sexta-feira, 17 de maio de 2013

Primeiras Décadas do Século XX: Um olhar Historiográfico Sobre Profissões em Lajeados, RS




por Neli Galarce Machado e Juciane Beatriz Sehn da Silva

Sobre a Primeira Autora[1]

Sobre a Segunda Autora[2]

INTRODUÇÃO

A história ou a conjunção de elementos estruturais de uma sociedade ou de um determinado grupo social inserido num contexto econômico global tem por função a construção a partir de fragmentos e ou interpretações do passado de um povo, de uma cidade ou de uma região. Conjecturando situações sobre a escrita da história percebe-se que as relações entre as análises e as coleções documentais ainda carecem de amadurecimento por parte dos historiadores, especialmente os historiadores que se dedicam aos temas regionais e locais. Nesse caminho, a temática abordada sobre as condições oficiais do trabalho e dos indivíduos na condição de trabalhadores oficiais da cidade de Lajeado, direciona para a relação contextual e a documentação do arquivo como fonte de observação de um período de estabelecimento de uma economia globalizante já no início do século XX. A abordagem é analítica, considerando as poucas evidências documentais e de registro sobre o tema, relacionando à preocupações como a preservação dos acervos e da memória documentada de um município como Lajeado, no Rio Grande do Sul.

Este artigo tem por objetivo ampliar o conhecimento da história regional, através da história das profissões existentes nas primeiras décadas do século XX, em Lajeado, e associar o seu potencial historiográfico à história nacional. Desta forma, é importante destacarmos que este será apenas um olhar, uma versão dentre tantas outras possíveis. Mesmo assim, é um exercício importante no sentido de pensarmos e significarmos a história local.

Neste sentido, buscamos, através da pesquisa documental realizada nos relatórios dos intendentes e nos códices de Alistamento Eleitoral Federal do Arquivo Histórico Municipal de Lajeado, investigar e analisar quais eram as profissões existentes no período de 1910 a 1929, se houve o surgimento de profissões novas, se estas se relacionam às transformações econômicas, bem como ao surgimento das primeiras fábricas, em Lajeado. Assim, estaremos ampliando o conhecimento sobre as relações sociais e econômicas no território de Lajeado, durante o período histórico estudado. Nesta perspectiva, o lugar torna-se singular, na medida em que produz e constrói racionalidades diversas. Porém, ele não está congelado no tempo e no espaço, mas sim, interagindo conjuntamente com os outros lugares e com o resto do mundo.

O município de Lajeado emancipou-se da cidade de Estrela no ano de 1891. Neste período, seu território geográfico era muito maior do que o atual, pois compreendia diversos municípios que hoje estão emancipados, como é o caso de Guaporé, Encantado, Progresso, Vespasiano Corrêa, Boqueirão do Leão, Santa Clara do Sul, Forquetinha, Cruzeiro do Sul, Arroio do Meio, Sério e Marques de Souza. Com as sucessivas emancipações ocorridas a partir de 1903, o território do município de Lajeado foi reduzindo-se aos poucos. Hoje corresponde a apenas 90,42 quilômetros quadrados de extensão[3].

O primeiro município a emancipar-se de Lajeado foi Guaporé, em 1904. Posteriormente, em 1915, foi a vez de Encantado tornar-se município. Todos os demais municípios citados acima se emanciparam na segunda metade do século XX, exceto Arroio do Meio, que se tornou independente de Lajeado em 1938.

A compreensão do espaço geográfico que constituía a cidade de Lajeado nas primeiras décadas do século XX é imprescindível para uma análise mais apurada das profissões que se desenvolveram neste período. Desta forma, teremos um perfil econômico e social que caracteriza um espaço que, embora transformado com o tempo, só tem sentido se analisado no contexto geográfico da época. Neste sentido, a revitalização desta história nos possibilita um olhar sobre o modo de vida destas pessoas que viveram naquele período histórico, e num espaço geográfico que hoje, sabemos, já não é mais o mesmo. Poderíamos dizer então, que esta não é somente a história de Lajeado, mas também dos demais municípios que na época compreendiam um grande território .

