quinta-feira, 30 de agosto de 2012

A pratica da usura sob a ótica da Igreja Cristã do Século XIII







A prática da usura sob a ótica da Igreja Cristã do século XIII



por Paulo Cesar Tomaz





Sobre o autor[1]



O objetivo deste artigo é apresentar uma análise sobre a posição da igreja cristã medieval no que diz respeito à prática da usura, sobretudo no século XIII. Para tanto, examinar-se-á os escritos sobre o assunto, presentes na Suma Teológica, obra tida como de grande relevância para o cristianismo de sua época, escrita pelo filósofo e teólogo dominicano Tomás de Aquino.



Quanto ao assunto proposto, Tomás de Aquino faz sua explanação na questão nº 78 da Suma Teológica, obra escrita por ele entre os anos de 1265 e 1273. Ainda que tal obra não tenha sido totalmente concluída por Tomás de Aquino, permanecendo inacabada, a mesma é considerada uma das mais expressivas obras do período conhecido como escolástica. E traz, em seu conteúdo, os principais preceitos referentes ao pensamento teológico daquele período, cuja preocupação vigente era a busca de uma perfeita harmonia entre a fé (teologia) e a razão (filosofia).



O contexto histórico do século XIII



Quanto ao assunto a ser abordado nesse artigo, a prática da usura, há que inicialmente buscar-se uma definição clara sobre seu significado. Tomás de Aquino, em sua obra Suma Teológica (questão 78), ao questionar se tal prática constituía-se em algo pecaminoso, define a usura como sendo: receber dinheiro em pagamento do dinheiro emprestado .[2] Aquino questiona: É pecado receber dinheiro em pagamento do dinheiro emprestado, o que constitui a usura? .[3]



Sobre a prática da usura no período que antecede Tomás de Aquino, o historiador Jaques Le Goff faz um levantamento de outras fontes medievais e escreve:



As definições medievais da usura vêm de Ambrósio: "Usura é receber mais do que se deu (Usura est plus accipere quam dare)"; de Jerônimo: "Chama-se usura e excedente a qualquer coisa, se alguém recebe mais do que deu (Usuram appellari et superabundantiam quid-quid illud est, si ab eo quod dederit plus acceperit)"; da capitular de Nimega (806): "Existe usura onde se reclama mais do que se dá (Usura est ubi amplius requiritur quam datur)"; e do Decreto de Graciano:"Tudo o que é exigido além do capital é usura (Quidquid ultra sortem exigitur usura est)". A usura é o excedente ilícito, o excesso ilegítimo.[4]



A questão que envolve a prática da usura é de grande importância no século XIII. Trata-se de um momento histórico em que os valores da religiosidade cristã medieval referentes ao uso do dinheiro passam a ser questionados frente a crescente prática econômica monetária que desembocará, mais tarde, no advento do capitalismo. Nesse contexto a Igreja se vê forçada a reavaliar sua postura, reafirmando suas crenças, bem como traçando limites em sua interpretação no que diz respeito às práticas de uso do dinheiro e a cobrança de juros. A postura da Igreja tendia a reprovar toda ação que aparentasse ou tivesse como fim a exploração financeira, a extorsão e o abuso nas relações de compra e venda, bem como nos empréstimos financeiros:



A usura é um dos grandes problemas do século XIII. Nessa data, a Cristandade, no auge da vigorosa expansão que empreendia desde o Ano Mil, gloriosa, já se vê em perigo. O impulso e a difusão da economia monetária ameaçam os velhos valores cristãos. Um novo sistema econômico está prestes a se formar, o capitalismo, que para se desenvolver necessita senão de novas técnicas, ao menos do uso massivo de práticas condenadas desde sempre pela Igreja. Uma luta encarniçada, cotidiana, assinalada por proibições repetidas, articuladas a valores e mentalidades, tem por objetivo a legitimação do lucro lícito que é preciso distinguir da usura ilícita.[5]



