quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011
Antonio Tomás diz "Vivemos numa sociedade que premeia o consumo, mas não a produção"
Grande Entrevista
António Tomás - “Vivemos numa sociedade que premeia o consumo, mas não a produção”
Antigo estudante do Instituto Médio de Economia de Luanda (IMEL), António Tomás, 37 anos, licenciado em Jornalismo pela Universidade Católica de Portugal, está a fazer o seu doutoramento em Antropologia na Columbia University, nos Estados Unidos, onde também lecciona.
Nesta entrevista aborda o lançamento do seu próximo livro, “Poligrafia das Páginas dos Jornais Angolanos”, depois de ter lançado em 2007 “O Fazedor de Utopia, uma biografia de Amílcar Cabral”. Fala sobre jornalismo feito no país e critica o valor dos prémios atribuídos, como o tem afirmado em textos publicados em alguns jornais, porque premeia-se mais o consumo do que a produção. Está satisfeito com a retirada da raça do bilhete de identidade, mas defende um debate sobre a questão do racismo. Para ele, existem alguns sinais de reactualização do colonialismo.
O seu novo livro intitulase “Poligrafias das páginas dos jornais angolanos”. O que é que pretende abordar? Os conteúdos ou os textos escritos pela imprensa? O título deste livro foi mal reproduzido. O título é Poligrafia e explico na introdução porque escolhi este nome.
Poligrafia é um género literário que tem a ver com a miscelânea, a mistura de vários géneros e tipos de escrita.
Sempre escrevi assim, sobre economia, política, arquitectura, modas. Foi uma amiga, que é uma crítica de literatura africana, Olívia Appa, que olhou para os meus textos e disse que escrevia como um polígrafo. Portanto, dei a este livro o título de Poligrafia exactamente para dar esta ideia de diversidade de género e temas. Das Páginas dos Jornais Angolanos é apenas um subtítulo de textos que foram publicados em jornais angolanos, nomeadamente o Jornal de Angola e o Angolense. Não está aí nada do Novo Jornal.
Há uma crítica feita há semana sobre a obra, onde uma senhora considera as crónicas de António Tomás como “crónicas cultas” e “um opinion maker muito distante dos outros, que não tem receios de assumir polémicas”. Acha que isso é um elogio?
É difícil responder às críticas, acho que é um elogio. Não diria que sejam crónicas cultas, porque há muita gente a escrever crónicas cultas. Acho que procuro escrever crónicas informadas, trabalho no Departamento de Pesquisas de Antropologia na Universidade de Columbia, onde dou aulas e estou a desenvolver o trabalho para a minha tese de doutoramento. Acho que tenho sido exposto a muita teoria e muitos olhares, muita interpretação. Quando analiso questões no contexto angolano, acho que trago todo este arcaboiço.
Mais do que cultas, eu consideraria ‘crónicas informadas’.
O que é que procuras com estas ‘crónicas informadas’?
É começar a procurar um espaço de debate, que nós não tivemos muito durante estes anos. A gente sabe como é que foi a nossa história, a guerra, o partido único, etc. Não temos grandes espaços de debate, universidades e uma imprensa vigorosa. Temos apenas um diário e depois temos um grande controlo político, e há muitas pessoas que ainda não têm liberdade para expressar as suas próprias opiniões, com medo de represálias de vária ordem.
O que procuro com essas crónicas não é ensinar ou trazer nada de novo, mas criar um espaço de debate em que ponho ideias e as pessoas depois expandem essa ideia de debate. A minha última crónica no Jornal de Angola foi sobre os óbitos em Luanda, que acho que é um aspecto muito importante da nossa cultura urbana, depois nas conversas com as pessoas elas dizem que a experiência é essa e há isso que se faz. Vai espalhando e vai-se criando um espaço de debate. Acho que isso é uma das coisas que procuro fazer.
Como é que vê a actuação da imprensa hoje, sobretudo após a aquisição de títulos por alguns grupos económicos? Acho que os novos jornais, sobretudo o Novo Jornal e O PAÍS, vieram criar um espaço de informação que é vital hoje. Foi uma coisa muito interessante e uma lufada de ar fresco na imprensa que tínhamos, porque é um tipo de jornalismo que ainda tem os seus constrangimentos, mas que já parece mais fresco, mais arejado, engajado e sobretudo mais responsável. É um jornalismo que tem outra expansão, leio todos os dias a imprensa angolana, O PAÍS que está na internet e o Novo Jornal que recebo em PDF.
O vigor a que se referia para o debate é apenas uma virtude da imprensa em si ou é um conjunto da imprensa e a sociedade? Qual é a experiência que teve da imprensa portuguesa?
Temos aqui uma inversão. Portugal não tem uma história muito diferente de Angola em termos de sociedade. É uma sociedade muito estatizada como nós temos, em que o poder do Estado tem uma grande força. E grande parte das reformas sociais portuguesas são iniciativas do Estado. Posso dar dois exemplos: o primeiro é sobre as leis de racismo. Não foram impostas pela sociedade, foi o Estado que criou o Alto -Comissário para as Minorias Étnicas.
Foi o Estado que criou uma agenda anti-racismo. E há o caso muito recente da lei que permite o casamento homossexual. Foram iniciativas políticas, criadas por partidos políticos. Não é como nos Estados Unidos onde há muito debate e estas exigências vêm de baixo. Em relação a Angola estamos a seguir o mesmo caminho.
