quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Estudo mostra a arbitrariedade policial historicamente em Salvador









Arbitrariedades policiais e a utilização da violência no combate à criminalidade em Salvador (1940 a 1960) (Parte 1)



por Wanderson B. de Souza












Introdução



A suspeição generalizada contra os grupos subalternizados acabava justificando a política de repressão e a busca pela manutenção da ordem, uma das prerrogativas dos poderes públicos e de suas instituições. Assim, o surgimento da República Brasileira é marcado pela incorporação de estratégias de dominação, cuja metodologia consistiu na exclusão, arbitrariedade e repressão àqueles considerados inimigos da sociedade, tal como os criminosos sempre foram conceituados e entendidos. Temos então, um projeto político-ideológico, fruto do processo de discriminação no Brasil, incorporado e defendido pelos grupos dominantes baianos, o qual teria sido responsável por gerar uma sociedade excludente.



Ora, desde os primeiros anos desse período o crescimento da criminalidade já era noticiado pela imprensa baiana, que via os problemas de ordem estrutural como elementos que facilitavam a ação dos criminosos. Algumas dessas ações criminosas eram denunciadas pelos moradores, os quais, em certos momentos, recorriam aos veículos de comunicação para realizarem suas reclamações.[2]



A falta de policiamento nas ruas da cidade era constantemente questionada por essa imprensa, segundo a qual a onda de criminalidade vivida em Salvador não se restringia apenas aos bairros populares,[3] incluía também o centro da cidade, cujas políticas de prevenção exercida pelos policiais tornavam-se uma prática pouco eficiente.[4] As fontes jornalísticas evidenciam uma cidade com altos índices de violência,[5] refletindo os descasos das autoridades frente aos problemas enfrentados por essa sociedade, embora os relatórios tenham apresentado realidade diferente daquela noticiada pela imprensa.[6]



Ressaltamos que o universo social em que esses sujeitos estavam inseridos era marcado não só por relações conflituosas, havia também as relações de solidariedade, sociabilidade e afetividade, para as quais pouca ou nenhuma atenção era dada pela imprensa e pela esfera jurídico-policial.



Mostraremos a seguir como funcionavam as estratégias de segurança implementadas pelas autoridades locais a partir do reaparelhamento policial, na busca de combater a criminalidade. Ao longo dos anos estudados, a solução encontrada para o problema foi o uso instrumental da violência nas intervenções dos administradores públicos, sob alegação da manutenção da “ordem pública” com “[...] a imposição coercitiva das regras de regulação de comportamentos [...]”, cujo modelo de “ordem pública” se apresentou como a busca sistemática pelo controle coercitivo daqueles considerados desobedientes, os quais escapavam das normas da lei e da ordem.[7]



Políticas de Segurança Pública: aparelhamento policial e controle social na capital baiana.



Ao longo dos anos de 1940 e 1960 as autoridades baianas foram pressionadas, sobretudo pela imprensa local, a investir no setor de segurança pública, no sentido de conter o aumento da violência em Salvador que era anunciado nos periódicos. Em vários momentos essa imprensa publicou notícias contendo os fatos cotidianos de insegurança, colocando em cheque o serviço oferecido aos soteropolitanos.



O jornal A Tarde, de Novembro de 1940 informou que “[...] os moradores do Canela vivem sobressaltados com os ladrões que, ultimamente, infestam impunemente aquele bairro. O que faz a Policia?” Segundo o periódico diante dessa situação, “[...] os prejudicados, já em grande numero, pedem providencias, por nosso intermédio, às autoridades competentes”[8].



Mais uma vez, agora em Maio de 1943, A Tarde lançou mais notícias referentes à constante onda de assaltos que vinham ocorrendo na cidade, mas dessa vez na zona compreendida entre o Largo dos Mares, bairro do Uruguai e Rua Nova, em Itapagipe. Segundo o periódico, os moradores daquela região viviam “[...] em constantes sobressaltos, com os ladrões, que não deixam as famílias em paz [...] quando pressentidos, atiram, provocando pânico”[9].