Qual a prática considerada lícita e a prática considerada ilícita no que tange aos empréstimos financeiros e ao lucro nas relações mercantis? Indagações como essas e outras perguntas pertinentes ao assunto encontram resposta em firmes posturas, formuladas por autoridades religiosas daqueles dias e por pensadores cristãos que se debruçaram sobre o assunto. O século XIII é marcado pela grande influencia que a Igreja exercia sobre a religiosidade e a mentalidade do homem medieval, bem como sobre os poderes temporais da mesma, influenciando a conduta e as práticas seculares. Todas as áreas da vida do homem medieval sofriam a influencia da Igreja, e as práticas econômicas não constituíam exceção. As formulações e decretos da igreja regiam as práticas tidas com lícitas bem como aquelas tidas como ilícitas, cuja condenação se estendia até mesmo a conseqüências eternas, segundo a mesma.



Quanto à usura, sua condenação como uma prática ilícita e pecaminosa tem uma longa tradição na história do pensamento cristão. A começar pelos textos contidos na Bíblia, livro sagrado do cristianismo, onde são explícitas as citações que condenam tal ato, podendo ser citados pelo menos quatro textos do Antigo Testamento e um do Novo Testamento. Textos estes provenientes da versão em latim, conhecida como Vulgata[6], versão largamente utilizada durante todo o período medieval. São eles:



Êxodo 22:25 - Se emprestares dinheiro ao meu povo, ao pobre que está contigo, não agirá com ele como credor que impõe juros.[7]



Levítico 25: 35,36,37 - Se teu irmão empobrecer, e as suas forças decaírem, então, sustenta-lo-ás. Como estrangeiro e peregrino ele viverá contigo. 36 Não receberás dele juros nem usuras; teme, porém, ao teu Deus, para que teu irmão viva contigo. 37 Não lhe darás teu dinheiro com juros, nem lhe darás alimento para receber usura[8]. Deuteronômio 23:20 - Ao estrangeiro emprestarás com juros, porém a teu irmão não emprestarás com juros, para que o SENHOR, teu Deus, te abençoe em todos os teus empreendimentos na terra a qual passas a possuir.[9] Salmos 15: 1,2,5 - Quem, SENHOR, habitará no teu tabernáculo? Quem há de morar no teu santo monte? 2 O que vive com integridade, e pratica a justiça, 5 o que não empresta o seu dinheiro com usura, nem aceita suborno contra o inocente. Quem deste modo procede não será jamais abalado.[10] Lucas 6: 34 - E, se emprestais àqueles de quem esperais receber, qual é a vossa recompensa? Também os pecadores emprestam aos pecadores, para receberem outro tanto. 35 Amai, porém, os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai, sem esperar nenhuma paga; será grande o vosso galardão, e sereis filhos do Altíssimo. Pois ele é benigno até para com os ingratos e maus.[11]



O texto de Êxodo 22:25 ressalta a ordenança proibitiva que o judeu tinha com relação à cobrança de juros de seu igual. Na comunidade cristã medieval essa ordenança era respeitada entre os cristãos, por formarem uma fraternidade onde o pobre, em especial, gozava de direitos particulares.[12]



Afora os escritos bíblicos, que condenavam a usura, o período anterior ao século XIII é permeado de uma longa tradição que reprovava a prática da usura. Os primeiros pais da Igreja, bem como os concílios que se realizaram no decorrer dos séculos tendiam a reprovar tal prática inicialmente aos clérigos, proibição essa que posteriormente foi estendida aos laicos. Quanto a isso Le Goff comenta:



Os Padres da Igreja expressam seu desprezo pelos usurários. Os cânones dos primeiros concílios proíbem a usura aos clérigos (cânone 20 do concílio de Elvira, cerca de 300; cânone 17 do concílio de Nicéia, 325), depois estendem a proibição aos laicos (concílio de Clichy, em 626). Sobretudo Carlos Magno, legislando tanto em relação às coisas espirituais quanto às temporais, proíbe a usura tanto aos clérigos quanto aos laicos através da Admonitio generalis de Aix-la-Chapelle desde 789. É, pois, um considerável passado de condenação por parte dos poderes eclesiástico e laico, que pesa sobre a usura.[13]



Após essa breve explanação sobre a prática da usura e a posição da Igreja medieval no contexto do século XIII, segue-se na seqüência, de forma mais específica, uma análise sobre a obra de Tomás da Aquino, a Suma Teológica.