Nas primeiras décadas do século XX o município de Lajeado era dividido em seis distritos e cada uma destas subdivisões político-administrativas compreendia diversas localidades. Com base nos relatórios dos intendentes foi possível verificar quais eram as localidades e os distritos de Lajeado. Sendo assim, no período de 1910 a 1914, Lajeado era formado pelas localidades de São Gabriel, Arroio do Meio, Encantado e a Villa de Lajeado. No período de 1916 até 1929 são citadas pelos intendentes as localidades da Villa , São Gabriel e Arroio do Meio, como integrantes do município de Lajeado. Nota-se que neste período Encantado já havia se emancipado de Lajeado[4].

De 1924 até 1929, os distritos de Lajeado estavam organizados da seguinte forma: o primeiro distrito compreendia a Villa de Lajeado, o segundo Santa Clara do Sul, o terceiro a localidade de Fão, o quarto distrito compreendia Arroio do Meio, o quinto, Marques de Souza e por fim, o sexto distrito, São Gabriel. No ano de 1927 verificamos através do relatório do intendente Carlos Fett Filho, a denominação do primeiro distrito como sendo Lageado , não mais constando a partir de então a denominação Villa [5].

O período que compreende a Proclamação da República entre 1889 até 1930, é conhecido na historiografia brasileira como República Velha ou Primeira República . Desta forma, é fundamental compreender o contexto da época para então relacionar a formação política, administrativa e social de Lajeado, no período de 1910 a 1929.

Embora o Brasil tenha se tornado uma República em 1889, o poder continuou sendo controlado por um reduzido grupo de políticos em cada Estado. Neste sentido, a República concretizou a autonomia estadual, dando plena expressão aos interesses de cada região. Isso se refletiu na formação dos partidos republicanos restritos a cada Estado. Controlados por uma elite reduzida, os partidos republicanos decidiam os destinos da política nacional e fechavam os acordos para a indicação de candidatos à presidência da República[6].

A oligarquia gaúcha que controlava o PRR (Partido Republico Rio-Grandense) teve bastante autonomia em suas relações com a sociedade. Segundo Boris Fausto[7] o PRR impôs-se como uma máquina política forte, inspirada em uma versão autoritária do positivismo, arbitrando os interesses de estancieiros e imigrantes em ascensão .

Os governadores, assim como os presidentes da República eram eleitos pelo povo. O voto não era obrigatório e o povo, em regra, encarava a política como um jogo entre os grandes ou uma troca de favores. O desinteresse da população crescia quando nas eleições para presidente os partidos estaduais se acertavam, lançando candidaturas únicas, ou quando os candidatos de oposição não tinham qualquer possibilidade de êxito. Desta forma, os resultados eleitorais não espelhavam a realidade. O voto não era secreto e a maioria dos eleitores estava sujeita à pressão dos chefes políticos, a quem tratava de agradar. Havia fraudes eleitorais, falsificação de atas, voto dos mortos, dos estrangeiros, entre outros. Apesar de tudo isso, Fausto[8] ressalta que o comparecimento eleitoral cresceu em relação ao período do Império. Além disso, nem todas as eleições para presidente da República foram uma simples ratificação de um nome. Houve bastante disputa nas eleições de 1910, 1922 e 1930, quando se elegeram, respectivamente, Hermes da Fonseca, Artur Bernardes e Júlio Prestes.

Nos municípios vigorou até 1930 a figura dos intendentes, que a partir de 1896 passaram a ser eleitos. Nesta época, os intendentes eram responsáveis pelo poder executivo municipal, exercendo a função que hoje, delega-se ao prefeito. Estes intendentes eram figuras ativas politicamente, pois garantiam a articulação para a vitória de governadores e presidentes. Desta forma, alguns destes políticos se eternizavam no poder, permanecendo por muitos anos à frente das prefeituras[9].

Neste sentido, podemos exemplificar Lajeado, que foi governado durante dezesseis anos pelo intendente João Baptista de Mello, sendo que este assumiu a prefeitura em 1908 e permaneceu até 1924, quando então foi substituído pelo intendente Carlos Fett Filho, que permaneceu à frente da prefeitura até 1929. Os intendentes, por sua vez, dividiam a administração dos distritos, elegendo subintendentes que tinham a função de administrar o distrito que lhe fora designado.

Considerando o contexto socioeconômico no período que compreende a Primeira República, o Brasil continuou a ser um país predominantemente agrícola. De acordo com Fausto:

Segundo o censo de 1920, dos 9,1 milhões de pessoas em atividade, 6,3 milhões se dedicavam à agricultura, 1,2 milhão à indústria e 1,5 milhão aos serviços. Devemos notar que serviços englobam atividades urbanas de baixa produtividade, como os serviços domésticos remunerados e bicos de vários tipos. O dado mais revelador é o do crescimento do número de pessoas na área industrial, que, pelo censo de 1872, não passava de 7% da população em atividade, mas é bom lembrar que muitas indústrias não passavam de pequenas oficinas [...] [10].

