quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Sexualidade na Longa Idade Media Concepção de masculino e Feminino






O Tema da Sexualidade na Longa Idade Média: Concepções de Masculino e Feminino



por Rodrigo Poreli Moura Bueno e Cesar Augusto Neves Souza





Sobre o primeiro autor[1]



Sobre o segundo autor[2]



Para poder tecer qualquer trabalho sobre sexualidade e Idade Média, é preciso, antes de tudo estar atento a algumas questões básicas: o papel da Igreja referente a este assunto, as mudanças sociocultuais e sobre os papeis do masculino e do feminino no decorrer do período medieval. Não se preocupou em abordar, aqui, o tema antes desse período, reservando, a posteriori, uma futura extensão, pelo qual se buscarão mais detalhes e aprofundamentos.



Para este estudo inicial, estabelecemos dois pontos de referência. São eles: o livro A Mulher, a Luxúria e a Igreja na Idade Média de Mario Pilosu e dois artigos: Sexualidade de Jacques Rossiaud e Masculino/Feminino de Christiane Klapisch-Zuber, todos eles contidos no Dicionário Temático do Ocidente Medieval organizado por Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt. Dessa maneira, o principal objetivo de artigo é discutir alguns aspectos culturais e sociais relativos à sexualidade medieval a partir das interpretações, principalmente, destes três autores.



O intuito de muitos estudiosos hoje em dia é compreender a parte que as relações entre os sexos ocupam no conjunto das relações sociais. Uma tarefa inicial coloca-se assim ao historiador, que deverá se preocupar com as definições de masculino e feminino elaboradas ao longo da Idade Média e questionar de maneira crítica os suportes intelectuais e teóricos que fundamentam estas representações. Em suma, ele deverá compreender como o desequilíbrio entre os sexos e uma tendência a favor do masculino, assim como a constituição do feminino em conceito abstrato marcaram o pensamento ocidental medieval (Klapisch-Zuber, 2006, p.138).



No sentido de discutir este tema tão relevante, é preciso visitar o passado e percorrer os labirintos que formaram o cenário medieval. Sabe-se que o governo romano, desde o século III, estava lidando com diversos problemas, como a corrupção de sua política interna e a relação cultural conflituosa com os povos germânicos. Posteriormente, o cristianismo torna-a religião oficial deste governo romano, acelera sua fragmentação e lança novas luzes sobre o continente europeu. Hilário Franco Júnior, corroborando com esta argumentação, diz o seguinte:



[...] Da articulação que ela realizou entre os romanos, é que sairia a Idade Média. Nascida dos quadros do império romano, a igreja aos poucos preenchendo os vazios deixados por ele até, em fins do século IV, identificar-se com o Estado, quando o cristianismo foi reconhecido como religião oficial. A igreja passava a ser herdeira natural do império romano (FRANCO JUNIOR, 2006, p. 67).



No crepúsculo do século IV a Igreja assentou-se no poder, logo, precisava impor algumas posturas, a fim de se firmar como um governo político-religioso. Esta postura desencadeou um profundo impacto no âmbito cultural. A confecção de uma nova conduta moral foi adotada, e grande parte das consequências deste novo padrão, recaiu no campo da sexualidade.



Logo, a Igreja dirigiu suas preocupações ao comportamento sexual de seus adeptos por quase toda a Europa. Baseando-se na Bíblia, livro sagrado dos cristãos, passou a emitir fórmulas e bulas contendo medidas a serem tomadas como corretas durante o ato sexual. E grande parte da preocupação da Igreja repousou sobre a mulher, considerada como mais próxima da animalidade do que o homem. Seu caráter frio, úmido e voluptuoso permite ter sensações mais intensas que a do macho. O homem, porventura, restava-lhe controlar-se para não cair em tentação, pois, explica que caberia a eles não se entregarem às carícias femininas a fim de evitarem um estágio impossível de refrear (ROSSIAUD, 2006, p. 479).