Tomás de Aquino e a Suma Teológica



Tomás de Aquino nasceu por volta de 1225, no castelo de Roccasecca, no condado de Aquino, região pertencente ao reino da Sicília. Daí advém o apelido que mais tarde seus colegas em Colônia lhe teriam posto, o de Boi Mudo da Cicília . Fazendo assim menção a pátria de Tomás, ao seu modo de ser, pouco dado a discussões e seu porte físico avantajado. Tomás de Aquino fez seus primeiros estudos na Abadia beneditina de Monte Cassino como um oblato (uma espécie de aspirante à vida monástica) até cerca de 1239. Após esse tempo Aquino parte para estudar na Universidade de Nápoles, recentemente fundada por Frederico I, onde estuda as artes liberais. Nesse mesmo período entra em contato com dominicanos e decide tornar-se um deles.[14] Depois de alguns reveses visto sua família tentar impedi-lo de tornar-se um dominicano, Aquino entra por fim na ordem dedicando-se ao estudo da teologia. Em Colônia, entre os anos de 1248 e 1252 Tomás tem como mestre Alberto Magno, homem de grande influencia em seus pensamentos. Entre os anos de 1252 a 1256 Aquino tem a oportunidade de lecionar em Paris, e na primavera de 1256 Tomás é agraciado com o título de magister em teologia, obtendo uma cátedra em Paris, onde permanece lecionando até os anos de 1259.[15]



O século XIII revela-se com um dos períodos de maior desenvolvimento entre a filosofia e a teologia. Isso ocorre devido a várias razões, entre elas pode-se destacar a criação das universidades, a formação das ordens mendicantes (franciscanos e dominicanos). Ordens estas que passam a fornecer um número relevante de mestres, e a descoberta de obras filosóficas até então desconhecidas como os escritos físicos e metafísicos de Aristóteles em sua redação original. Até então a menção de tais obras era feita sempre por meio dos pensadores árabes.[16]



Esse período da história é também o período de florescimento da Escolástica, sendo Tomás um de seus maiores expoentes. A filosofia escolástica de Tomás é considerada como preambulum fidei , ou seja, como preparação para a fé (...). Além disso, a filosofia de Tomás tem uma função apologética, pois permite discutir com quem não aceita nenhuma fé .[17]



Quanto ao método desenvolvido pela Escolástica, Marilena Chauí assim o descreve:



... característica marcante da Escolástica foi o método por ela inventado para expor as idéias filosóficas, conhecido com disputa: apresentava-se uma tese e esta devia ser ou refutada ou definida por argumentos tirados da Bíblia, de Aristóteles, de Platão ou de outro padres da Igreja. Assim, uma idéia era falsa dependendo da força e da qualidade dos argumentos encontrados nos vários autores. Por causa desse método de disputa teses, refutações, defesas, respostas, conclusões baseadas em escritos de outros autores , costuma-se dizer que, na Idade Média, o pensamento estava subordinado ao principio da autoridade, isto é, uma idéia é considerada verdadeira se for baseada nos argumentos de uma autoridade reconhecida (Bíblia, Platão, Aristóteles, um papa, um santo).[18]



O método escolástico é especialmente importante nesse trabalho, visto ser o mesmo empregado na compilação da obra máxima de Tomás de Aquino, a Suma Teológica.



Em sua estrutura literária a Suma Teológica apresenta a seguinte característica metodológica, notadamente advinda do escolasticismo:



A Suma Teológica de Tomás de Aquino é o protótipo do questionamento do saber na unidade de trabalho do artigo (articulus), que, em sua própria estrutura, retoma a forma da questão disputada (M.-D. Chenu). Entretanto, o pensamento que se desenrola na Suma debate-se consigo mesmo: a objeção não é a simples oposição retórica de uma antítese a uma tese, é a mola de um dinamismo da interrogação, exprimindo um esforço do pensamento sobre si mesmo. O sed contra não tem menos força que os argumentos inicialmente evocados em favor da tese defendida. Também o respondeo (discendum), que vem determinar a questão, toma em geral a forma de uma distinção que permite achar na posição adversária a parte de verdade que a fundamenta. O artigo é pois o contrário exato de uma tese (thesis), é e permanece sendo uma quaestio que, ao mesmo tempo em que fornece uma resposta, propõe algo que possa medir o seu alcance.[19]



Essas informações são relevantes por fornecem pistas de como Tomás de Aquino elabora sua obra máxima, a Suma Teológica. E de forma mais específica, como Aquino elabora seus argumentos quando aborda o tema da usura, encontrado na questão 78 da mesma obra.



