domingo, 7 de novembro de 2010




Língua no ouvido

07/11/2010

Fonte: Estadão



Chegou o dia da separação, e o problema de sempre: o que é de quem? - E os CDs? - Metade para cada um. - Como, metade para cada um? Eu quero escolher os meus. - Está bem, está bem. Ela começou a separar os CDs. Os que ela queria numa pilha, os que podiam ficar com ele em outra. - Espera lá! - gritou ele, no meio da operação. - Os Beatles ficam comigo! - Não sei por quê - reagiu ela. - Botei todos os Luiz Miguel na sua pilha. - E eu lá quero o Luiz Miguel? Nunca gostei do Luiz Miguel. - Arrá! Grande revelação. Ele nunca gostou do Luiz Miguel. Quer dizer que tudo aquilo era uma farsa? 0 0 0 O que ela queria dizer com "tudo aquilo": os dois dançando ao som de um bolero cantado por Luiz Miguel. O apartamento na penumbra, iluminado apenas pela vela em cima da mesa em que tinham jantado. Só os dois. Colados um no outro. E ele (anos atrás, em outra vida) cantando junto com o Luiz Miguel no ouvido dela. Ele dizendo "Você não adora o Luiz Miguel?" E ela: "Adoro, adoro." E ele "Essa vai ser a nossa música para sempre." E ela: "Para sempre, para sempre." 0 0 0 - Além do Luiz Miguel, o que mais era mentira? - Não mude de assunto. Os dois Beatles são meus. - Um para cada um. - Os dois. Na minha pilha. Pode ficar com o Luiz Miguel. - Eu odeio o Luiz Miguel! Está me ouvindo? Odeio. Sempre odiei. - Arrá! Então a fingida era você! - E vou dizer mais. Eu odiava quando você cantava bolero no meu ouvido. E mais... - Olha o que você vai dizer... - Odiava quando você enfiava a língua no meu ouvido. Odiava! - Ah, é? Ah, é? E aqueles gemidos eram pura encenação? - Eram. Quer saber? Eram. Não sei de onde vocês tiraram que mulher gosta de língua no ouvido! 0 0 0 Decidiram suspender a partilha dos discos antes de se atracarem e rolarem, rosnando e trocando insultos, pelo carpete. Ele foi até a janela, respirar fundo. Ela foi examinar os fundos de armário para ter certeza de que não estavam esquecendo de nada. Foi quando ela deu com a garrafa de champanhe. Trouxe a garrafa para ele ver. - Lembra? - Meu Deus. Onde estava isso? - No fundo de um armário. Nós tínhamos guardado lá para comemorar... O que mesmo? - Faz tanto tempo... Tinham guardado o champanhe para abrir num dia especial, no futuro. Que dia seria esse? Nenhum dos dois conseguiu se lembrar. E, mesmo, o champanhe já devia estar choco.















©UN
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Manoel Messias Pereira

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