Assim, a moral ocidental vinha sofrendo um profundo impacto com a chegada do cristianismo. A cosmovisão do homem neste período induzia a crer em céu, inferno, diabo, pecado, culpa, arrependimento e outros vários pontos doutrinários. O imaginário do homem medieval era tomado pela culpa e o medo de arder para sempre nas chamas do inferno. Dentre tais temores que levava as certas restrições, o principal era o pecado da luxúria, tido como o pecado mais recriminado pela Igreja. Jacques Rossiaud pontua:



Numa palavra, a Igreja apropriou-se de vários conceitos e integrou-os em uma argumentação construída, fundando uma verdadeira antropologia, na qual Crisóstomo, Ambrósio, Jerônimo e Agostinho definem o lugar do sexo na obra divina e o papel das relações sexuais na vida cristã (ROSSIAUD, 2006, p. 479).



O sexo, portanto, era consequência da queda do homem no jardim do Éden. Como o pecado que entrou em nosso mundo e foi espalhado para toda a humanidade, por conseguinte, o sexo é a replicação deste mal, ele é negativo e algo que mereça atenção. De igual maneira, a sexualização é a marca da decadência humana, e o remédio para não cair no mundo perverso da promiscuidade é o casamento; antídoto contra a lascívia, contra a volúpia da carne e permitida apenas para a procriação (ROUCHE, 2009, p. 449-450).



A postura vigorosa nos primeiros séculos da era cristã coibia os impulsos naturais do corpo relativos à sexualidade, e a conjunção dos corpos teria que aceitar regras e ritos orientados pela religião. O procedimento religioso com respeito ao sexo mostra-se espelhado nas palavras de Santo Agostinho: Também é adúltero quem ama com demasiado ardor sua mulher (AGOSTINHO apud ROSSIAUD, 2006, p. 480).



As prescrições sexuais ditadas pela Igreja escorregavam do âmbito do cuidado para o recinto da vida privada, elaborando regras como: posições sexuais indevidas, dias propícios para o coito e passividade absoluta da mulher. Tais precauções deveriam seguir à risca, posto que, transgredi-las exprimia ultraje à ordem natural das coisas, atraindo sobre o infrator a punição divina. É necessário compreender estes temores do homem medieval para não infligir-lhes julgamentos precipitados. Além do mais, podemos prescindir que qualquer manifestação libidinosa, e a vazão dada aos instintos eram pecaminosas, e em consequência, a abstenção sexual e a virgindade eram louvadas. Todavia, é temeroso afirmar que o período medieval foi uma era de negação da sexualidade (ROUCHE, 2009, p. 470-471).



A posição tomada pela instituição eclesiástica entre os séculos V ao X tangente à moral sexual levou a Europa a baixos índices demográficos, ocasionou novas medidas a serem adotadas. Jacques Rossiaud (2006, p. 482) argumenta: A castidade a fortiori a virgindade - não tem grande valor espiritual quando não acompanhada de outras virtudes, a sua forma mais valorosa é a castidade voluntária vivida no matrimônio .



Pode-se notar a variabilidade da teologia cristã diante das adversidades sociais. E a priori, a desigualdade do homem para com a mulher e a superioridade deste nas relações sexuais. Nesse sentido, o adultério mereceu atenção especial, considerado um crime feminino. A traição feminina acarretava diversas sanções públicas, como andar nua ou pagar uma multa. O filho da concubina era tido por bastardo. Quanto ao homem, salvo em questões de homossexualidade e de danos imateriais, era isento de culpa (ROSSIAUD, 2006, p. 485).



Os principais comportamentos subversivos que se condenavam eram: a masturbação, homossexualismo e os atos de sodomia. Eram desvios contrários à natureza e deveriam, sobretudo, ser vigiados. Alem do mais, a filosofia da época pregava que contrariar a natureza causava danos à saúde, devido a isso, muitos casos de estupros não eram censurados, e principalmente, um sinal de virilidade. Então, em face desta inconstância moral, a conduta sexual ora reprimia os instintos, ora liberava-os. Neste panorama, o século XV foi a época de ouro da prostituição, e de certa forma, era uma instituição mantida mesmo na obscuridade (ROSSIAUD, 2006, p. 486).



Já no que se refere ao conjunto de regras que norteava o procedimento sexual, a doutrina cristã estabelecia a supremacia masculina sobre o feminino. Observa-se nesta afirmação, bastante proclamada no Medievo, de que a mulher é um ser fraco que deve necessariamente ser subjugado porque é naturalmente perversa, que ela está destinada a servir o homem no casamento e que ele tem o poder legítimo de servir-se dela. Entende-se que o casamento forma o embasamento da ordem social, e que essa ordem se funda sobre uma relação de desigualdade (DUBY, 2011, p. 34).