O pecado de usura ( de peccato usurae ) Questão 78



A questão 78 da Suma Teológica de Tomás de Aquino traz o assunto a ser abordado de maneira incisiva: Deve-se tratar agora do pecado de usura que se comete nos empréstimos .[20] A questão é então abordada em quatro artigos distintos, que posteriormente são examinados de forma criteriosa. Tais artigos trazem interrogações sobre diferentes aspectos relativos a temática central, ou seja, a usura. São eles:



Primeiro: É pecado receber dinheiro em pagamento do dinheiro emprestado, o que constitui a usura? Segundo: É lícito receber por esse mesmo dinheiro qualquer preceito, como que em recompensa do empréstimo? Terceiro: Há obrigação de restituir o justo lucro que se ganhou com dinheiro usurário? Quarto: Pode-se tomar dinheiro emprestado com a condição de pagar usura?[21]





Como se percebe, o primeiro artigo busca esclarecer se de fato é pecado receber algum pagamento (juros) pelo dinheiro emprestado a terceiros, consistindo essa prática naquilo a que se nomeia por usura. O segundo artigo é um aprofundamento do primeiro, ao questionar se é lícito receber alguma recompensa, ou gratificação, em compensação pelo empréstimo efetuado a terceiros. O terceiro artigo questiona se o usurário (agiota) é passível de censura pelo exercício de tal prática, ou seja, se o mesmo deve restituir o que cobrou como juros pelo dinheiro que emprestou a outrem. O quarto e último artigo traz um questionamento sobre a licitude de se tomar dinheiro emprestado com pagamento de juros, ou seja, se é correto recorrer a um usurário a fim de se pedir dinheiro emprestado com a condição de pagar usura ao mesmo.



Os quatro artigos são trabalhados da seguinte forma: Após efetivar-se a pergunta retórica, dá-se um parecer inicial ( sic proceditur ), enumerando-se a seguir possíveis razões a fim de sustentar o parecer inicial. Na seqüência Aquino responde a questão ( Respondeo ), analisa-se então cada uma das razões levantadas anteriormente, a fim de esclarecê-las uma a uma, elucidando-as em uma análise mais profunda.



A seguir passa-se a análise de cada um dos quatro artigos, de forma mais pormenorizada, a fim de que haja uma melhor compreensão dos mesmos.



Artigo número 1: É pecado receber dinheiro em pagamento do dinheiro emprestado, o que constitui a usura?



Parecer inicial: Parece que não é pecado receber juros pelo dinheiro emprestado .[22]



Após o parecer inicial, Aquino levanta 07 argumentos que aparentam favorecer a legitimação da usura. Os dois primeiros argumentos advêm de citações bíblicas, sendo que o primeiro faz citação ao Novo Testamento (Lc 19,23) e o segundo a duas citações do Velho Testamento (Dt 23,19-20 e Dt 28,12). No terceiro argumento Aquino afirma que nas coisas humanas a justiça é determinada pelas leis civis ( leges civiles ), logo não parece ser ilícito tal prática visto que as leis civis aprovam a cobrança de juros. O quarto argumento é também extraído de citação bíblica (Lc 6.35) e que da mesma forma aparenta legitimar a usura. No quinto o argumento básico é de que o usurário não tem nenhuma obrigação em emprestar dinheiro, portanto lhe é lícito receber algum tipo de retribuição pelo empréstimo. No sexto argumento Aquino levanta o fato de que as moedas de prata e os vasos de prata têm a mesma natureza, ou seja, o material de que são feitos. Logo, se é lícito receber pelo empréstimo de vasos de prata, também é lícito receber pelo empréstimo de moedas de prata. No sétimo argumento Aquino afirma que se alguém pode receber licitamente o objeto que o proprietário lhe dá livremente, também quem toma emprestado pode livremente oferecer juros a quem lhe empresta.