Qual é o caminho?
Temos jornais, como o Novo Jornal e O PAÍS, cuja motivação não vem de baixo. A motivação vem do Estado e de grupos muito ligados a ele, porque acham que é altura de ter um espaço para este tipo de jornais. Portanto, não é uma motivação social e não se vê na sociedade esta exigência.
Já espera que uma sociedade como a nossa tivesse motivação para criar jornais como os que acabou de referir ou um outro espaço de debate?
Acho que o grande problema é que nós temos alguns entraves que outras sociedades não têm. O grande entrave que temos é o lugar que a educação tem na nossa sociedade. Temos uma população estimada em 16 milhões de habitantes e temos um único diário, que tira cerca de 10 mil exemplares/ dia. Temos uma minoria muito reduzida que lê os jornais, comenta e faz parte do debate. A sociedade é estruturada porque investiu em aspectos sociais a que nós não temos dado a devida atenção. Eles têm leitores, centros de pesquisa e de debate. Aqui, como não temos isso, qualquer mudança que venha tem de ser de cima, porque ainda não temos uma sociedade suficientemente consciente para impor alterações, leis e dinâmicas. Portanto, isto acontece em Portugal também, porque grande parte das mudanças têm mais a ver com imposições vindas de cima do que exigências da sociedade.
Hoje sente que os jornais abordam o suficiente ou existem muitas limitações?
Acho que os jornais abordam de tudo: a corrupção, veja-se o caso BNA, o caso de Quim Ribeiro... Mas acho que as coisas não aparecem ainda tratadas com a equidade que merecem. Há uma grande tendência para se procurar um meio-termo entre uma colagem às posições oficiosas. É uma deficiência profissional ou do próprio sistema de um modo geral? Penso que isso tem a ver com várias razões. Primeiro de ordem económica, política, a nossa história sobre o surgimento da imprensa e o facto de só agora ter-se libertado do Estado. Tem a ver com razões de ordem económica, das pessoas que pagam os jornais e o ponto de vista que eles querem que o jornal siga. Acho também que tem a ver com razões de ordem profissional, o facto de os jornalistas ainda terem começado a pensar em questões como a autoregulação e reforçar esta ideia. Não sei como está a ideia, porque não vivo cá.
Falo em auto-regulação sobre o código deontológico, carteira profissional, no sentido de que as regras do jornalismo é coisa do jornalista e ninguém pode interferir na forma como fazem as notícias e tratam as coisas.
Mas és um pouco reflexo da própria sociedade norte-americana. Não existe uma lei que regula o funcionamento da imprensa, cada órgão tem apenas regulamentos internos e cada Redacção tem o seu estilo.
Não estudei jornalismo nos Estados Unidos. Leio muitos jornais americanos, mas estudei jornalismo em Portugal. E acho que este debate da auto-regulação tem muito a ver com a forma como em Portugal se começou a debater esta questão, na altura em que apareceu O Público, que era um jornal diferente do Diário de Notícias e do Expresso. Era um jornal chamado independente de referência e que agora caiu muito. E trouxe este debate sobre a auto-regulação.
Era inevitável o surgimento de grupos de comunicação social nesta fase da história do país?
O grande problema destes grupos é que não têm suporte. Temos a ideia de que aqui podemos fazer tudo o que se faz lá fora. Se lá existem os grandes jornais, então aqui também vamos tê-los. Nós aqui não temos o suporte estrutural que os outros países têm.
Nos Estados Unidos tens o New York Times, que vende um milhão de exemplares por dia, tens muitos leitores que o suportam e uma rede privada empresarial ligada à publicidade, que suporta a existência destes jornais fora da influência do Estado, embora haja formas de controlo. Nós aqui temos estes grupos que investem em grandes jornais, mas não temos leitores de jornais. Um país de 15 milhões de habitantes e um único diário, esse é o nível mais pobre. É o nível, se calhar, de uma Guiné-Bissau ou Cabo-Verde.
Temos interesse em dar ao país um aspecto moderno, de encontrar em Angola qualquer coisa, mas depois não fazemos o investimento no sítio onde devíamos fazer. Para termos jornais com sustentação, como é o caso do Novo Jornal e O PAÍS, temos que ter leitores. Esta deve ser a preocupação, ter leitores. E como é que se tem leitores? Com formação e educação.
Escreveu um texto intitulado “a orgia dos prémios”, em que discordas dos valores altíssimos atribuídos nos prémios de jornalismo existentes no país.
Qual é a sua opinião sobre os prémios Maboque e o Nacional de Jornalismo?
O meu problema é contra o valor dos prémios, porque acho absurdo. Temos um prémio neste valor para premiar jornalistas que depois escrevem coisas que circulam pouco e para jornais muito desconhecidos da grande parte da população. Temos jornais que não são suportados por uma comunidade de leitores, que justifiquem a existência de prémios nos referidos valores. Mas esta não é a questão. A principal questão que procurei abordar e que vocês podem aplicar para vários aspectos sociais, não é tanto o prémio, mas é a economia e a cultura que está por trás do prémio. Nós temos em Angola uma sociedade que não premeia o trabalho, premeia o resultado. Uma jovem vai concorrer a um concurso de miss, ganha e torna-se a Miss Angola, recebe todos os prémios, mas se acompanharmos a história desta mulher que ganhou o prémio, vês que existe uma ausência total do Estado em todos os processos, em termo de educação, saúde e no tipo de investimento que tem de ser feito nas pessoas.