Com tais reportagens, a imprensa baiana se colocava como uma intermediária entre os anseios de parte da população e as responsabilidades das autoridades competentes, cobrando destas maiores esforços no sentido de oferecer um melhor serviço de segurança aos soteropolitanos. Em meio a essas preocupações com relação à questão da segurança pública, identificamos algumas das tentativas de melhoria desta, no Estado da Bahia, e mais especificamente na capital, realizadas pelas autoridades. Ressalte-se que isto ocorreu em um contexto no qual, segundo Elizabeth Cancelli, toda a sociedade brasileira fora submetida a uma vigilância constante, cujo aparato policial refletia um projeto político que não mediu esforços em liquidar determinados grupos.[10]



Em 1940 a Polícia Militar convocou voluntários que tivessem interesse em formar o quadro dessa corporação, tendo como objetivo a ampliação do seu efetivo.[11] Foi um contexto em que as autoridades administrativas do Estado e município passaram se preocupara em investir melhor no setor de segurança pública, seja na contratação de novos policiais, seja no âmbito administrativo desse setor, especialmente no aparelhamento das instituições policiais. Na realidade, esse processo fez parte de um projeto político mais amplo, sistematizado pela esfera federal que “[...] previu a existência de um aparato policial capaz de exercer o controle social, disciplinar o dia-a-dia dos trabalhadores e da sociedade como um todo”[12].



Esse aparelhamento foi alegado em Março de 1941, pelo Diretor do Departamento de Polícia Técnica, Pedro Augusto de Melo, no Relatório referente às atividades desenvolvidas no ano de 1940. Quando relatou o desempenho do Instituto de Investigação Criminal, ele defendeu que a diretoria da mencionada instituição tinha “[...] se revelado profícua e solícita no desempenho dos seus encargos e mais eficiente desenvolverá a sua ação quando melhor aparelhamento lhe for proporcionado [...]”[13]. Esse discurso oficial ilustra bem a constante busca das autoridades policiais pelo melhor aparelhamento das instituições policiais da época.



O Secretário de Segurança Pública do Estado, Urbano Pedral Sampaio, encaminhou um projeto ao Interventor Federal, Landupho Alves de Almeida, em Setembro de 1941, no qual solicitava mais investimento no aparelhamento policial baiano.[14] Visando atender a solicitação do secretário, o Interventor, em um Decreto-Lei, se comprometeu em, supostamente, dar melhores condições administrativas à Polícia Militar da Bahia, criando mais cargos e transferindo algumas funções internas dessa secretaria.[15]



Em Fevereiro de 1941, o então secretário de Segurança Pública encaminhou mais um Projeto de Lei ao Interventor Federal para fixar a força policial, e o mesmo foi contemplado a partir do Decreto-Lei que aprovou um orçamento de 11.910:449$800 para os gastos previstos no decreto. Essa solicitação foi submetida à análise do Presidente da República, Artur Fraga, que em ofício apresentou o parecer do Departamento Administrativo favorável ao orçamento em questão. [16]



Essa busca pela ampliação de condições estruturais da polícia baiana assemelhava-se com a política de governo observada por John D. French, na ditadura de 1937, quando, segundo o mesmo, ampliou-se as instituições policiais que adquiriram grande importância por meio da imposição de uma nova abordagem para o crime e com novas punições.[17] Seja a partir da busca por novos investimentos ou reorganização da força policial existente, o certo foi que, aos poucos, as instituições policiais ganhavam maiores condições materiais e humanas para o controle dos grupos subalternizados.



