceituosamente sujado e de limpar o presunçosamente limpo, onde está o limpo na novela Avenida Brasil? É aqui que Avenida Brasil se aproxima novamente do filme Cronicamente Inviável, pois tal como este o limpo jamais pode emergir e se constituir do lixão chamado Brasil, país do darwinismo social no qual lixo jamais pode ser transformado em luxo, de vez que é lixo que faz lixo, vindo do lixo, hereditariamente.
Sair do neoliberalismo é desprivatizar-nos
Tal como Cronicamente inviável, Avenida Brasil apela para a origem limpa do limpo, sua herança genética, territorial e miticamente considerada limpa, a saber: os bens físicos, comportamentais, axiológicos, intelectuais, lingüísticos, artísticos, tecnológicos do colonizador europeu e norte-americano. Tal qual Cronicamente inviável, Avenida Brasil é de fato um pedido desesperado de socorro à arrogante missão civilizatória, inscrita religiosamente no DNA do imperialismo europeu e americano.
Diferentemente de Avenida Brasil, no entanto, o filme de Sérgio Bianchi constitui um pedido de socorro à germinal missão civilizatória imperialista tendo como motivação ou pretexto o fim deplorável dos dois mandatos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, num contexto em que a sua política neoliberal contribuiu como nunca para sujar o Brasil de miséria, abandono, violência, cinismo, indiferença e privatização, tanto no sentido objetivo, de empresas e recursos públicos, quanto no sentido subjetivo, de vez que o neoliberalismo privatizou não apenas grandes empresas públicas, mas também famílias, as classes sociais, subjetividades, desejos. Num certo sentido, com o neoliberalismo, todos fomos privatizados, razão pela qual sair do neoliberalismo é também nos desprivatizar.
De forma diferente e ao mesmo tempo semelhante ao filme Cronicamente inviável, por sua vez, a novelaAvenida Brasil suja o Brasil após dois mandatos do governo Lula da Silva, com o propósito de indicar – e ao mesmo tempo profetizar – que vivemos num país cronicamente inviável porque a ascensão econômica e a cultural que vêm do lixo (a primeira, a econômica, representada pela personagem Carminha, Adriana Esteves; e a segunda, a cultural, pela personagem Nina, Débora Falabella) é hereditariamente lixo, razão pela qual para o lixo voltará, como que a dizer que Lula, vindo do lixo da pobreza migrante nordestina, só poderia produzir, como presidente, um embuste de ascensão econômica e cultural para o Brasil, porque como lixo, seu governo é hereditariamente lixo.
Avenida Brasil é, pois, um pedido de socorro naturalista ou um desesperado clamor de golpe de Estado, financiado e planejado pelos limpos, civilizados, genuínos e humanitários imperialistas, contra o “lixo” do governo de Lula e agora de Dilma Rousseff.
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[Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e e professor na Universidade Federal do Espírito Santo –Ufes]
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