E a questão do prémio é a mesma coisa, nós temos escolas de jornalismo deficientes, não temos bibliotecas, não temos jornalistas a pedirem seis meses de trabalho para desenvolverem um grande projecto ou fazerem uma pesquisa. Vivemos numa sociedade que premeia o consumo, mas não a produção. O que propus no artigo não é tanto uma crítica ao valor dos prémios, mas é uma chamada de atenção para esta inversão.
Qual é objecto social dos prémios, como por exemplo um Pullitzer?
Acho que é distinguir o trabalho das pessoas, mas aqui parece-me que o objecto social é diferente. Parece mais uma transferência de valores. Os Estados Unidos têm muitos prémios, mas a maioria deles são simplesmente distinções. O Óscar, que é um grande prémio no cinema, é uma estatuetazita que não vale nada. A cultura dos prémios nos Estados Unidos está ligada àquilo que se pode fazer depois, no sentido da criatividade mas com um investimento que vem. As pessoas que ganham os Pullitzer nos Estados Unidos têm um investimento maciço antes de chegar ao prémio. Passam pelas melhores universidades do mundo, têm bolsas de criação e depois ganham um prémio que em muitos casos não é pecuniariamente valioso, como é o caso dos Óscares. A economia americana é tão viva e intensa que depois as pessoas têm a oportunidade de usar o prémio para novos projectos. O valor é simbólico, não é de consumo porque não se vai comer a estátua.
Nos Estados Unidos os jornalistas também apresentam candidaturas ou a própria sociedade acompanha os trabalhos que são premiados?
Há vários critérios e vários tipos de prémios. Há prémios que dependem muito da recepção do público, mas grande parte dos jornalistas que são nomeados para o Pulitzer, que é uma distinção da Universidade de Columbia, com um dos melhores programas de jornalismo a nível do mundo, o critério não é muito diferente dos usados em Angola. Portanto é uma fundação que tem fundos, que tem um júri que analisa as peças e recolhe as opiniões. A diferença é que a maior parte dos prémios que são atribuídos tem grande circulação. Os prémios de jornalismo que são atribuídos, tipo aos jornalistas do Washington Post ou New York Time, são coisas que são polémicas, que as pessoas lêem e discutem.
São livros best-sellers que vendem um milhão de exemplares. Se quisermos comparar estes dois contextos, temos uma desproporção em Angola entre os valores dos prémios e a circulação.
Temos um valor do prémio que é superior a circulação e nos Estados Unidos temos uma circulação que é superior ao valor dos prémios.
Hoje as pessoas dizem que o Semanário Angolense já não é o mesmo. Acha que precisamos de um jornal com uma linha mais acutilante?
Acho que sim. Acompanhava o Semanário Angolense na internet, porque eles tinham um serviço de distribuição. Depois das mudanças tiraram.
Quando cheguei cá tentei comprar o jornal, li e não é o mesmo jornal. Uma das coisas que o Semanário Angolense tem é um jornal muito opinativo e nós precisamos de espaço de opinião.
Tanto O PAÍS como o Novo Jornal são mais informativos do que opinativos, o que se calhar não faz sentido para um semanário. Grande parte das notícias que saem não têm vida suficiente para se manterem durante uma semana. E a coisa da informação interessante é que apenas veicula a opinião do que se diz, acho que faz falta um jornal como o Semanário Angolense.
O jornalismo que se impõe hoje é o de análise, particularmente numa sociedade como a nossa onde há poucos leitores? Temos poucos jornalistas a fazerem análise. Acho que devíamos ter um jornalismo muito mais analítico. Tenho acompanhado muito pouco a rádio e a televisão, mas do que acompanho acho que temos um jornalismo muito mais virado para a notícia.
Passou pelo Instituto Médio de Economia de Luanda (IMEL), licenciouse em Portugal e agora está a fazer o doutoramento nos Estados Unidos da América. Como é que vê hoje o ensino do jornalismo em Angola?
Acho que é importante haver os cursos superiores de jornalismo porque a própria profissão já se torna muito complexa. É preciso dar aos jornalistas uma carga cultural que permite analisar factos sociais. Não estou dentro dos currículos, sei de alguns trabalhos que li destes cursos e fui contactado por algumas pessoas para dar aulas quando regressei ao país em 2003, depois da minha licenciatura. Acho que ainda temos que fazer um grande esforço no sentido de melhorarmos a qualidade de formação dos jornalistas no geral.
O que tem de ser melhorado?
Não tenho grandes contactos e se calhar não sou a melhor pessoa para lhe responder a isso. Portanto, faço comentários das coisas no geral e não conheço muitos jornalistas que saíram destas escolas. Não sei até que ponto os jornalistas que saem destas escolas são melhores do que nós quando saímos do IMEL! Não sei, mas era bom saber, porque temos em Angola uma grande tradição de jornalistas de tarimba que nunca passaram por escola nenhuma.
Não sei até que ponto nós ganhamos com a formação universitária. Agora se eu enquadrar a formação dos jornalistas na universidade no contexto geral da formação universitária em Angola, tinha que perceber melhor. Acho que o nosso sistema de ensino ainda exige um grande trabalho, até termos pessoas a vir destes cursos que precisam de superar os nossos jornalistas da tarimba.
Também tem escrito muito sobre a universidade. Reafirma sua posição de que não se deveria investir muito nas bolsas de estudo, mas sim na investigação dentro do país?