Embora tenha ocorrido esses investimentos no setor policial da capital baiana, no início da década de 1940, encontramos constantes queixas contra a falta de policiamento nas ruas de Salvador, alvo das críticas jornalísticas da época que condenavam a ineficiência do serviço de policiamento regular da cidade, sobretudo durante a noite. Esse policiamento noturno era realizado pela Polícia Municipal, também conhecida por Guarda Municipal, criada em 1944 para garantir a tranqüilidade dos habitantes de Salvador, prestando serviço de vigilância às repartições públicas municipais, aos monumentos, aos jardins, às praças públicas, dentre outros patrimônios da cidade.[18]



Conforme o jornal A Tarde, de Outubro de 1944, tanto a polícia baiana quanto os métodos de sua ação, foram criteriosamente examinados, com o objetivo de “[...] dotar a nossa polícia de melhor aparelhamento, em material e pessoal, e imprimir ao seu funcionamento a orientação correspondente às múltiplas necessidades a que se deve atender”[19]. Nesta matéria, o periódico fez um balanço das atividades desenvolvidas durante a administração do governador Pinto Aleixo, destacando os primeiros meses da gestão do tenente-coronel Alberto Ribeiro Paz à frente da Secretaria de Segurança Pública do Estado. Embora o periódico tenha expressado de forma positiva as realizações desse período de gestão administrativa do secretário, a reportagem ressaltou algumas pendências ainda existentes na segurança pública.



No dia seguinte à publicação da matéria acima, o mesmo periódico retomou a discussão sobre o aparelhamento nos setores de segurança pública, analisando, especialmente, as funções de cada setor dessa secretaria e os novos desafios impostos pela sociedade moderna à Secretaria de Segurança Pública do Estado. Nessa perspectiva, o jornal sugeriu que:



[...] a polícia deve merecer a confiança de todos aqueles que não infringem as normas legais, todavia, deve ser temida por todos os criminosos, seja qual for a espécie. [informou ainda, que para isso, havia ampliado] os seus setores de ação, ajustando o seu pessoal, empregando novos métodos no deslindar o crime [...] desenvolvendo a argúcia e a inteligência dos policiais, tratamento humano para os criminosos, colocando longe deles as severas pressões das autoridades policiais. [20]



Em 1945, o Comandante Geral da Força Policial, Everardo de Simas Kelly, com essa mesma perspectiva expansionista, encaminhou ao secretário de segurança um Ante-Projeto de fixação da força policial para o ano seguinte. Esse documento visava não só ampliar o efetivo da corporação, mas sugeria algumas alterações na organização da Força Policial do Estado, cuja justificativa era que “[...] as ligeiras alterações propostas no quadro do pessoal são [eram] ditadas, todas, pela necessidade de um reajustamento que melhor atende [sse] aos interesses do serviço na sua realidade prática”[21].



Não sabemos ao certo os desdobramentos desse Ante-Projeto, mas, por ora, nos interessa saber a intenção do Comandante em ampliar o efetivo policial que, na prática, respondia aos anseios de determinados grupos da sociedade por maiores condições de segurança na capital baiana. Neste caso, o pedido de fixação da força policial, encaminhado ao secretário de segurança vislumbrou intervenções mais práticas nesse serviço cotidiano.



Foi nesse contexto de modernização e reestruturação das forças militares que Nilson C. Crusoé Junior asseverou ter surgido um conjunto de práticas que tinham como objetivo as formas de organizações sociais, segundo ele, criando formas de dominação com base em mecanismos de controle e coerção.[22]



Em Abril de 1949, o jornal A Tarde publicou uma reportagem na qual apresentou um relatório das atividades desenvolvidas pela Secretaria de Segurança Pública, durante o ano anterior. Conforme nos informou a notícia, embora lançando mão de uma série de críticas às condições estruturais oferecidas ao serviço de segurança, o periódico afirmou, “[...] sem temor de contestação, que nenhum crime, mesmo quando imputado a polícia deixou de ser apurado e entregue ou apontado à Justiça o respectivo autor”[23].