Pode-se deduzir que a relação sexual é um ritual, cujo protagonista é o homem. A partir daí, entende-se as diversas formas de brutalidades, misoginia[3] e posturas sexistas em relação à mulher medieval. O exercício do poder masculino na relação conjugal e sexual a mantém em papel subalterno. Entretanto, era um comportamento cultural e aceito pela sociedade e não visto como desprezível pelos olhares anacrônicos de hoje.



Dessa forma, o sexo era permitido para atender as necessidades masculinas e a geração de filhos. Entrementes, a Igreja construiu uma moral sexual repressiva. O simples ato de ter filhos que outrora era sinal de virilidade e de riqueza, a partir do século XII, por exemplo, diante das incertezas que há no mundo, é sinal de garantia para velhice (DUBY, 2011, p. 17).



O caráter sexual e os laços morais ficaram mais frouxos a partir do período citado anteriormente, no qual focalizou o valor das indumentárias, aprimorando as fantasias e a imaginação popular. O momento é de um diálogo entre a provocação e a vergonha. Os decotes dos vestidos sublinhavam uma nova visão do corpo. A sociedade já concebia a ideia de que a satisfação sexual era importante para todos. Não obstante, deve-se pensar que não havia traços do passado, porém, houve uma acentuada mudança de comportamento social (ROSSIAUD, 2006, p. 490).



Dois séculos mais tarde, porém, ainda vemos aspectos de um caráter antifeminista na cultura medieval da época. O poeta Boccaccio assim se expressava por meio dos dizeres de algumas mulheres:



Lembrem-se que somos todas mulheres, nenhuma de nós ainda é criança para não saber como as mulheres se ajeitam entre si e sabem se entender sem a ajuda de um homem! Nós somos volúveis, contraditórias, desconfiadas, covardes e medrosas [...]. Na verdade, os homens são os chefes das mulheres e sem a autoridade deles raramente algo que fazemos chega a um fim louvável [...] (BOCCACCIO apud KLAPISCH-ZUBER, 2006, p. 137).



A mulher, por natureza considerada fraca, impotente e débil, não deixa de ocupar uma posição de inferioridade. E conforme os preceitos vigentes, macho e fêmea não se complementam, haja vista que o homem está acima da mulher, em uma posição hierárquica Alguns pais da Igreja como Ambrósio, Jerônimo, João Crisóstomo e Agostinho, foram os principais fiadores que teceram a partir das interpretações dos textos bíblicos, as vestes culturais a serem usadas pelo comportamento masculino e feminino. E hoje, herdeiros deste legado, somos filhos culturais do medievo, com traços e tonalidades culturais deste período. A paisagem social da época refletia a hierarquia de um sexo sobre o outro (Klapisch-Zuber, 2006, p. 139).



A justificativa eclesiástica para confirmar este comportamento social era o tema da tentação. Eva cedeu à tentação, caiu, e por causa dela o mal entrou na humanidade, e em virtude de sua queda, foi amaldiçoada com a dor do parto e com a submissão ao marido. Diante do mito da criação, os exegetas bíblicos estão frente a um dilema. No livro dos Gênesis (1, 26) conta que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, e criou homem e mulher. Em segundo momento, no capítulo 2, 21 a 24, Deus cria Eva a partir da costela de Adão enquanto este dormia. O primeiro texto coloca os dois sexos em plena relação de igualdade, todavia, os teólogos cristãos ignoram-na em favor do segundo texto (Klapisch-Zuber, 2006, p. 140).



A antropologia cristã estabelecerá a razão como instrumento para contemplar o divino e solapar os desejos naturais do corpo. Diante deste pensamento, a lógica é simples: o homem dotado de razão é um ser superior, ao revés, a mulher, mais sentimental e inclinada aos desejos carnais é relegada a um plano secundário. Tal hierarquia transportada para o âmbito das relações sociais tende a assimilar a mulher ao seu corpo vil e pecaminoso (Klapisch-Zuber, 2006, p. 141).



