domingo, 6 de novembro de 2011

Literatura e Conscientização Cultural









Literatura e consciencialização cultural



Norberto Costa




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“Nós não tínhamos noção que estávamos a fazer algo de extraordinário. Nós éramos como quem tinha sede e vai a fonte”, dizia-me Marcelino dos Santos, um protagonista activo desta geração de nacionalistas africanos, em Julho de 1993, em Maputo. Trata-se das fontes luminosas da sabedoria ancestral herdada dos antepassados, embebida na arte africana, nomeadamente na escultura, na dança e na música Africanas, vertida a partir do continente, os cânticos da tradição oral, a riqueza e a plasticidade das proibidas línguas africanas e perseguidas religiões bantus e não só, mas também através da expressão dos blues dos Estados Unidos da América...

Na verdade, o peso desta geração de escritores que reivindicava a sua entrada na cena da história, no chamado “mundo que o português” criou, era incontornável. Em Outubro de 1951 surgia em Lisboa o Centro de Estudos Africanos, que se propunha entre outros objectivos em resgatar a identidade dos intelectuais e estudantes africanos oriundos das então colónias portuguesas de África, nomeadamente, Angola, Guiné-Bissau, Moçambique, preocupados com a alienação mental do assimilacionismo colonial.

Fazem parte deste marcante processo histórico de agitação e contestação política embrionária, em ordem à reconversão cultural, traduzido no famoso mais amplo “movimento de reafricanização dos espíritos”, Mário de Andrade, o principal impulsionador do centro, secundado por Francisco José Tenreiro, além de Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos, Humberto Machado, Tomás Medeiros, Alda do Espírito Santo, Noémia de Sousa, entre outros.

A actividade cultural do Centro de Estudos Africanos era traduzida em saraus musicais, recitais, palestras e seminários animados pelos seus próprios membros, distribuídos por áreas de interesse dos palestrantes e com temas voltados para África, alem de funjadas aos sábados, para aquecer as baterias do ausente e tórrido sol tropical e matar as saudades da terra.

O único membro dessa geração que não participou da actividade cultural do Centro, senão a distância, porque sendo filho de soba julgava-se suficientemente embebido na cultura africana, foi Eduardo Mondlane, escritor, sociólogo e antropólogo que viria a ser líder da Frelimo, no princípio dos anos 60, após a sua formação nos Estados Unidos, precedida de uma curta estadia em Lisboa, onde foi colega de turma de Mário Pinto de Andrade na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, no curso de Filologia Clássica.

De acordo com o programa do centro a que tivemos acesso recentemente, visava o estudo, análise e discussão dos seguintes principais eixos temáticos: I. A Terra e o Homem, II. Sócio-Economia Africana, III. Pensamento Negro, IV. Problemas do Ultramar Português e da restante Africa, V.O Negro no Mundo, VI. Os problemas centrais para o progresso do mundo negro.

Cada um destes temas centrais era elencado pelos seguintes subtemas: I.1) Estrutura geográfica do Continente Africano, I.2) Estrutura antropológica do Continente Africano, I.3) O contacto de “raças” em África, suas consequências. O segundo tema era subdividido pelos “Conceitos da ‘África Branca’ e ‘África negra’, O Preconceito racial, A miscigenação, a utilização da Terra, a mão-de-obra nativa. Valor económico e social do negro. É interessante notar que já em 1945, Francisco José Tenreiro havia publicado um artigo na revista “Seara Nova” sobre o valor económico do Negro.

Em relação às questões tipicamente culturais, os animadores do centro discutiram a linguística africana, como se exprime o africano, sua filosofia, religião e política, bem como formas de expressão artística, como a poesia, dança, música, literatura oral e escrita, para além da escultura e arquitectura. Coube a Francisco Tenreiro desenvolver o primeiro tema sobre a geografia de África, ele que aliás era docente da cadeira de geografia humana na Universidade de Lisboa e já havia publicado uma série de textos que se articulavam com a estratégia cultural do projecto. Segundo o principal protagonista do CEA, Mário Pinto de Andrade, as matérias tratadas pelo geógrafo e poeta Tenreiro, o homem e a terra, estavam no centro das preocupações de Amílcar Cabral, na época estudante de Agronomia, preocupado com a actividade agrícola na Guiné-Bissau e a exploração da mão-de-obra nativa, cuja abordagem vai constituir o seu primeiro aparelho conceptual, na adopção da “Arma da teoria” para a luta de libertação nacional.

Noémia de Sousa ocupou-se da arte e música Africana. Mário de Andrade tratou da Linguística Africana, material que já o trazia ocupado com os seus poemas em kimbundu e com a publicação de artigos sobre a importância do kimbundu nas línguas de Angola, além de uma palestra proferida em Abril de 1952, no âmbito da actividade do Centro de Estudos Africanos, intitulada “Isto é kimbumdu”. Agostinho Neto tratou dos problemas migratórios e trabalhos forçados, em parceria com Humberto Machado, colega de Amílcar Cabral. Cabral tratou dos problemas da agricultura em África, conhecedor da realidade rural guineense, ainda não havia passado por Angola, onde trabalhou nos finais dos anos cinquenta depois da sua formatura como agrónomo. Data dessa altura da publicação do seu artigo “Apontamentos da poesia cabo-verdiana”, onde apela aos poetas para “procurarem o sentido da sua poesia na realidade em que vivem, ao invés de olharem para as nuvens”.