Destarte, a matéria conclui que a ação desenvolvida pela Polícia durante o ano de 1948, teria reduzido o número de crimes de sangue ocorridos, quando se:



[...] verificaram apenas 13 homicídios o que é realmente um índice excepcional, numa população superior a trezentas mil almas. [destacando que] nenhuma irregularidade ou excesso atribuído a elementos da polícia: civil ou militar, chegado ao conhecimento das autoridades superiores ficou sem o corretivo previsto na lei, não sendo pequeno o numero de punições, inclusive demissões aplicadas.[24]



Percebemos, ao longo da reportagem, a intenção de elogiar os trabalhos desenvolvidos pela polícia, esta definida como uma “polícia de um governo democrático”. Longe deste estado de perfeição, na prática, os excessos de violência por parte dos policiais continuavam ocorrendo na cidade e eram destaques em alguns jornais, como veremos mais adiante.



As notícias jornalísticas que versam sobre a questão da violência em Salvador, especificamente do ano de 1950, dão conta da falta constante de policiamento, sobretudo, de um serviço regular e bem distribuído de policiamento nos bairros da capital. Na compreensão do Diário de Noticias de Junho do mesmo ano, Salvador era uma cidade que carecia, portanto, de um serviço eficiente de policiamento na cidade, capaz de garantir a tranqüilidade da sua população,[25] bem como assegurar a “ordem pública”.[26]



O aumento do número de crimes ocorridos em Salvador levou o Governo do Estado a construir alguns outros presídios, cujo objetivo fora ampliar a capacidade das cadeias locais. A justificativa utilizada para isso foi a de poder garantir melhores condições de higiene e conforto aos sujeitos que nesses espaços eram recolhidos, uma vez que os presos da Secretaria de Segurança Pública, recolhidos nas Delegacias de Polícia e nos Postos Policiais, para breve permanência, eram encaminhados para os presídios.[27] No fundo, essa estratégia fazia parte de uma política mais ampla de punições severas e eficazes contra alguns sujeitos considerados “socialmente periculosos”, como observou Elizabeth Cancelli.[28]



Em uma de suas matérias, o jornal A Tarde apresentou as péssimas condições em que se encontravam os presídios baianos deste contexto, cujas celas trancafiavam homens sob as mais indignas condições humanas. Segundo o periódico, esses sujeitos eram “[...] considerados a mais ‘fina flor da baixa escória’, sem direito a recuperação social, condenados definitivamente por crimes que, às vezes, ainda deverão ser apurados”[29].



Essa situação foi identificada também no início de 1940, quando o Diretor da Casa de Detenção da Bahia, Leopoldo Braga, lamentou a supressão no orçamento liberado para as despesas e apresentou suas sugestões de melhoras para a referida instituição. Informava este que, transcorridos alguns meses iniciais do corrente ano, sem que “[...] os detidos deste estabelecimento tenham logrado obter, sequer, uma peça de vestuário, de roupa de cama ou de calçado [...] Os infelizes detentos estão dormindo em colchões nus, desagasalhados ou sobre farrapos [...]”[30]. Segundo sua conclusão, a situação na qual se encontrava a Casa de Detenção era insuportável.



Entre as denúncias apresentadas estava a de que os detentos dormiam no chão, sem esteira para forrá-lo, além de faltar água e comida, tornando a sobrevivência nesses locais uma tarefa muito árdua. Isso nos leva a recorrer às considerações de Eronize L. Souza sobre esse processo, pois a mesma concluiu que notícias como essa “[...] apresentam-nos um quadro de um encarceramento permeado por precariedades”[31].



Entre as diversas notícias sobre a ampliação do efetivo da Polícia Militar, encontramos uma que, segundo a informação, visou “[...] atender às necessidades do policiamento nesta Capital e no interior”. Tal medida fez parte de um programa, cujo objetivo era ampliar as responsabilidades da instituição, “[...] integrando-a no aparelhamento policial do Estado como organismo de ação ostensiva em todos os seus setores”[32].