Após a exposição de tais argumentos que parecem favorecer a usura, Aquino responde ( Respondeo ): Receber juros por dinheiro emprestado é, em si mesmo injusto, pois se vende o que não existe. O que constitui manifestadamente uma desigualdade contrária à justiça .[23] Imediatamente Aquino explica sua base argumentativa fazendo distinção entre dois tipos de objetos. O uso de certos objetos que se confunde com o seu consumo, como no caso de vinho ou de trigo, por exemplo. E o uso de certos objetos cujo uso não se confunde com seu consumo, como por exemplo, o uso de uma casa. No caso da casa o proprietário não perde o domínio da mesma quando cede seu uso a outra pessoa, podendo depois reclamar de volta a casa emprestada, como é feito no arrendamento ou locação de imóvel.



Aquino explica que o uso do dinheiro se aplica ao primeiro caso, o uso de certos objetos que se confunde com o seu consumo, como no caso de vinho ou do trigo, visto que o dinheiro foi principalmente inventado para facilitar as comutações, conforme afirma Aristóteles (V Ética e I Política), sendo seu uso próprio e principal o ser consumido ou despendido. Logo não é licito receber juros por dinheiro emprestado, pois como já argumentado se vende o que não existe , pois o uso natural do dinheiro é apenas para facilitar as trocas, onde seu uso se confunde com o seu consumo, não sendo natural usá-lo de outra maneira.



Após sua resposta Aquino debruça-se sobre os sete argumentos levantados anteriormente, analisando-os caso a caso. Demonstrando assim a ilicitude da cobrança de juros, ou seja, a prática da usura.



Após isso, passa-se ao segundo artigo:



Artigo número 2: É lícito receber por esse mesmo dinheiro qualquer preceito, como que em recompensa do empréstimo?



Parecer inicial: Parece que pelo dinheiro emprestado, pode-se pedir uma outra vantagem .[24]



Após o levantamento da pergunta do artigo número 02, dá-se parecer inicial favorável a uma possível recompensa, ou vantagem, em pagamento por dinheiro emprestado. Na seqüência Aquino levanta novamente mais 07 argumentos que parecem legitimar tal pagamento.



O primeiro argumento levanta a possibilidade de se ter prejuízo ao se fazer empréstimos. Sendo assim, parece ser lícito que haja alguma compensação, ou vantagem, sobre a realização dos mesmos. O argumento seguinte refere-se ao dever de honestidade em se dar uma compensação a quem lhe faz um benefício por motivo de gratidão, conforme descrito no livro V da Ética de Aristóteles. O terceiro argumento destaca que é lícito receber um serviço ou um louvor, daquele a quem se emprestou dinheiro . [25] Sendo assim, será permitido receber qualquer outro presente. O quarto argumento diz que existe a mesma relação entre um dom e outro dom, com em um empréstimo e outro empréstimo. Assim sendo, pode-se receber outro empréstimo (futuro) em retribuição a um empréstimo feito anteriormente. O quinto argumento baseia se no fato de que quem empresta a juros a terceiros aliena mais dinheiro do que quem confia seu dinheiro a um artífice ou um negociante. Logo é lícito cobrar juros pela coisa emprestada. O argumento de número seis baseia-se no fato de que se permite um penhor como garantia de empréstimo de um campo ou uma casa habitada. Ora, se assim é, também se é permitido auferir lucro de um dinheiro emprestado. O sétimo e ultimo argumento baseia-se no fato de que alguém pode comprar algo mais barato e vendê-lo mais caro, ou mesmo cobrar mais caro pela demora em um determinado pagamento, ou ainda cobrar menos pela antecipação de pagamento do mesmo.