No Rio Grande do Sul ocorreu, ao longo da Primeira República, uma acentuada diversificação das atividades econômicas, destinadas ao próprio Estado e ao mercado interno nacional. No setor agrícola, destacou-se, em primeiro lugar por ordem de importância, a produção de arroz, em seguida as de milho, de feijão e de fumo. O milho destinava-se ao mercado estadual, servindo de alimento para a criação de porcos[11].

Desta forma, insere-se o contexto regional das primeiras décadas do século XX, onde a base econômica de Lajeado era a agricultura. Através dos registros de Alistamento Eleitoral Federal, nos quais consta a profissão dos eleitores, foi possível verificar que a profissão de agricultor/lavrador é extremamente intensa neste período, destacando-se sempre em maior número de pessoas que exerciam a profissão ligada à agricultura, quando comparadas às demais profissões existentes, como, por exemplo, ferreiro, alfaiate, jornaleiro, barbeiro, dentista, advogado, carpinteiro, ourives, negociante, etc. Os códices consultados referem-se ao período de 1905 a 1914. Desta forma, procuramos destacar apenas o período entre 1910 e 1914, que nos interessava neste estudo.

Nos relatórios anuais elaborados pelos intendentes de Lajeado, no espaço destinado à indústria e profissão, não aparece especificado a profissão de agricultor ou lavrador, sendo que a referência à agricultura é feita em um anexo separado intitulado Quadro demonstrativo dos produtos exportados nos municípios do Lageado, com os respectivos valores , no qual consta a lista dos produtos que são cultivados no município, a quantidade exportada e o valor arrecadado. A partir deste relatório específico é possível verificar a diversidade de produtos agrícolas que são cultivados como, por exemplo, amendoim, batata, cebola, feijão, laranja, milho, trigo, dentre outros, o que nos leva a acreditar que a maioria das pessoas estava ligada à produção agrícola.

No entanto, conforme fora dito anteriormente, este é um período marcado por uma diversificação bastante acentuada de atividades econômicas. Neste contexto, vimos que as profissões adaptam-se as necessidades da época. Algumas aparecem ao longo de todo o período consultado, outras se extinguem, ou simplesmente não são mencionadas nos relatórios dos intendentes. Outras ainda surgem como profissões novas ao longo do período consultado, que corresponde aos anos de 1910 a 1929, conforme podemos verificar no quadro 1.



Quadro 1. Demonstrativo das profissões e de algumas atividades profissionais existentes emLajeado no período de 1910 a 1929

Algumas profissões não aparecem identificadas nos relatórios, mas são reveladas, através das incipientes fábricas existentes na época, como por exemplo, os alambiques, mencionados no início do quadro 1. As fábricas de alambique são referidas nos relatórios dos intendentes em grande número até 1915, quando então constatamos um decréscimo e estagnação destes estabelecimentos. Por detrás da produção de cachaça, havia os profissionais que se dedicavam a este ofício, no entanto estes não são mencionados. Da mesma forma a profissão de alfaiate, tão importante na época, se mantém em alta durante todo o período consultado, o que pode ser observado pelo grande número de alfaiatarias existentes. Já nos códices de Alistamento Eleitoral Federal, a profissão de alfaiate é referida[12].

Algumas profissões aparecem em número reduzido e em períodos específicos, como é o caso dos Agentes de clube, Agentes de seguro e Agente de querosene, sendo que ambas as profissões são referidas apenas nos anos de 1926, 1927, 1928 e 1929. No entanto, aparece na obra de Schierholt[13] a referência aos profissionais, que, fazendo uso do querosene, mantinham os lampiões da cidade aceso. Embora mencionasse o surgimento da energia elétrica, o mesmo acontece apenas em uma única rua da cidade, a partir de 1920, o que significa que no período anterior e posterior, a principal fonte de energia ainda era obtida através do uso de lampiões a querosene, havendo, portanto, pessoas com a função de acender os lampiões da cidade.

A iluminação das ruas e praças continuava a ser um problema. Moisés Cândido Veloso, famoso músico, percorria diariamente as ruas, para colocar combustível, trocar pavios e limpar os lampiões.