Ainda de acordo com o referido programa, a Polícia Militar ampliaria sua responsabilidade no policiamento, incluindo assim, o policiamento de trânsito, de estradas, dentre outros, além de restaurar algumas das funções já existentes, como, por exemplo, o “esquadrão de cavalaria”. Já o policiamento dos locais mais afastados do centro, como, por exemplo, as zonas rurais da cidade, tinha a intenção de adotar algumas inovações já utilizadas em outras cidades, tais como a Radio-patrulha e a inserção de cães no policiamento do trânsito. Na prática, tais policiamentos ostensivos, segundo Elizabeth Cancelli, eram mais uma das tentativas de vigiar as ruas, que autoridades policiais acreditavam funcionarem como foco dos elementos socialmente perigosos.[33]



O jornal A Tarde informou que o plano apresentado pelo novo comandante “[...] impressionou satisfatoriamente aos convidados, deputados e jornalistas, dentre os quais o presidente da Câmara dos Deputados, secretários de Estado e diretores de jornais”[34]. Para a população em geral, as reformas estruturais almejadas tinham suas implicações negativas, como nos mostrou a denúncia de um leitor contra a retirada de um guarda que servia no prédio onde ficava a Justiça do Trabalho,



Se realmente o governo está demonstrando propósito de policiar a cidade em todos os seus setores, nem sempre tem concretizado esse intuito. Na Justiça do Trabalho, por exemplo, onde sempre existiu um guarda de plantão, dados os naturais atritos que, por vezes transcendem as salas de audiências, espalhando-se pelos corredores, agora não há policiador algum.



Sob alegação de que os guardas são poucos, o Delegado Auxiliar mandou retirar o que servia naquela Justiça. O resultado é que Juizes, advogados, partes e funcionários estão sujeitos a tudo, nos três andares que os órgãos trabalhistas ocupam no prédio do Ipase, sem que nenhuma providencia imediata possa ser tomada.[35]



Conforme o trecho acima, o programa que prometia ampliar os serviços de segurança oferecidos à população demonstrava seus limites, quase sempre, criticados pelos soteropolitanos insatisfeitos com o mesmo. Em parte, esse problema ilustrou o que Nilson Crusoé Junior definiu como o modelo de Estado que foi instituído pelo regime Vargas, que deu subsídios concretos de afirmação social dos grupos dominantes, frente aos grupos subalternizados.[36]



O funcionamento do serviço de policiamento noturno era realizado por uma força policial chamada de Guarda Noturna, composta por homens que, quase sempre, eram acusados de despreparo para o serviço de vigilância, conforme se veiculava na imprensa. Estes guardas apareciam constantemente envolvidos em ações arbitrárias, confusões por diversos motivos, entre os quais identificamos um incidente ocorrido devido às dificuldades da administração pública em organizar, gerir e manter esse serviço. Entre essas dificuldades observamos os atrasos nos pagamentos, baixos salários, além de não disporem “[...] de armas que lhes garantam tal vigilância. Também, não tem fardas nem documento algum que os identifique”[37].



Outra força policial que reforçava a segurança da capital baiana era a Patrulha Volante, que contava com a utilização de veículos, Jipes e caminhonetes para a realização do policiamento.[38] Em alguns momentos, a imprensa acusou sensíveis reduções da incidência da criminalidade na cidade, em decorrência da ação dessa patrulha, mas uma das reportagens ressaltou que a falta de transporte comprometia a qualidade desse serviço.[39]



Entre os vários problemas enfrentados por esses policiais estava a dificuldade em se conseguir requisições para a utilização da viatura que, segundo defendia o periódico, “[...] deveria permanecer a sua disposição durante as 24 horas do dia”. Na prática, o veículo utilizado por essa patrulha, naquele momento, era “[...] um dos poucos veículos que, na policia, prestam real serviço (na ronda), pois é sabido que somente de raro em raro se realizam as diligencias marcadas pelas autoridades, devido à falta de caminhonetes”[40].



Embora tenhamos mencionado a tentativa do governo baiano de ampliar o quadro da Polícia Militar, bem como os novos desafios desta, a partir do policiamento ostensivo, a Prefeitura de Salvador, compreendia a polícia do Estado como insuficiente para manter a segurança da sua capital.