De Luanda, Viriato da Cruz enviou uma comunicação, cujo conteúdo até hoje desconhecemos, marcando a sua colaboração no centro com o sabor da prosa da realidade localmente sentida e vivida no quotidiano, ele que não fora estudar a Portugal, conforme os seus companheiros de rota por contrair uma tuberculose, quando se habilitava a frequentar o 7º Ano dos liceus e por ter tido um desaguizado com o pai que lhe recusou pagar os estudos superiores, por discordar do seu carácter impulsivo na abordagem das questões do foro político.

É mister salientar que a actividade cultural e política, ainda que embrionária do Centro termina em Abril(?) 1954 (outras fontes por nós compulsadas falam em finais de 1954, quando do surgimento do Clube Marítimo Africano), tendo sido coroada com a publicação em 1953 da primeira antologia colectiva dos PALOP – o “Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa”, dedicado a Nicollas Guillén, a voz mais expressiva da negritude hispano-americana. Entre os antologiados constavam Agostinho Neto, António Jacinto e Viriato da Cruz, por Angola, Francisco José tenreiro e Alda do Espírito Santo por S. Tomé e Príncipe e Noémia de Sousa por Moçambique, tidos como as vozes mais representativas para os propósitos perseguidos pelos organizadores da antologia. A colaboração de José Craveirinha um dos mais representativos poetas dos PALOP, evocando o ritmo tam-tam do tambor africano, recorrência desta geração, chegou atrasada a Lisboa, enviada do Índico.

Segundo recordava Agostinho Neto, um dos antologiados, num “Colóquio sobre a Poesia Angolana”, por si animado em Lisboa em 1958, e que contou com uma brilhante intervenção de Amílcar Cabral no período de debate: “Em 1953, publicámos em Lisboa um “Caderno Poesia Negra de Expressão Portuguesa – a sua designação e é elucidativa – sob o signo da negritude. Numa atitude de adesão ao homem negro, a sua condição, e tendo por base os traços comuns das culturas africanas, construiu-se um mundo”. Ele reconhece que “entre nós (intelectuais africanos evoluindo na diáspora em Portugal) combateu-se, e defendeu-se este conceito (negritude)”, avançando que “esta é a poesia do desenraizamento. Os seus mais altos representantes são os poetas negros que se exprimem em francês. Esta poesia não chegava aos povos africanos que são o repositório das nossas culturas. Poesia pensada nos gabinetes de estudo, apenas tinha longínquas ligações com os verdadeiros problemas da realidade social”.

De resto, o intervencionismo desta geração de ruptura rompe com o lirismo da negritude, apelando à passagem à acção directa por via das armas libertadoras acesas nas mãos dos poetas, assumidos na liderança do movimento de libertação nacional. “Stritu sensu”, tal circunstância frustra essa tendência contemplativa, quiçá conformista, a julgar pelo grau do seu “engajament”, expressos em textos poéticos como “Carta de um contratado”, “Monangambé”, “Adeus à hora da largada”, “Não me pecas sorrisos”, “Namoro” e “Sô Santo”. Lirismo e libertação coabitam paredes meias, traduzindo a tomada de visão ante a degradação de um homem humilde. Como é o “Velho João”, tributário da rica tradição do ilhéu ou “Sô santo”, antes abastado na Luanda antiga, vítima do camartelo e remetido para o subúrbio periférico, dada a invasão traduzida pelo povoamento do litoral pelos colonos, desembarcados no porto após cruzarem o Oceano nas caravelas.

A conscientizacao das realidades culturais e sociológicas africanas vai marcar o processo de afirmação dessa geração literária africana que rompe decididamente com o reformismo da velha geração proto-nacionalista e com o “statu quo” do discurso cultural colonial, impondo as vozes poéticas da angolanidade, da caboverdianidade e da mocambicanidade, em suma da africanidade, em contraposição à portugalidade, formulada a milhas de distância para recusar a matriz originária de uma identidade africana e de uma integridade humana própria do homem (objecto de exploração que quer afirmar-se como igualmente homem-sujeito da História); apesar de tratado como estranho na sua própria terra, por forasteiros à cata desenfreada das suas riquezas e que não respeitam a sua identidade individual e dignidade colectiva, base da sua resistência secular – numa palavra (re)afirmação da processo diacrónico de identidade nacional, através de uma linha literária discursiva diferenciada da que o ocupante agressor postula, por via da há muito recusada literatura luso-tropicalista cultivada pelos caçadores do exótico.

Ao fim e ao resto, manda a verdade dizer que a consolidação das literaturas africanas de língua portuguesa, na etapa da sua modernização nos anos 40/50 e 60 inscrevem-se no processo de afirmação das respectivas nações, ainda que no plano da construção imaginária, antes mesmo das independências. No caso dos PALOP, o exemplo é paradigmático, por via da consciencialização dessas elites e da sua produção textual, em prosa e em poesia, quer ainda no ensaio, destacando-se valorosos prosadores, talentosos poetas e lúcidos ensaístas. Basta ver que foram os poetas os primeiros a anunciar o dia abrasador da liberdade e da independência: “amanhã entoaremos hinos à liberdade…”. Cada um dos respectivos plumitivos merece respectiva abordagem individualizada, pois “o estilo é o homem” – dizia o outro. Aliás, não seria abusivo sublinhar que a transversalidade da sua narrativa discursiva aconselha a tanto, o que não será empresa vã. Vale a pena apostar numa tal empreitada, em nome de uma sã consciência histórico-literária e reafirmação da nossa idiossincrasia.








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Manoel Messias Pereira

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