Após tal exposição dos argumentos, Aquino responde ( Respondeo ): Segundo o Filósofo, no livro IV da Ética, considera-se como dinheiro tudo aquilo cujo valor se pode estimar em dinheiro .[26] Sendo assim, peca todo aquele que receber dinheiro pelo empréstimo de dinheiro, ou receber outra coisa, que se consome pelo próprio uso, ou algo cujo valor possa ser estimado em dinheiro. Todavia, segundo Aquino, é lícito exigir como compensação do empréstimo o que não se mede pelo dinheiro, como a benevolência e o amor para com quem emprestou, ou retribuições semelhantes.



Após a resposta, Aquino detalha como no primeiro artigo, todos os sete argumentos do segundo artigo, dando uma resposta satisfatória a cada assunto abordado nos argumentos citados. Logo após segue-se para o artigo de número 3.



Artigo número 3: Há obrigação de restituir o justo lucro que se ganhou com dinheiro usurário?



Parecer inicial: Parece que há obrigação de restituir tudo o que se lucrou com dinheiro usurário .[27]



Após a pergunta do artigo número 3, há um parecer inicial de que se deve restituir, ou seja, devolver, tudo o que se lucrou com dinheiro proveniente de usura. Aquino arrazoa sobre a questão com três argumentos para a melhor elucidação da questão. No primeiro argumento Aquino faz uma analogia entre um texto bíblico (Rm 11,16) declarando que tudo o que se adquire por meio de usura deve ser restituído, pois dela resulta. No segundo argumento quanto à usura, cita que nas Decretais[28] se estipula: As propriedades adquiridas com rendas usurárias se devem vender e seu preço deve ser restituído àqueles de quem foi estorquido . Sendo assim, tudo que foi adquirido com dinheiro usurário deve ser restituído. No terceiro e último argumento se diz que quem compra com dinheiro usurário só possui tal bem por ter empregado o valor proveniente da usura, sendo assim, deve também restituir o que com ele adquiriu.



Após a exposição dos três argumentos, Aquino responde ( Respondeo ) que se por usura foram adquiridos bens que pelo uso se consomem, como dinheiro, trigo, vinho, ou algo semelhante, não se está obrigado a restituir mais do que o recebido. Por outro lado, há coisas cujo uso não se confunde com o consumo delas e podem ser objeto de usufruto, como uma casa, um campo, ou coisas semelhantes. Nesse caso não se está obrigado a restituir apenas a casa, ou o campo, mas também as rendas dessas propriedades.



Após, como nos casos anteriores, examina-se cada um dos três argumentos levantados, dando-se os esclarecimentos necessários sobre cada questão.



Finalmente, Aquino então expõe o último artigo:



Artigo número 4: Pode-se tomar dinheiro emprestado com a condição de pagar usura?



Parecer inicial: Parece que não é licito receber dinheiro emprestado pagando usura .[29]



Três argumentos são levantados a fim de se elucidar a questão. No primeiro argumento evoca-se um texto bíblico do Novo Testamento (Rm 1,32) concluindo-se que quem recebe dinheiro emprestado pagando juros consente no pecado do usurário e lhe dá ocasião de pecar. Logo, também peca. O segundo argumento baseia-se na alegação de que quem pede emprestado ao usurário lhe dá expressamente ocasião de pecar, logo, mesmo que tenha alguma vantagem temporal, isso não inocenta sua ação. No terceiro argumento Aquino demonstra que parece ser errado depositar dinheiro nas mãos de um usurário, visto ser semelhante a entregar uma espada a um louco, uma virgem a um luxurioso ou comida a um glutão. No entanto, e em sentido contrário, Aquino faz referência ao que escreveu o filósofo Aristóteles no livro V da Ética, lembrando que quem sofre uma injustiça não peca, visto a justiça não ser o termo médio entre dois vícios. Sendo assim, quem aceita empréstimo usurário está isento de culpa.



A seguir Aquino responde ( Respondeo ): De modo algum é lícito induzir alguém a pecar. É lícito, porém, tirar proveito do pecado para o bem. Pois, também Deus usa de todos os pecados para algum bem; de qualquer mal, Ele tira um bem. [30] Com base nesse argumento Aquino então afirma que não é lícito induzir outrem a emprestar com usura, no entanto, receber empréstimo com juros das mãos de um usurário é lícito, pois quem tomou dinheiro emprestado da mãos de um usurário tem em vista algum bem, que é satisfazer sua própria necessidade ou a de outro.