Apenas em 1920, na Rua Silva Jardim, a empresa local de Spohr & Frohlich instalou a rede de luz e força na vila. Os 50 lampiões de querosene foram substituídos por 80 lâmpadas elétricas[14].

Em 1917 e 1918 aparece a profissão de chineleiro, porém os relatórios já demonstravam ao longo dos anos de 1910 até 1929 a existência das fábricas de chinelos, variando entre dois e nove estabelecimentos ao ano, em Lajeado. Outra curiosidade da época é a profissão de colchoeiro, ou seja, fabricante de colchões. Esta profissão é referida nos anos de 1921 e 1922, no entanto as fábricas de colchões começam a aparecer nos relatórios a partir de 1923. Desta forma, é possível que façamos a seguinte inferência: nem tudo o que de fato existia constava em todos os momentos históricos. Poderia haver estabelecimentos que fechassem em determinado momento e ressurgissem nos anos seguintes, ou que simplesmente não eram mencionados. Outra profissão curiosa para a época é a de gerente de empresa que surge nos anos de 1912, 1917, 1918, 1919 e 1920, e depois não é mais mencionada.

A grande quantidade e a variedade de fábricas existentes na época demonstram a diversidade de profissões ligadas à produção de alimentos como, por exemplo, as fábricas de banha, conservas, vinho, vinagre, doces, linguiça, gasosa (refrigerante), queijo, manteiga, café, rapadura, melaço, dentre outras. Havia ainda as fábricas de bens de consumo, ou seja, de colchões, tamancos, fogões, vassoura, sabão, telha, tela de arame, chapéu, cama, caixas, cola, cigarros, charutos, fumo em latas, fogos, entre outras.

Há uma característica bastante singular das indústrias fabris da época. Nesse período a manufatura de bens de consumo ligada ao setor primário (alimentação, calçados, etc.) constituía a primeira linha de produção industrial. As fábricas ou pequenas indústrias existentes comportavam, em sua grande maioria, trabalhadores do próprio núcleo familiar (Imagem 1).



Imagem 1: Carpintaria de Gaspar Sanagiotto. Fonte: Fotografia 0052 do Arquivo Histórico Municipal de Lajeado, s.d.

No entanto, havia estabelecimentos que contratavam, de acordo com a quantidade e necessidade de produção, mão de obra de fora do grupo familiar. Para ilustrar esta questão, apresentamos em anexo uma fábrica de charutos, em que é possível verificar o patrão e seus funcionários em frente à fábrica, o que demonstra a existência de pessoas de fora do grupo familiar trabalhando na mesma (Imagem 2).



Imagem 2: Fábrica de Charutos em Santa Clara - José Diel e seus funcionários. Fonte: Fotografia 0050 do Arquivo Histórico Municipal de Lajeado, s.d.

É importante refletirmos que as diferentes formas de trabalho existentes na época ainda estão bastante ligadas a espaços privados, ou seja, eram realizados nos espaços das próprias residências das famílias. Mas pode-se também trabalhar por conta própria, no caso dos trabalhadores independentes como os fotógrafos, pedreiros, relojoeiros, trançadores, dentre outros. Nesta linha, podemos mencionar também os profissionais liberais, sendo que muitos deles atendiam em suas próprias residências: dentistas, médicos, sapateiros, marceneiros, carpinteiros, costureiras, alfaiate, etc. Sob esta perspectiva, Prost[15], ao abordar sobre a história da vida privada na Europa, contribui no sentido de delinear as diferenças entre o passado e o presente da vida dos operários nos domicílios. Segundo ele:

O trabalho domiciliar hoje aparece como um fenômeno marginal e residual. De fato, ele é incompatível com a organização atual da vida privada, que reserva a ela o espaço doméstico e o tempo livre conquistado sobre o trabalho. Como alguém, hoje em dia, aceitaria trabalhar em casa para terceiros quando as pessoas já nem aceitam trabalhar por conta própria?[16]

Nesta lógica, os locais de trabalho, ou seja, as oficinas e fábricas da época se desenvolvem mais em função dos locais disponíveis, do que por uma organização sistemática, conforme teremos na segunda metade do século XX e atualmente no século XXI. Já os locais de comércio se concentraram de forma mais intensa na Villa de Lajeado, que constituía o espaço de maior circulação e oferta de produtos. Muitas pessoas irão exercer a profissão de vendedor nos estabelecimentos ligados à venda de calçados, armazéns, açougues, botequins, etc. Em 1929 consta no relatório do intendente Carlos Fett Filho[17] o número total de duzentas e três casas de negócio em Lajeado, sendo que estas correspondem ao total dos seis distritos existentes.