Tenho escrito muito sobre a universidade. Estou a fazer o meu doutoramento na base de um projecto de pesquisa na Universidade de Columbia em Nova York e tenho lidado com departamentos de pesquisa. Conheço pessoas que trabalham em departamentos de pesquisa em Lisboa, Estados Unidos e África do Sul, que é um departamento muito importante em África. Uma das coisas que quis dizer é que nós cá, ao longo destes 35 anos de Independência, mandamos muitos estudantes para fora, mas estes nem passam pelas melhores universidades do mundo. Os que vão para os Estados Unidos passam pelas Community Colleges, os de Portugal passam pela Universidade Independente e Lusófona. E a minha questão é: será que em Angola não conseguimos formar pessoas ao nível das que são formadas nas piores universidades da Europa e dos Estados Unidos? Acho que podemos, mas temos uma grande dependência da mão-de-obra qualificada estrangeira por causa do fraco investimento que se fez no nosso sistema de ensino.
Não sei até que ponto isto não é uma estratégia de marginalização dos quadros angolanos. Não sei até que ponto para o sistema não é muito mais fácil importar técnicos do que desenvolver estas habilidades. Acho que nestes 35 anos já devíamos ter uma universidade melhor.
Como é que viu o facto de nenhuma universidade angolana constar das 100 melhores de África?
Não sabia… Claro, nós temos uma universidade que é uma miséria.
Dou parabéns para as pessoas que trabalharam para o departamento da Universidade Católica que mesmo assim publicou alguns relatórios e meia dúzia de coisas. Mas isto está muito aquém da produção de outras universidades africanas e África tem grandes universidades. Nos Estados Unidos, pelo menos, os critérios são o rácio professores-doutores/alunos, o nosso é muito baixo. Um outro critério que acho que temos também em défice é o corpo docente; as nossas universidades não têm, se calhar até mesmo a própria Faculdade de Direito. Temos um professor que de manhã dá aulas na Universidade Católica e de tarde vai à Universidade Independente. A Universidade não tem um departamento onde os professores estão lá e são pagos para pesquisar. Um outro elemento que conta em desfavor das nossas universidades é a baixa produção intelectual dos nossos professores, não porque não têm capacidade.
Temos professores a nível de outros em grandes universidades em África, a diferença é que não temos condições para colocá-los a produzir.
Mas economicamente Angola é melhor que muitos países africanos?
Isso é verdade. Angola economicamente está muito melhor que o Senegal, mas este país tem a Universidade Leopold Senghor, Ghana tem a Kwame Nkrumah University, a Makerere University, a Árica do Sul tem a Vits University, Unisa e Universidade do Cabo.
Moçambique a Universidade Mondlane e Cabo Verde tem uma Universidade que já tem programas de doutoramento. Temos estes fundos infinitos que vêm do petróleo e depois mais uma vez o problema da proporção. O dinheiro que colocamos na educação é proporcionalmente inferior ao que Moçambique coloca neste sector. Parte do Orçamento de Moçambique é pago por agências internacionais, mas eles põem mais fundos na educação do que nós. Depois os discursos dos nossos governantes, muito bem-intencionados, digamos, e de funcionários do Ministério da Educação, que dizem que temos de investir no ensino primário e na formação profissional. Mas como é que um país como Angola se vai dar ao luxo de fazer investimentos maciços no ensino primário? Quem vai ensinar? Quem vai elaborar os programas? Quem são as pessoas que vão controlar as escolas? Uma discussão que há é a possibilidade de ensinarmos em línguas nacionais, crianças do norte, sul, centro e nas Lundas cuja língua primária não é o português. Mas alguém estudou as línguas nacionais? Vocês conhecem algum angolano que fez dicionários e elaborou gramáticas? Quem vai fazer isso? Temos algum angolano que estudou metodologia de ensino em línguas nacionais? Ainda que o país invista na educação primária, e que isso seja prioridade, não vai sair do estado em que está se não tiver um sistema universitário forte. Esta é a base de tudo.
Como é que viu a criação de mais universidades públicas?
Já escrevi sobre isso. Vi a criação de universidades públicas de forma muito positiva. Acho que é preciso criar as universidades públicas, descentralizar o ensino, era preciso haver mais campus e as pessoas de outras províncias não precisam de vir a Luanda para estudar. É bom também a ideia destes sítios terem universidades que se concentram na resolução dos problemas locais. Por exemplo, uma universidade do Huambo tinha de ter um departamento de agronomia super-avançado, com grandes investimentos em laboratórios nestas áreas. A outra questão é que nem as universidades públicas em Luanda têm um quadro docente suficiente. Houve uma grande expansão da universidade em Angola, mas não há doutoramentos nem pós-graduação e mestrados. Quem vão ser os professores nestas universidades? As pessoas que acabam a licenciatura é que vão dar aulas nestas universidades? Acho que o passo foi bom, mas ainda estou à espera de ver mais coisas neste sentido.
Agora tenho visto ministros e outras pessoas a falarem sobre a educação, fico muito contente que agora se tenha tornado um tema importante. Ainda gostava de ouvir um pronunciamento, não do ministro da Educação, mas da Presidência da República porque quero saber qual é a ideia que tem sobre o ensino superior, qual é o seu pensamento sobre a universidade.
Sugeriu num dos teus textos o agravamento das taxas sobre as bebidas alcoólicas e que estes fundos revertessem para as universidades. Acha que pode funcionar no país?