Até então, a polícia baiana era formada apenas por homens, mas em Novembro de 1956 foi criado o Corpo de Policiamento Especial Feminino. Segundo informou o repórter Walmir Palmas, essa corporação iniciou suas atividades com um efetivo de apenas vinte moças. O responsável pela criação de uma força policial dessa natureza, na Bahia, foi o Secretário de Segurança Pública Lafayete Coutinho, baseado na Policia Feminina de São Paulo. Mas no que tange à sua estrutura, essa corporação surgiu sem condições materiais reais de garantir um bom serviço aos soteropolitanos, pois mesmo depois do quarto ano de fundada ainda não tinham, sequer, viaturas próprias.[41]



Isso teria motivado os administradores locais a solicitar a criação do Corpo Especial de Polícia Vigilante do Município, uma nova força policial com o desafio de assegurar tranqüilidade às noites da cidade, tendo em vista as constantes reclamações direcionadas às ações de vandalismos nesse período.[42] A justificativa utilizada pelo prefeito da época, foi a de que essa polícia seria criada devido à deficiência dos serviços prestados pela Guarda Noturna, que não davam conta da intranqüilidade noturna da população de Salvador.



Como nos mostra um periódico, em julho de 1955, a tarefa de vigiar as noites da capital baiana, “[...] tanto das casas comerciais quanto das residências, vem sendo feita, há anos, por instituições particulares e na verdade não há por que criticá-las, uma vez que têm prestado inestimáveis serviços, que a população sempre reconheceu e agradece”. Além da defesa da continuidade dos serviços da Guarda Noturna, o periódico nos informa a existência de uma das antigas guardas presentes nas noites da cidade, buscando garantir o sono tranqüilo de seus moradores, a saber, a Guarda Noturna do Comercio, que em Junho de 1955 já contava com 82 anos de existência.[43]



A criação dessa nova força policial, mantida pelo poder público, foi mais uma das tentativas de garantir a suposta “ordem pública” na capital baiana, para isso seria necessário ampliar a vigilância dos soteropolitanos considerados “socialmente periculosos”. Na prática, essa constante vigilância não conseguia evitar que assassinatos como o de uma mãe na frente de seus seis filhos, cometido pelo seu amásio, fossem consumados.[44]



Esse caso demonstra que, por um lado essa política da polícia em monitorar os comportamentos e costumes dos grupos subalternizados não evitava as mortes, por outro, ela se tornava cada vez mais especializada na captura dos autores, tal como ocorreu. Em tom de exaltação, o jornalista do Diário de Notícias retomou o mesmo episódio para mostrar o sucesso da polícia na diligência que capturou o autor do homicídio. Assim, a notícia iniciou informando, que “[...] com felicidade foi concluída a diligência encetada pela Diretoria de Investigações [...] no sentido de capturar Lourival Pereira, assassino que há 5 dias atrás, matou com 16 facadas a sua companheira [...]”[45].



Nesse contexto, o projeto político de segurança pública do Estado se preocupou, primeiramente, em monitorar e ampliar as condições de vigilância da sociedade como um todo, e em seguida, reprimir todo e qualquer comportamento considerado inadequado aos ideais de modernização. Em meio a esse processo, buscamos analisar os valores defendidos e vivenciados pelos indivíduos que realizavam esse policiamento na prática, pois como veremos, os comportamentos desses homens, em muitos casos, contradiziam as determinações superiores, sobretudo quando os mesmos se envolviam em práticas definidas como inadequadas às suas funções.



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[1] Mestre em História pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB); Integrante do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Africanos e Afro-brasileiros - AFROUNEB/UNEB. E-mail: wbs2003@bol.com.br.



[2] “Policiamento”. Jornal da Bahia. Salvador, 7 de nov. de 1959, p. 7.



[3] “Falta de policiamento”. Diário de Noticiai. Salvador, 24 de jun. de 1950, p. 4.