Durante as pesquisas nos relatórios dos intendentes verificamos a existência de inúmeras profissões que hoje já não existem mais, ou se transformaram ao longo dos tempos. Desta forma, cabe aqui esclarecer o significado destas profissões no contexto da época, sendo elas: agrimensor, avaliador, canteiro, carpinteiro, marceneiro, funileiro, ferreiro, castrador, empreiteiro, engarrafador, envernizador, guarda-livros, notário, trançador, tropeiro, tanoeiro, armeiro, tipógrafo e ourives.

Com base no Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa[18], temos o seguinte sobre a profissão de agrimensor, avaliador e canteiro:

Agrimensor (ô). [do latim agrimensore] S.m. 1. Medidor de terras. [...][19]

Avaliador (ô). Adj. e s. m. Que, ou aquele que avalia[20].

Canteiro. S. m. 1. Operário que lavra a pedra de cantaria. 2. Escultor de pedra. 3. Porção de terreno delimitado cultivado de plantas, sobretudo de flores ou hortaliças. 4. Espaço à volta ou ao lado de uma construção, onde se realizam serviços auxiliares, tais como a preparação de argamassas, dobragem de ferro, confecção de fôrmas[21].

O entendimento do ofício desempenhado por cada uma destas profissões, nos ajuda também a compreender o contexto social e cultural da época. Desta forma, inúmeros eram os profissionais que se dedicavam às atividades artesanais no trabalho com a madeira, ferro e flandres, constituindo assim, as profissões de carpinteiro (artífice que trabalha em obras grosseiras de madeira), marceneiro (oficial que trabalha a madeira com mais arte do que o carpinteiro), ferreiro (artífice que trabalha com ferro) e funileiro (fabricante de funis ou aquele que trabalha em folha de flandres) [22].

Neste sentido, havia ainda os castradores de animais, ou seja, pessoas especializadas em capar animais, utilizados pelos agricultores em suas propriedades. Os empreiteiros, que eram homens que arrumavam, ou ajustavam obras de empreitada. Os engarrafadores, que possivelmente trabalhavam em uma fábrica de bebidas, as cervejarias ou alambiques da época, e lá tinham a função de engarrafar a bebida. Também o envernizador de couro, embora sempre em número bastante reduzido de profissionais que desempenhavam essa função, os curtumes se mostravam em alta durante toda a época pesquisada, sendo que era inclusive exportado para fora de Lajeado.

Curiosamente havia a profissão de guarda-livros, que poderia ser um empregado do comércio, ou profissional independente que se encarregava da escrituração dos livros mercantis, ou seja, que eram comercializados. O notário, hoje conhecido por tabelião, tinha a função de escrivão público. Era um profissional do direito, dotado de fé pública, a quem o poder público delegava a função de jurista, conselheiro independente e imparcial para conferir autenticidade aos documentos que eles redigiam como instrumentos de garantia da segurança jurídica e da liberdade contratual. Assim, os notários autenticavam fatos, formalizavam juridicamente a vontade das partes e intervinham nos atos de negócios jurídicos a que as partes queiram dar forma legal ou autenticidade, autorizando a redação ou redigindo os instrumentos adequados, conservando os originais e expedindo cópias de seu conteúdo. Ao longo de todo período pesquisado verificamos a existência de apenas um notário para atender todo o município de Lajeado.

Também a profissão de ourives, que ainda hoje existe, constituía os fabricantes e/ou vendedores de artefatos de ouro e prata. Aparece em número bastante reduzido, talvez pelo alto custo dos produtos, não ultrapassando a quatro estabelecimentos no período consultado. A profissão de armeiro, ou seja, aquele que vende, fabrica ou conserva armas, consta nos relatórios apenas nos anos de 1910, 1911, 1912 e 1913 e posteriormente não aparece mais.