Deixe enquadrar. O que disse é que o Estado tem que pôr dinheiro na investigação. Ainda que não tivesse, só bastava aumentar o imposto ao álcool e esta questão se resolveria no ano seguinte. Essa questão pode ser desmontada de duas formas: se quiséssemos criar um imposto universidade e transferir o consumo de álcool, não me importava de pagar mais pelo que bebo.
O álcool nos Estados Unidos é muito caro por causa disso, desincentiva, porque nós não temos uma fiscalização eficiente, de forma que os dinheiros colhidos pudessem ser canalizados directamente na educação. Outro revés é que isso podia aumentar o imposto e criar meios para canalizar a educação, mas podia não diminuir o consumo de álcool e criar uma explosão na confecção das bebidas caseiras. As pessoas não comprariam uma cerveja e passariam a comprar o kimbombo e o caporroto. Isso vai ser aplicado a partir do momento em que as autoridades angolanas perceberem que há muitos fenómenos sociais ligados ao consumo de álcool, como a violência doméstica e a alta taxa de sinistralidade nas estradas. Aí sim vai ter que se fazer alguma coisa neste sentido, uma delas será controlar e aumentar a fiscalização, mas também criar formas para que não haja a importação ilegal de bebidas, a confecção de bebidas caseiras. Isso tem tudo a ver com a estruturação e força do Estado na sociedade.
“A Guiné-Bissau entristece”
Qual foi a recepção que teve o seu primeiro livro ‘O Fazedor de Utopia’, a primeira biografia de Amílcar Cabral, a nível da lusofonia?
A recepção foi muito boa, porque o livro foi editado em Cabo Verde. O lançamento foi um grande acontecimento, apareceu o primeiro-ministro, a ministra da Defesa. O meu editor, que é o José Vicente Lopes, escreveu recentemente um livro sobre Tarrafal, disse que foi a primeira vez que uma editora cabo-verdiana pagou direitos de autor para publicar um livro. Portanto, eles pagaram à Tinta da China para editar o livro em Cabo-Verde. As reacções foram muito boas. Acho que o Presidente Pedro Pires chegou a escrever elogiosamente sobre o livro num jornal, mas não cheguei a ler. Acho que o que este livro tem de positivo é que é uma mudança geracional.
Sou capaz de ter sido uma das primeiras pessoas na nossa geração a escrever sobre factos que nós não vivemos. Não vivemos a Independência e até agora as pessoas que têm escrito sobre a descolonização são sujeitos no processo, como foram Iko Carreira e Lúcio Lara. O positivo é que uma das primeiras vezes que uma pessoa que não faz parte do movimento, na minha família nuclear, pai e mãe, ninguém esteve envolvido nisso, Acho que abriu esta perspectiva de uma nova geração, nós é que vamos herdar este país.
Como é que a terra natal de Amílcar Cabral, a Guiné-Bissau, recebeu o lançamento do livro?
Recebi um convite para publicar o livro na Guiné-Bissau mas depois não se efectivou. Alguns guineenses leram e criticaram o livro, uns favoráveis e outros desfavoravelmente. Mas abriu um debate sobre a questão do nacionalismo e a relação entre Cabo Verde e a Guiné-Bissau.
Cabo Verde sente-se mais proprietário de Amílcar Cabral ou isso estará ligado aos privilégios que os caboverdianos tiveram na fase em que ele dirigiu os destinos da Guiné-Bissau?
Sim, acho que tem a ver sobretudo com a história destes países. Os caboverdianos muitas vezes eram uma espécie de colonizadores de segunda na Guiné-Bissau, porque era um sítio muito complicado. A política portuguesa era mandar os cabo-verdianos como professores e funcionários para este país. Outro aspecto seria o facto de a Guiné ter pago a factura da guerra, que não houve em Cabo-Verde.
Mesmo os cabo-verdianos que foram combater na Guiné-Bissau eram poucos. Ao longo dos 14 anos foram por aí uns 100 cabo-verdianos. Portanto, os cabo-verdianos não viveram as consequências da guerra e isso lhes dá um maior espaço para ter uma relação melhor com as independências. Muito do que se passa na Guiné-Bissau hoje, o excessivo peso dos militares na sociedade guineense, tem muito a ver com a dinâmica que criou durante a guerra de Independência.
No primeiro governo que se criou na Guiné-Bissau havia mais caboverdianos que guineenses?
Sim, o primeiro governo era interessante. Era um governo bi-nacional, porque a Guiné-Bissau e Cabo-Verde estavam envolvidos na criação desta nação Guiné-Cabo Verde. Havia muitos cabo-verdianos que eram ministros na Guiné-Bissau, como o próprio Luís Cabral, que era presidente, mas depois não havia guineenses no governo cabo-verdiano. A unidade funcionava mais na Guiné do que em Cabo-Verde.
Este período que vai de 1973, 1974, com a Revolução de Abril e o processo que conduz à Independência, até 1980, eles chamam ainda de colonização, mas desta vez pelos cabo-verdianos. Tanto até que quando se dá o golpe de estado pelo movimento liderado pelo Nino Vieira, na linguagem da época aquilo é chamado como a segunda morte de Cabral, mas também o segundo processo de Independência, que era uma forma de libertar a Guiné-Bissau desta relação com Cabo-Verde.
Como é que vê hoje a Guiné-Bissau?
Não tenho acompanhado muito o que se passa hoje na Guiné-Bissau.