[4] “A repressão é enérgica mais os infratores não desistem”. A Tarde, Salvador, 21 de fev de 1951, p. 8.



[5] “Assume gravidade a falta de policiamento”. A Tarde, Salvador 21 de ago. de 1945, p. 3.



[6] Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB). Relatório, encaminhado pelo Diretor do Instituto de Identificação ao Departamento de Polícia Técnica, em 24 de Janeiro de 1942. APEB. Secretaria de Segurança Pública. Caixa. 6486, Maço. 2, fl. 4.



[7] PAIXÃO, Antônio Luiz & BEATO F., Claudio C. “Crimes, vítimas e policiais”. In: Tempo Social; Rev. Sociologia. USP, S. Paulo, 9 (1): 233-248, maio de 1997, p. 235.



[8] “Os ladrões agem no Canela”. A Tarde. Salvador, 15 de Nov. de 1940, p. 2.



[9] “Toda zona vive em sobressalto”. A Tarde. Salvador, 22 de maio de 1943, p. 8



[10] CANCELLI, E. O mundo da violência: a polícia da era Vargas. 2. ed Brasilia: Ed. UNB, 1994, p. 26.



[11] “Voluntário para a Polícia Militar”. A Tarde. Salvador, 25 de Nov de 1940, p. 2.



[12] CANCELLI, E. Op. Cit. p. 26.



[13] APEB. Relatório, encaminhado pelo Diretor do Departamento de Polícia Técnica ao Secretário de Segurança Publica do Estado, em 31 de Março de 1941. Secretaria de Segurança Pública. Caixa (Cx.) 6457, Maço (Mç) 2, Folha (f.) 3.



[14] APEB. Projeto de extinção e criação de cargo na Policia Militar, encaminhado pelo Secretário de Segurança Publica ao Interventor Federal no Estado, em 23 de Setembro de 1941 Secretaria de Segurança Pública. Cx. 6444, Mç. 2.



[15] APEB. Decreto Lei do Interventor Federal no Estado, s/n. em 04 de Outubro de 1941. Secretaria de Segurança Pública. Cx. 6444, Mç. 2.



[16] APEB. Oficio nº. 57, encaminhado pelo Secretário de Segurança Pública ao Interventor Federal no Estado, em 12 de Fevereiro de 1941. Secretaria de Segurança Pública: correspondências expedidas e recebidas. Cx. 6457, Mç. 2; APEB. Decreto Lei nº. 1962 do Interventor Federal no Estado, de 16 de Agosto de 1941. Secretaria de Segurança Pública. Cx. 6457, Mç. 2; APEB. Oficio nº. 892, encaminhado pelo Presidente da República ao Interventor Federal no Estado, em 09 de Abril de 1941. Secretaria de Segurança Pública: correspondências expedidas e recebidas. Cx. 6457, Mç. 2.



[17] FRENCH, John D. “Proclamando leis, metendo o pau e lutando por direitos: a questão social como caso de polícia”. In: LARA, S. H.; MENDONÇA, J. M. N. Direitos e justiças no Brasil: ensaios de história social. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006, p. 397.



[18] Vale ressaltar que a manutenção dos serviços da Polícia Municipal era da responsabilidade da Prefeitura local, que cobrava uma taxa dos proprietários de imóveis, baseando-se em outras experiências já existentes no Brasil, como, por exemplo, Distrito Federal e Rio de Janeiro. Assim, a Prefeitura tornou-se responsável pelos serviços de vigilância prestados pelos guardas de vigilância noturna particular, já existente na cidade. Cf. “A criação da Policia Municipal na Bahia”. A Tarde. Salvador, 4 de Jun. de 1943, p. 2; “A criação da Policia Municipal: com o Conselho Administrativo o projeto de Decreto-Lei”. A Tarde. Salvador, 28 de Jun. de 1943, p. 2.