Outra profissão bastante singular na época, citada nos relatórios dos intendentes durante o período de 1910 a 1914, e depois não é mais referenciada, é a profissão de tropeiro. Sabemos que o tropeirismo foi um fenômeno histórico que surgiu no Rio Grande do Sul, nos anos de 1600, e teve seu auge no século XVIII. Este movimento se constituía como um sistema de comércio pelo qual eram transportados e comercializados couro, sebo e eram levados animais que seriam utilizados como meio de transporte. De acordo com Silva[23]:

[...] as atividade de prea e transporte de gado possibilitaram a dinamização de um fluxo sócio-cultural bastante intenso. O que fomentou a constante transformação de um espaço por onde trafegavam não só o gado, mas também sujeitos que carregavam suas ideias, sua cultura, seu trabalho, seu cotidiano e sua espacialidade, contribuindo assim para a construção do que chamamos de tropeirismo.

Os estudos de Adriana Fraga da Silva, que culminaram na obra Estratégias materiais e espacialidades, uma abordagem da Paisagem do tropeirismo nos Campos de Cima da Serra (2010) apontam para a existência desta atividade nas margens dos rios das Antas, próximo ao Passo do Gabriel. Através de evidências orais, Silva[24] localizou assentamentos onde, nas primeiras décadas do século XX havia um galpão destinado ao pouso dos tropeiros e uma venda. Esta referência é importante, pois, serve para exemplificar a existência desta atividade em outros lugares do Rio Grande do Sul e, assim, justifica como sendo uma prática ainda existente na época, característica também da cidade de Lajeado.

Conforme destaca Barroso[25], o tropeirismo não é do Rio Grande do Sul ou brasileiro. Ele é de vários povos e sociedades; foi uma fase de formação das comunidades . É curioso pensar que no início do século XX ainda teremos em Lajeado a figura do tropeiro, que percorrerá longas distâncias e caminhos bastante tortuosos em busca de gado. Neste período, o ofício de tropeiro se constitui como uma profissão de compra e venda de gado, usado para comercialização nas lavouras ou mesmo para o abate nos açougues.

Constatamos ainda a existência dos trançadores, que eram profissionais que trabalhavam o couro e com ele faziam objetos de uso na lida do campo, nas áreas rurais ou mesmo eram utilizados pelos tropeiros, como, por exemplo, laços, relhos, chicotes, rebenques, dentre outros. Os tanoeiros eram aqueles profissionais que tinham por ofício consertar pipas, cubas, barris, dornas, tinas, etc. Os tipógrafos eram indivíduos versados na arte da tipografia, que executam, ou dirigem a execução das operações conducentes à produção de impressos, ou seja, eram os mestres-impressores da época[26].

Na virada do século XIX para o século XX, surge a fotografia no Brasil. Neste contexto surge também a profissão de fotógrafo, embora ainda bastante tímida para a época. No início do século XX poucas pessoas tinham acesso à fotografia. Neste sentido, havia também poucos fotógrafos. Ao longo de todo o período pesquisado, a profissão mencionada com a grafia de photografos , varia, chegando ao número máximo de seis fotógrafos, em 1915[27]. No entanto, nos anos posteriores e anteriores este número variou entre um e cinco profissionais para todo o território de Lajeado.

O surgimento dos primeiros automóveis no Brasil demanda mão de obra especializada para o conserto e manutenção, fazendo surgir assim, a profissão de mecânico. Em Lajeado, vimos por meio dos relatórios dos intendentes, que a partir de 1915 esta profissão irá surgir, variando entre um, dois e três profissionais/ano, até 1920. A partir de então, a profissão de mecânico não é mais mencionada, e aparece a denominação officiais mecânicos . Na realidade, muda apenas o nome. No entanto, no final da década de 1920, o número destes profissionais aumentará para oito, o que indica, consequentemente, um aumento da frota de veículos automotores neste período que corresponde ao ano de 1929[28].

As possibilidades de pesquisa e análise historiográfica do contexto das profissões em Lajeado, nas primeiras décadas do século XX, que correspondem ao período identificado como Primeira República, são inúmeras. Sendo assim, esta pesquisa jamais se esgotará em si. À luz deste trabalho poderá nascer outros, que irão somar-se e constituirão uma história ainda mais peculiar de Lajeado e assim, do Vale do Taquari.