Leio algumas notícias e a gente sabe que é um narco-Estado, onde há grandes níveis de corrupção porque a elite militar aliou-se aos barões da droga. A Guiné-Bissau entristece, porque quem lê as coisas escritas por Amílcar Cabral e nota toda aquela esperança que se depositava nela, sabe que é um Estado ou projecto falhado.
As divergências entre mandingas e balantas, que narrou na biografia de Amílcar Cabral, diminuíram ou aumentaram?
Estive na Guiné-Bissau em 2000, quando fui fazer a pesquisa do livro.
A mim não me pareceu que estas divergências eram tão evidentes como no tempo colonial. Os portugueses usaram essas diferenças para reinarem.
Lembro-me que estava com um colega americano, que é professor de História nos Estados Unidos, e ele falava balanta, às vezes chegávamos no mercado e víamos alguém com características balantas. Chegávamos e perguntávamos à pessoa se era desta etnia, ela dizia que não era balanta, mas sim guineense.
Acho que já havia a ideia da construção de uma nação. Não acho que essas diferenças entre balantas e mandingas sejam essenciais e profundas. O grande problema é que há sempre uma grande apropriação e uso dessas diferenças para fins políticos. Isso é que é problemático.
A rivalidade que existe é herança colonial?
Não. Isso é um longo debate, precisava de horas para falar sobre isso.
A ideia de etnia sempre houve, não é uma coisa trazida pelo colonialismo.
Mandingas, balantas, fulas, papeis, kimbundus e umbundus são identidades que sempre existiram. Acho que o colonialismo fez mais nas colónias inglesas. A Guiné-Bissau não foi colonizada tipo Angola, Moçambique ou Cabo-Verde. Em muitos aspectos ela foi colonizada mais como as colónias inglesas. Uma das coisas que se fez foi congelar as identidades étnicas e criar formas para tornar cada vez mais difícil a passagem de uma identidade para outra. A ideia de kikongos, kimbundus e umbundus se misturarem não é uma coisa nova, sempre existiu. Mas o que aconteceu em muitos sítios, como na Guiné-Bissau, é que através das várias técnicas utilizadas pelo estado colonial, como os censos e os sistemas de impostos que eram baseados nestes censos, tornou muito mais difícil a passagem de uma etnia para outra.
Porque a ideia era mesmo separar as pessoas.
Numa das passagens do livro dizes que muitas das pessoas que lutaram sentem-se desiludidas com os países em que lutaram. Simultaneamente diz que elas recriam este passado.
Isso é possível?
São duas questões. A primeira escrevi no Novo Jornal sobre a ‘tragédia da Independência’, o que quis dizer é que o futuro é uma coisa que nós inventamos. Também inventamos o passado.
Uma das coisas que observei na GuinéBissau é que a situação actual delas tem muito a ver com a forma como eles imaginaram este futuro. Uma pessoa que combateu pela Independência na Guiné-Bissau e hoje encontra-se num estado como está tem tendência, por um lado, a sentir-se frustrado.
Tem uma tendência, por outro lado, a reinventar o passado. As memórias são coisas que se constroem, os factos podem lá estar.
Mas a interpretação dos factos é uma coisa que se constrói, que se imagina. E se lermos muitas memórias, sobretudo de pessoas que foram da UNITA e hoje começam a escrever sobre este período, há sempre uma ideia de justificar… Já fomos muito mais críticos em relação a este processo.
Se eu aparecer aqui a tentar fazer uma revelação, as pessoas são muito mais críticas. Hoje ninguém faz uma revolução, sobretudo armada, ninguém entraria e hoje somos mais críticas. Portanto, há a ideia de justificar as razões pelas quais as pessoas se envolveram nestes processos e depois há uma ideia que tem a ver com encontrar maior proeminência na história. As pessoas vão sempre dizer coisas que não fizeram e vão sempre mostrar que o papel delas não foi aquele que as outras lhes atribuem. Acho que essa é uma das principais razões pelas quais muitas pessoas escrevem e constroem memórias.
“A lusofonia preocupa-se apenas com a parte boa do colonialismo"
Uma das questões que tens debatido é a lusofonia. Como é que vês a CPLP, a Commonwealth e o caso de alguns países criarem canais de televisão e rádio para alguns continentes, como é a RTP-África, BBC Africa, TV 5? Não é uma reactualização do colonialismo?
Há uma certa reactualização de alguns aspectos do colonialismo, mas é um debate mais angolano do que lusófono, porque não é uma coisa imposta por Portugal. Por exemplo, quando esteve cá José Sócrates e outros dignitários portugueses, uma das coisas que eles repetem muito é que temos uma história comum, uma língua comum e falamos a mesma língua. Mas ninguém diz como é que esta história se tornou comum e a língua também. Ninguém diz qual foi a violência inerente a este processo. Foi uma violência física, guerras, destruição e tráfico de escravos. Depois há um outro aspecto de uma violência simbólica, houve o indigenato, as pessoas que eram proibidas de falar a sua própria língua. Nós agora não vamos aceitar que o facto de falarmos português e termos sido colónia portuguesa sirva para apagarmos a História, vamos aceitar que isso é fruto de uma história que foi muito violenta em alguns aspectos. O meu problema com a lusofonia é este. É que a lusofonia constrói precisamente graças a isso, baseia-se no facto de termos uma língua comum. Baseia-se na possibilidade da troca entre o antigo espaço colonial português e a antiga metrópole. Este espaço que se abre de troca afectiva, política e económica de qualquer natureza, só é possível no contexto de uma experiência que foi dolorosa. O meu problema com a lusofonia é um problema de silenciamento. A lusofonia é um discurso que apenas se preocupa com a parte boa do colonialismo, depois não há um trabalho de crítica. Não temos ninguém que escreve sobre a história colonial.