[19] “A situação da Bahia: dois anos de atividades administrativas ao serviço do Estado”. A Tarde. Salvador, 26 de Out. de 1944, p. 9.



[20] “Trabalha com eficiência o aparelhamento policial do Estado: visão dos seus diferentes serviços no corrente ano”. A Tarde. Salvador, 27 de Out. de 1944, p. 4.



[21] APEB. Ante-Projeto de Lei de Fixação de Força para o ano de 1946, em Dezembro de 1945. Secretaria de Segurança Pública: correspondências expedidas e recebidas. Cx. 6447, Mç. 1. f. 2.



[22] CRUSOÉ JUNIOR, N. C. “Da Volante” à Academia: a polícia Militar da Bahia na Era Vargas (1930-1945). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2005, p. 52.



[23] “Como age a policia de um governo democrático: relatório das atividades da Secretaria de Segurança Pública no ano de 1948”. A Tarde. Salvador, 12 de Abr. de 1949, pp. 8-9.



[24] Idem.



[25] “Falta de policiamento”. Diário de Noticias. Salvador, 24 de Jun. de 1950, p. 4.



[26] De acordo com Marco A. M. Pereira, Ordem Pública concebida a partir de uma leitura policial do termo significa a manutenção e a guarda do bom andamento da vida, da ordem social, bem como do patrimônio público, cujo objetivo é a normatização da população. Cf. PEREIRA, M. A. M. “Discurso Burocrático e Normatização Urbana e Populacional no inicio do século XX.” In: Revista de História Regional. V.5, Nº 1, 2000, p. 43.



[27] “Melhores instalações para os serviços da policia”. A Tarde. Salvador, 8 nov. 1950, p. 2.



[28] CANCELLI, E. Op. Cit. pp. 33-4.



[29] “É a Bastilha dos Dendezeiros: os presos na “Coréia” são tratados como animais”. A Tarde. Salvador, 7 jun. 1955, p. 2.



[30] APEB. Oficio nº. 51, encaminhado pelo Diretor da Casa de Detenção da Bahia ao Diretor do Departamento de Polícia Preventiva, em 18 de maio de 1940. Secretaria de Segurança Pública: correspondências expedidas e recebidas. Cx. 6479, Mç. 4.



[31] SOUZA. E. L. Prosas da Valentia: violência e modernidade na Princesa do Sertão (1930-1950). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008, pp. 240-1.



[32] “Restauração e a ampliação da Policia Militar”. A Tarde. Salvador, 25 jun. 1955, p. 2.



[33] CANCELLI, E.. Op. Cit. pp. 33-4.



[34] “Restauração e a ampliação da Policia Militar”. A Tarde. Salvador, 25 jun. 1955, p. 2.



[35] “Justiça sem policia”. A Tarde. Salvador, 18 de Jul. de 1955, p. 3.



[36] CRUSOÉ JUNIOR, N. C. Op. Cit. pp. 133-4.



[37] “Conflito na Guarda Noturna da Federação: desentendimento entre os guardas e o comandante”. Diário de Noticias. Salvador, 5 de Mar. de 1955, p. 8.



[38] “Melhores instalações para os serviços da policia”. A Tarde. Salvador, 8 nov. 1950, p. 2.



[39] “Patrulha volante”. A Tarde. Salvador, 16 set. 1954, p. 3.



[40] Idem.



[41] PALMA, Walmir. “Polícia Feminina uma instituição útil”. A Tarde. Salvador, 9 nov. 1960, p. 13.



[42] “O Corpo de Vigilantes”. A Tarde. Salvador, 28 jun. 1955, p. 3.



[43] “Policia Municipal”. A Tarde. Salvador, 13 jul. 1955, p. 3.



[44] “Assassinou com 16 facadas a sua companheira”. Diário de Noticias. Salvador, 1 de Fev. de 1955, p. 8.



[45] “Feliz diligencia da policia: preso o criminoso Lourival”. Diário de Noticias. Salvador, 8 de Fev. de 1955, p. 3.

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