Assim, o casamento, um remédio contra a promiscuidade, tem sua harmonia na subordinação da mulher, cumprindo sua missão, que fora criada para ser uma adjuntora do homem na reprodução da espécie, portanto, deve prestar-lhe obediência. Klapisch-Zuber nos diz mais uma vez:



[...] Esta qualidade de auxiliar que possui a mulher e a antecedência da criação de Adão, fundam a preeminência do homem até nas relações conjugais: concebida como uma superioridade, a prioridade deve ser consagrada pela obediência da mulher, que se torna o fundamento da harmonia do casal (KLAPISCH-ZUBER, 2006, p. 142).



Tal pensamento ganhou um aliado em São Tomás de Aquino, que mesmo com uma postura não afinada com a de Santo Agostinho, ratificou a superioridade do homem. E por sua vez, foi um resgate da concepção aristotélica que rezava que a mulher era um homem imperfeito. E sendo imperfeitas, suas faculdades mentais eram, portanto, inferiores.



A visão sobre o feminino na Idade Média pode possuir um caráter misógino, ao mesmo tempo que é uma tentativa de harmonizar a ordem do mundo. Então, dever-se-ia ter cuidado com a mulher, devido a seu estado de animalidade, lascívia e condutora ao pecado do homem, e, sobretudo, perturbadora da harmonia familiar. Destarte, reservava a ela manter a ordem social, colocando-se como submissa. A debilidade, fragilidade e instabilidade feminina se equilibravam ao lado do homem, representante da estabilidade e da racionalidade (Klapisch-Zuber, 2006, p. 144).



E mesmo por volta do século XII com a glorificação da virgem Maria e a romantização da figura feminina, esta polaridade entre masculino e feminino não é invertida. A posição da virgem Maria no panteão cristão, a colocou como um exemplo de castidade e puritanismo, além do mais, a supervalorização da virgindade feminina tonificou os dois pólos. Quanto a isso, Klapisch-Zuber deixa claro:



[...] A mesma obsessão inspira o objeto de perfeição, elevando Maria muito acima das outras mulheres, e a dama do amor cortesão acima de todas as suas rivais, inacessível ao amante, perdidas nas terras longínquas do desejo impossível (KLAPISCH-ZUBER, 2006, p. 145).



Em suma, a submissão da mulher concentra-se como parte fundamental no plano da criação de Deus, e a quebra desta ordem, significa a contravenção dos valores mais sagrados primados pela Igreja e cultura da época. A transgressão se torna mais grave, quando a mulher do alto de sua honradez, cede aos encantos ardilosos da luxúria, sendo uma afronta ao seu papel de idealizada e de santa. Uma renúncia de seu estado privilegiado estabelecido pelo criador de santificada. Sintetizando, a infratora é digna de punição (Klapisch-Zuber, 2006, p. 149).



O homem, masculino, é a unidade; a mulher, feminino, representa ao mesmo tempo: Eva, a culpada e frágil, e Maria, a exemplar e soberana. Ou seja, a mulher é ao mesmo tempo, pecadora e redentora, megera conjugal e dama cortesã. O feminino se conflita por estes dois arquétipos.



Continuando nesta esteira, a figura de Eva, mulher no Antigo Testamento, por exemplo, é apresentada muitas vezes como um instrumentum diaboli. Conforme a narrativa bíblica, ela comeu do fruto proibido e ofereceu também a Adão, tornando-a a principal causadora dos males da humanidade. Ou seja, o Diabo a usou para infortunar o marido. As primeiras páginas do livro sagrado sugerem a mulher como um ser de fácil persuasão e inclinada a ouvir os encantos atraentes da serpente, que por sua vez objetam o espírito racional do homem (PILOSU, 1995, p. 29).



O mesmo livro dos Gênesis descreve a história de outra mulher que fora igualmente usada pelo Diabo para corromper um homem santo, José do Egito. No capítulo 39, 7-23 conta a história de uma mulher, cujo marido chamava-se Potifar, patrão de José. Achando este mesmo jovem José belo e robusto, decide arremessar-se sobre o mancebo, seduzindo-o, e nada consegue, senão, sua túnica. Mario Pilosu descreve sobre este tema:



Os comentadores pensaram frequentemente ver neste conto uma alusão à paixão de Cristo: A mulher é a sinagoga, já habituada a juntar-se sexualmente com os deuses estrangeiros e que procura seduzir José/Jesus que rejeita e abandona o manto (PILOSU, 1995, p. 29).