A partir dessa resposta Aquino trata então dos três argumentos levantados anteriormente, afirmando que quem toma dinheiro emprestado com juros não consente com o pecado do usurário, mas dele se serve. A falta está como o usurário em emprestar a juros, e não com quem toma emprestado. Argumenta ainda que quem deposita dinheiro nas mãos de um usurário para que com esse dinheiro se pratique a usura, torna-se cúmplice de sua falta, mas se alguém deposita na mão do usuário para ter seu dinheiro em segurança, não peca, mas se serve de um homem pecador para conseguir algum bem, que é a segurança de seu dinheiro.



Conclusão



Frente às indagações de seu tempo, e sua posição teológica galgada nas premissas do pensamento da Igreja medieval, Tomás de Aquino tende a condenar a prática da usura, compreendendo que o usurário não fica sem culpa por emprestar dinheiro a juros, devendo até mesmo restituir tal valor a quem lhe tomou dinheiro emprestado. Mas surpreendentemente, Aquino admite que quem toma dinheiro emprestado não tem culpa, pois apenas se serve do dinheiro para suprir uma necessidade sua. Aquino ainda acrescenta que se alguém depositar dinheiro nas mãos de um usurário, não sendo para que esse dinheiro seja utilizado na prática da usura, mas apenas como segurança de seu dinheiro também não peca.



Essas possibilidades demonstram a complexidade das relações financeiras e comerciais que começam a intensificar-se a partir do século XIII, devido a um comércio sempre em expansão, suscitando novas realidades, com novos desafios e questionamentos a serem respondidos pela Igreja de seus dias.



Referências Bibliográficas



Aristotle AThe Oxford Translation of Aristotle was originally published in 12 volumes between 1912 & 1954. It is universally recognized as the standard English version of Aristotle. This revised edition contains the substance of the original Translation, slightly emended in light of recent scholarship; three of the original versions have been replaced by new translations; and a new and enlarged selection of Fragments has been added. The aim of the translation remains the same: to make the surviving works of Aristotle readily accessible to English speaking readers.(less)Aristotle,Nicomachean Ethics. New York: Cambrige University Press, 2004.



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Torrell, J. P. Iniciação a Santo Tomás de Aquino: Sua pessoa e obra. 2 ed. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Loyola, 2004.





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[1] O autor é Doutorando em Ministério (D. Min.) pelo Reformed Theological Seminary (RTS) & Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper (Mackenzie-SP), e membro do Centro de Estudos das Artes e do Patrimônio Cultural (CEAPAC/UEM), sob responsabilidade da Profa. Dra. Sandra C. A. Pelegrini (UEM). Esse artigo foi apresentado em cumprimento às exigências da disciplina Tópicos Especiais de História da Ciência I, do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), ministrada pelo Professor Dr.Márcio Custódio. E-mail do autor: paulocesartomaz@gmail.com



[2] accipere pecuniam in pretium pro pecunia mutuata. (ST, IIª-IIae q. 78).



[3] utrum sit peccatum accipere pecuniam in pretium pro pecunia mutuata, quod est accipere usuram. (ST, IIª-IIae q. 78).



[4] Le Goff, Jacques. A bolsa e a vida: economia e religião na Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 2004, p, 22.



[5] Ibid, p. 06.



[6] Vulgata é a tradução para o latim da Bíblia, escrita entre fins do século IV e início do século V, por Jerônimo, a pedido do Papa Dâmaso I.



[7] Exodus 22: 25 si pecuniam mutuam dederis populo meo pauperi qui habitat tecum non urgues eum quasi exactor nec usuris opprimes.



[8] Leviticus 25: 35 a 37 si adtenuatus fuerit frater tuus et infirmus manu et susceperis eum quasi advenam et peregrinum et vixerit tecum 36 ne accipias usuras ab eo nec amplius quam dedisti time Deum tuum ut vivere possit frater tuus apud te 37 pecuniam tuam non dabis ei ad usuram et frugum superabundantiam non exige.