Porque diz que a recolonização tem mais a ver com Angola?
Isto é uma coisa que existe muito nas pessoas, não apenas nas que governam este país, mas sobretudo as que viveram nas zonas urbanas, que eram os assimilados do tempo colonial. Há um grande fascínio que tem a ver com a memória e o facto de nós termos tido uma história póscolonial difícil. Com uma economia difícil e problemas que persistem, vivemos numa situação de capitalismo selvagem e uma vida cara, muita miséria. Para as pessoas que viveram nos anos 40 e hoje têm 60 ou próximos dos 70 anos, o melhor período da vida delas foi durante o tempo colonial.
Apesar de toda a violência?
Apesar disso, porque a memória é selectiva. Se vocês lerem literatura angolana de pessoas mais recentes, nós que crescemos nos anos 80, em tempos difíceis, quando nos pusermos a lembrar, temos tendência a romantizar esta memória, mesmo que nos lembremos do tempo em que íamos às bichas. Portanto, o que nós temos aqui é uma geração que viveu a melhor fase da sua vida durante o tempo colonial e tem um certo fascínio e uma certa inveja por aquilo que os portugueses fizeram em Angola. Não durante todo o período colonial, mas por aquilo que os portugueses dentro dos 500 anos fizeram durante 15. O que nós entendemos como o boom da economia angolana foram apenas 15 anos, entre 1960 e 1975, que foi a fase da construção das cidades, a expansão da economia e do povoamento branco. Grande parte das realizações do colonialismo foi coisas tardias e circunscritas, na guerra colonial. Se não tivesse havido a guerra colonial, se calhar não existiria nada disso.
Quando se ouve os discursos sobre o desenvolvimento económico, há um grande fascínio e emulação deste momento. Quando leio estas coisas às vezes me parece um certo complexo do Bush filho que quer superar o pai. Vou fazer aquilo que o meu pai não conseguiu fazer, vou atacar o Iraque e matar o Saddam Hussein.
Quando oiço os discursos sobre o desenvolvimento económico acho que estão ainda muito presos para a superação daquilo que os portugueses fizeram. Por exemplo, já fizemos mais estradas do que aquilo que os portugueses fizeram, há uma certa tendência de tentar superar aquilo que os portugueses fizeram.
Quem lê O Charme Discreto do Colonialismo nota que chamas a atenção para o facto de os nossos governantes olharem muito para Portugal. Acha que estamos a copiar os modelos existentes nesse país?
Acho que o grande problema é que somos reféns de Portugal, porque falamos português. A nossa porta de contacto com o mundo é através de Portugal.
E o Brasil?
O Brasil neste aspecto tornouse muito mais independente, em outros aspectos é mais desenvolvido que nós. Temos mais dependência a Portugal por causa da língua. E os portugueses são muito hábeis a manipular isso. Gostava de dar um melhor exemplo para o vosso jornal, mas em tempos um angolano tentou abrir cá a revista Playboy, o que aconteceu é que não podia porque havia uma empresa portuguesa que tinha comprado os direitos da publicação da mesma. Há vários exemplos de direitos que os portugueses compraram que inclui o espaço da língua portuguesa, excepto o Brasil.
A nossa relação com o mundo em muitos aspectos é através de Portugal, porque falamos português. É neste aspecto que digo que somos reféns.
Acha que esse passado que se reactualiza hoje já é de igualdade entre os povos, sobretudo entre Angola e Portugal?
Acho que sim, Angola tem uma coisa que é muito interessante, sempre foi um país diplomaticamente muito agressivo, mesmo pelas piores razões. Os angolanos nunca negociaram em posição de inferioridade com país nenhum. No plano estritamente diplomático Angola sempre teve uma relação de igual para igual com qualquer país. Com Portugal, quando foi o caso das cartas de condução, negociou de igual para igual através das retaliações, mas agora com os Estados Unidos não foi tão evidente porque Angola não tem muitas razões para impor a mesma estrutura de retaliação que foram impostas, por causa das lavagens de capitais e dinheiro. Mas, agora, isto no plano meramente superficial porque depois no plano mais profundo nós não estamos em condições de competir com Portugal. Hoje com todos os recursos que temos e a importância vital que Angola tem na economia portuguesa, ainda estamos com uma certa dependência em termos de recursos humanos, tecnologia, produção, vinhos, livros. Não temos muita gente a ler em outras línguas que não seja a portuguesa. Não temos aqui uma grande editora que se dedica à tradução de outras bibliografias. Há um ou outro livro que foi traduzido, como o de Gerhard Bender, mas a grande parte das coisas que foram traduzidas ou coisas do mundo que chegam a Angola, é através de Portugal ou do Brasil. Porque não somos capazes de ir ver os estudos que a Universidade de Makerere está a fazer, à Nigéria e trazer aqui para o nosso debate interno. O jornalismo, por exemplo, não somos capazes de ir ler o que é que os africanos escrevem sobre esta profissão em África e trazer aqui para o debate interno. São países que têm uma realidade muito mais próxima da nossa.