CONCLUSÃO

No desenvolvimento deste estudo voltado ao conhecimento e análise das profissões existentes nas duas primeiras décadas do século XX, em Lajeado, período compreendido ente os anos de 1910 e 1929, através de documentos referentes aos relatórios dos intendentes de Lajeado e dos códices de Alistamento Eleitoral Federal, foi possível verificar que este foi um período relativamente marcado por uma diversidade de atividades profissionais ligadas não somente ao meio rural, mas também ao meio urbano. Embora a cidade estivesse florescendo neste período, devido a sua emancipação recente, é possível perceber uma dinâmica nascente que está também relacionada ao contexto nacional da época, e que impulsiona o surgimento de profissões novas e amplia o número de pessoas as quais se destinam às mais variadas profissões.

A análise se deu num período bastante curto, pois os códices de Alistamento Eleitoral Federal, não estavam completos para uma análise mais fidedigna da realidade. No período posterior a 1914 foi demonstrado que a profissão predominante era a de agricultor, muitas outras atividades ligadas à manufatura, produções fabris e ao comércio foram surgindo no entorno, ou ligadas às produções agrícolas neste período, o que caracteriza a realidade de satisfazer as necessidades da época. As profissões que estavam diretamente ligadas às necessidades básicas das pessoas na época, também eram aquelas em que havia um maior número de profissionais dedicados a estas atividades. Podemos citar, por exemplo, os marceneiros, carpinteiros, alfaiates, sapateiros, ferreiros e pedreiros.

Este estudo possibilitou um olhar historiográfico sobre um tema bastante singular na história de Lajeado, tendo em vista a quase inexistência de trabalhos que tratam sobre o assunto, não somente a nível local, mas também regional. Desta forma, é importante destacar que a pesquisa e a produção do conhecimento histórico se mostram como uma possibilidade riquíssima de constituirmos este emaranhado histórico que reflete a leitura do contexto social e cultural da época, para que assim possamos compreender melhor quem eram os sujeitos históricos da época e como eram suas vidas.


[1] Graduada em História pelo Centro Universitário Univates.

[2] Doutora em Arqueologia Brasileira pela USP, professora do Centro Universitário Univates, Lajeado, RS. ngalarce@univates.br

[3] http://www.regiãodosvales.com.br. Acesso em 11/11/2011

[4] RELATÓRIOS dos INTENDENTES Arquivo Público de Lajeado, anos de 1910 a 1929.

[5] RELATÓRIO do INTENDENTE Carlos Fett Filho Arquivo Público de Lajeado, 1927.

[6] FAUSTO, Boris. História do Brasil. 10. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.

[7] FAUSTO, 2002, p.262.

[8] FAUSTO, 2002, p. 262.

[9] http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/metis/article/view/1108/754

[10] FAUSTO, 2002, p.282.

[11] FAUSTO, 2002, p.290.

[12] Códice 0219 Alistamento Eleitoral Federal Arquivo Público Municipal de Lajeado.

[13] SCHIERHOLT, José Alfredo. Lajeado I. Lajeado: Prefeitura Municipal, 1992.

[14] SCHIERHOLT, 1992, p.131-132.

[15] PROST, Antoine. Fronteiras e espaços do privado, In: PROST, Antoine; VINCENT, Gérard (Org.). História da Vida Privada: da Primeira Guerra a nossos dias. São Paulo: Companhia das Letras, [1992] 2003, p.13 -115.

[16] Idem PROST, 1992, p. 25-26.

[17] RELATÓRIO DO INTENDENTE CARLOS FETT FILHO Arquivo Público Municipal, 1929.

[18] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 2ª edição.

[19] Idem FERREIRA, 1986.

[20] Idem FERREIRA, 1986, p.205.

[21] Idem FERREIRA, 1986, p.339.

[22] Idem FERREIRA, 1986.

[23] SILVA, Adriana Fraga da. Estratégias materiais e espacialidade: uma Arqueologia da Paisagem do Tropeirismo nos Campos de Cima da Serra/RS. Jaguarão: Fundação Universidade Federal do Pampa, 2010. 194 p .

[24] SILVA, 2010. p. 101.

[25] BARROSO, Vera Lucia Maciel. O tropeirismo na formação do Sul. In: BOEIRA, Nelson; GOLIN, Tau (coord.). História Geral do Rio Grande do Sul Colônia I. Passo Fundo: Méritos, 2006, v.1, p. 171-187.

[26] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 2ª edição.

[27] RELATÓRIO do INTENDENTE JOÃO BAPTISTA DE MELLO Arquivo Público Municipal, 1915.

[28]RELATÓRIO do INTENDENTE CARLOS FETT FILHO Arquivo Histórico Municipal de Lajeado, 1929.






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