O ato de José evadir-se completamente nu das mãos da sedutora moveu as bases das fantasias dos artistas medievais[4], no qual, inspiraram a representar a cena. Padres compararam a ação de José em abandonar a túnica com a de Jesus deixar seu corpo crucificado.



Apesar do simbolismo forçado, há outros personagens masculinos que sucumbiram à armadilha feminina. É o caso de Sansão, embora robusto e forte, fraqueja ante aos encantos lascivos de uma bela mulher de nome Dalila. Temos mais adiante Salomão, o grande rei sábio que se desvaneceu pela sedução de muitas mulheres, que como agentes do Mal conduziram-no à ruína e acarretando a cólera de Javé.



Notam-se, dessa maneira, três personagens femininos, nos quais dividem características em comum. São elas: Eva, Mulher de Potifar e Dalila. As três induziram o homem à queda, as três são tentadoras, principalmente as últimas duas, de tentação sexual explícita. Portanto, são os instrumentos do diabo para execução do mal. O conselho bíblico referente à mulher radicaliza de tal forma, que o autor de Eclesiastes assevera: Eu achei uma coisa mais amargo do que a morte: a mulher cujo coração é redes e laços e cujas mãos são ataduras; quem for bom diante de Deus escapará dela, mas o pecador virá ser preso por ela (Eclesiastes 7, 26).



Voltando novamente ao texto bíblico, podemos ver outro exemplo que se refere à mulher e sua conduta moral. Jesus Cristo, no Novo Testamento, é atraente e amistoso para com as mulheres, ao ponto de estender a mão a uma mulher estrangeira e solidarizar-se com uma adúltera, reconhecendo sua fragilidade. Aqui, nas entrelinhas, segundo entendimento da Igreja, está embutido um juízo de valor que pode receitar a mulher como sexo frágil. Portanto, cabe aqui repetir que esta visão acerca da mulher deve-se ao pensamento que ela é um instrumento do mal, assim, o sexo é um mal à humanidade[5].



Mesmo o texto bíblico sendo trabalhado de diversos pontos de vista, pareceu de alguma forma fomentar o caráter severo assumido pela Igreja medieval, no que concerne à moral sexual. Entretanto, a hermenêutica adotada pela instituição eclesiástica na interpretação dos textos sagrados indica o papel social e cultural que a mulher iria desempenhar neste período. Pilosu, com belas palavras, comenta o que segue:



Poder-se-ia perfeitamente argumentar que tendo em conta todas as referências ao perigo representando pela mulher tentadora, tudo se enquadra perfeitamente no seio de uma concepção cultural, no qual, a mulher assumia um papel secundário, subordinado ao homem. E na quais, as relações sexuais eram sempre consideradas causas de impureza física e espiritual no homem, ainda que com sua esposa legítima (PILOSU, 1995, p. 31).



De acordo com a antropologia cristã, o sexo era uma forma de dividir o mal, ou a replicação do mal pela ou na humanidade. Com a canonização de Maria após o século X, a mulher não será mais um instrumentum diaboli, mesmo que ainda tenha manchas deste pensamento, agora, ela passa a ser idealizada. No papel da mãe de Deus, co-salvadora da humanidade, resgata o pecado original de Eva, e a devolve ao seu lugar de sublimação. Aqui, não podem passar despercebidos dois pontos cruciais, a saber: Em Eva[6] encontramos uma mulher sedutora, frágil, inclinada a cobiça e responsável pela queda do homem, e em Maria, temos a mulher redentora, santificada e idealizada (PILOSU, 1995, p. 32).



Dentro da paisagem cristã na Idade Média surge um movimento que se desenvolve a partir do século III no Egito e estende-se para o Oriente e Ocidente, pelo quais os historiadores chamam de monasticismo. Convinha que o praticante desta doutrina, o eremita, se afastasse do convívio social e se refugiasse no deserto. Ao modo de vários personagens bíblicos, inclusive Jesus e João Batista. Este isolamento consistia em um desafio ao Demônio, posto que, a tentação era um instrumentum salutis proporcionado por Deus.