Mas já tivemos aqui nos anos 80 os Wole Soyinka, Achinu Achebe e outros.
Mas eram editados pela Edição 70, eram editores portugueses que naquela época da descolonização publicaram essa gente toda. Publicaram o Mário Pinto de Andrade, Wole Soiynka e outros. A partir do momento que Portugal deixou de publicar estas coisas, nós perdemos o contacto com África. Hoje não sabemos qual é o escritor africano contemporâneo, não conheço um escritor africano que não tenha sido traduzido por Portugal ou pelo Brasil. Não conheço, isso corta-nos e cria uma espécie de alienação.
Pensamos que o nosso debate é com Portugal ou Brasil, esquecemos da forma como Angola foi constituída, relação colonial, escravatura, o sistema produtivo, as concessionárias, a Diamang, o petróleo, as condições como começaram a ser exploradas.
Esquecemos que a nossa realidade tem mais a ver com o Gabão, Nigéria, Argélia, Zimbabwe. E essa literatura tem muito mais a ver com estes do que aqueles que nos chegam, porque Portugal não vai traduzir isso. Por exemplo, os livros que se tem escrito sobre a exploração petrolífera na Nigéria, a crise nos Deltas, porque é que Portugal haveria de traduzir isso? Uma aproximação intelectual a África e estamos aqui a importar problemas, se calhar por isso é que vivemos numa sociedade alienada.
Achamos que somos desenvolvidos porque temos prédios altos.
“Nunca percebi a inclusão da raça no BI”
Enquanto antropólogo, como é que viu a retirada da raça do Bilhete de Identidade?
Acho que a retirada foi um gesto muito bom. Uma das coisas positivas que se fez em Angola após a Independência, com muitos erros e problemas porque nunca houve uma reflexão sobre isso, acho que se criou uma ideia de nacionalismo inclusivo. Nunca percebi de quem foi a ideia de colocar a raça no Bilhete de Identidade e qual foi a lógica. Não sei qual foi o objectivo, não sei se foi para privilegiar uma minoria, que é o que muita gente diz, ou para se dar poder a uma maioria, o que outros dizem. O meu entendimento é que discriminação cria racismo e quando o Estado discrimina pessoas baseado na cor, não ´desracializa´, ‘racializa’ a sociedade.
A antropologia moderna já desmistificou o erro de Gobineau, que não há uma superioridade entre uma raça e a outra?
O Gobineau é europeu. E sabemos que a Europa tem uma história racial que a América e África não têm.
Temos a perseguição dos judeus que levou muitos deles para os Estados Unidos, entre os quais o Franz Boas, que é o fundador do Departamento de Antropologia de Columbia, uma das pessoas que se destacou na elaboração de teorias que depois vieram combater a ideia de raça. Temos um Gilberto Freire, que vem desta escola e escreve Casa Grande na Sanzala, no Brasil, começam a apresentar uma teoria de raça praticamente diferente. Portanto, Franz Boas e os seus alunos de antropologia culturalista nos Estados Unidos nos anos 30 e 40, não vão anular a ideia de hierarquia. Dizem que esta hierarquia não é racial, mas sim cultural. Vão desenvolver estes estudos numa ideia culturalista. Que vai marcar o nosso nacionalismo, em que o que importa é o meio social.
Sente que há um fenómeno incubado de racismo na nossa sociedade, mas que as pessoas não querem discutir?
Senti que já houve uma tensão racial maior do que há hoje. Não acho que hoje tenhamos um nível tão grande de discriminação em relação à cor da pele.
Temos outros processos de distinguir pessoas, que não passa pela cor da pele, mas sim por sinais exteriores que, às vezes, têm a ver com o ar da pessoa, a forma como se veste, a fala, o fato e a gravata. Já senti que houve uma tensão racial maior do que há hoje. Se calhar não tenho ido aos sítios certos, porque sou muito crítico em relação a isso, porque já vivi situações de racismo.
A questão do racismo não carece de um debate ou será resolvida naturalmente?
Essa questão tem sido muito debatida. Acho que merece um debate público e vários estudos. Devíamos ter uma compreensão melhor porque o racismo é um fenómeno importante na nossa sociedade. Temos uma geração que na escola aprendeu que o branco é superior, que no trabalho respeitam mais o que diz um branco do que o que diz um negro, ainda que este tenha a mesma educação ou superior. Acho que é uma questão que merece reflexão. É uma questão em aberto, não se fecha com medidas.
Mas o Brasil criminalizou…
Exactamente, chegou a isso depois de… Eles agora introduziram as quotas na universidade e agora já começam a aparecer estudos. A quota é apenas um mecanismo. Ela vem dos Estados Unidos com a acção afirmativa. A África do Sul também tem a mesma questão.
Claro que os negros privilegiados se sentem marginalizados, mas isso não resolve o problema da representatividade, que os Estados Unidos resolveram bem e a África do Sul também está a resolvê-lo. Portanto, se nós temos um país com 200 milhões de habitantes como os Estados Unidos, porque é que não temos negros médicos, senadores, congressistas? Porque é que os negros só cantam e vão jogar futebol? Temos que encontrar a melhor forma de criar uma sociedade que seja inclusiva, que seja representativa.
Há uma biografia que gostaria de escrever?
Risos. Sim, gostava de escrever uma biografia sobre uma figura angolana.
Quem?
Jonas Savimbi. Gostava de escrever uma biografia sobre ele.
Dani Costa e Teixeira Cândido
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