[9] Deuteronomium 23: 20 sed alieno fratri autem tuo absque usura id quod indiget commodabis ut benedicat tibi Dominus Deus tuus in omni opere tuo in terra ad quam ingredieris possidendam.



[10] Psalmus 15: 1Domine quis habitabit in tabernaculo tuo aut quis requiescet in monte sancto tuo 2 qui ingreditur sine macula et operatur iustitiam 5 qui pecuniam suam non dedit ad usuram et munera super innocentes non accepit qui facit haec non movebitur in aeternum.



[11] Lucas 6: 34 - et si mutuum dederitis his a quibus speratis recipere quae gratia est vobis nam et peccatores peccatoribus fenerantur ut recipiant aequalia 35 verumtamen diligite inimicos vestros et benefacite et mutuum date nihil desperantes et erit merces vestra multa et eritis filii Altissimi quia ipse benignus est super ingratos et malos.



[12] Le Goff, Jacques. op. cit, p.17.



[13]Ibid, p. 19,20.



[14] Nascimento, Carlos Arthur R. Santo Tomás de Aquino: O boi mudo da Sicília. S. Paulo: EDUC, 1992, p.13.



[15] Reale, G.; Antiseri, D. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. Vol. II. S. Paulo: Paulus, 2003, p. 211.



[16] Ibid, p. 189.



[17] Reale, G.; Antiseri, D. op. cit, p. 211.



[18] Chauí, Marilena. Convite à filosofia. 12 ed. São Paulo: Atica, 1999, p. 45,46.



[19] Libera, A. A filosofia medieval. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 30.



[20] Deinde considerandum est de peccato usurae, quod committitur in mutuis. (ST, IIª-IIae q. 78).



[21] Primo, utrum sit peccatum accipere pecuniam in pretium pro pecunia mutuata, quod est accipere usuram. Secundo, utrum liceat pro eodem quamcumque utilitatem accipere quasi in recompensationem mutui. Tertio, utrum aliquis restituere teneatur id quod de pecunia usuraria iusto lucro lucratus est. Quarto, utrum liceat accipere mutuo pecuniam sub usura. (ST, IIª-IIae q. 78).



[22] Videtur quod accipere usuram pro pecunia mutuata non sit peccatum ( ST, IIª-IIae q. 78 a. 1 arg. 1).



[23] Dicendum quod accipere usuram pro pecunia mutuata est secundum se iniustum, quia venditur id quod non est, per quod manifeste inaequalitas constituitur, quae iustitiae contrariatur. (ST, IIª-IIae q. 78 a. 1 co.).



[24] Videtur quod aliquis possit pro pecunia mutuata aliquam aliam commoditatem expetere. ( ST, IIª-IIae q. 78 a. 2 arg.1).



[25] Primo, utrum sit peccatum accipere pecuniam in pretium pro pecunia mutuata, quod est accipere usuram. Secundo, utrum liceat pro eodem quamcumque utilitatem accipere quasi in recompensationem mutui. Tertio, utrum aliquis restituere teneatur id quod de pecunia usuraria iusto lucro lucratus est. Quarto, utrum liceat accipere mutuo pecuniam sub usura. (ST, IIª-IIae q. 78).



[26] secundum philosophum, in IV Ethic., omne illud pro pecunia habetur cuius pretium potest pecunia mensurari. (ST , IIª-IIae q. 78 a. 2 co.).



[27] Videtur quod quidquid aliquis de pecunia usuraria lucratus fuerit, reddere teneatur. (ST, IIª-IIae q. 78 a. 3 arg. 1).



[28] Decretais: Coletânea de normas pontifícias promulgadas pelo Papa Gregório IX em 1234.



[29] Videtur quod non liceat pecuniam accipere mutuo sub usura. ( ST, IIª-IIae q. 78 a. 4 arg. 1).



[30] dicendum quod inducere hominem ad peccandum nullo modo licet, uti tamen peccato alterius ad bonum licitum est, quia et Deus utitur omnibus peccatis ad aliquod bonum, ex quolibet enim malo elicit aliquod bonum. (ST, IIª-IIae q. 78 a. 4 co.).















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Manoel Messias Pereira

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