No entanto, temos diversos relatos de eremitas que confinados em seu isolamento foram torturados pelo Demônio, e quase sempre no semblante de mulher; instrumento do Diabo. Santo Antonio foi um dos principais expoentes deste estilo de vida, que além de passar pela prova da tentação, também era um meio de alcançar o estado de simples de coração, se afastando das relações sociais, dos grandes centros, procurando isolar-se em meio às montanhas e preferindo ter a companhia dos anjos. Conta-se que o Diabo se utilizando de vários estratagemas para derrotar o homem santo, recorre à sua arma mais letífera: A luxúria, e na pele de uma mulher procura seduzir o eremita. Pilosu nos informa o seguinte:



Na igreja do Santo Sepulcro, três mulheres exibindo-lhe os seios nus, enquanto um vitral da catedral de Chartres mostra o Santo a ser tentado por uma mulher com um espelho, símbolo da luxúria surgindo pela primeira vez numa representação iconográfica no século XII em Tolouse (PILOSU, 1995, p. 33).



O caso de Santo Antônio se repete por outros eremitas, no qual quase se deixando levar pelos ventos encantadores da sedução, encontra no sofrimento físico a porta de saída para vencer o mal. O mal é o sexo, desejo carnal em que na maioria das vezes, encontra na mulher o caminho para a luxúria e a escuridão do pecado. A dor é valorizada para alcançar a salvação do corpo doente pelos impulsos carnais atormentados pelo desejo sexual. Salvação da alma é também, salvação do corpo mortal, das vontades carnais e do sexo, sendo que este afasta o homem de Seu criador. A dor e o sofrimento imputados ao corpo são protagonistas na vida dos santos tentando pelo Diabo. E a mulher principal instrumento de tortura leva o homem a assentir com suas vontades lascivas. (PILOSU, 1995, p.43)



Com relação à tentação de Santo Antônio, a mulher enviada pelo Diabo aparece morta, o mesmo incidente se ecoa de forma parecida em outros eremitas. Outro simbolismo que aparece nestas histórias é a figura do fogo. Havia um eremita no baixo Egito, e após uma acerbada tentação tendo, lógico, uma mulher como protagonista, queima-lhe os próprios dedos a fim de se livrar da condenação eterna, feito para os amantes dos prazeres carnais. E o fogo físico é o meio de prevenir outro fogo, o do desejo. Por ventura, apresentam-se três tipos de fogo: fogo eterno, fogo da carne e fogo físico. Muitos são os exemplos de relações entre fogo (seja ele punitivo ou elemento de testemunho) a pureza da carne e a luxúria (PILOSU, 1995, p. 39).



Já o religioso Gregório de Tours em sua obra A História dos Francos , traz uma citação de um Santo, São Brízio, na qual é de suma importância. Assim como vedes que minhas vestes não foram tocadas pelo fogo, assim o meu corpo não foi contaminado pelo contato da cópula com uma mulher (TOURS apud PILOSU, 1995, p. 39).



Podemos perceber que os relatos hagiográficos tiveram ampla circulação durante a Idade Média e exerceram forte influência na conduta moral das pessoas. Há casos em que a tentação saiu-se vitoriosa, nestes casos a punição divina foi rigorosa. O sexo, o pecado da carne, é o mais grave dos pecados. O servo de Deus, uma vez cedido à tentação, mesmo reerguido jamais é considerado como um herói da vida exemplar, sendo relegado a um patamar inferior, uma pessoa de segunda categoria. Em vários discursos, o Diabo transforma-se em mulher com o alvo de derrubar o homem de Deus que deverá manter-se firme, porquanto poderá ser consumido pelas chamas do fogo eterno. A tentação pode sair vitoriosa porque, nem sempre o servo de Deus consegue resistir. E um homem de vida pia, adquirindo esta nódoa nunca mais é considerado como um modelo a ser seguido. (PILOSU, 1995, p.41).



Papel feminino assumido pelo Diabo, a mulher torna-se, muitas vezes, uma tentadora inconsciente, e nestas histórias ou lendas, vale também os discursos sobre o gênero feminino. Aqui, ela é retratada como objeto, ora de Deus e ora do Diabo. Do segundo, porque é um meio de enfraquecer a fé de um homem santo. Do primeiro, porque Deus permite a tentação de modo que valorize a vida pia de seus servos e a soberania do espírito sobre a carne.



Entretanto, há casos de conversão da mulher prostituta encontrados nos exempla medievais, como nos textos do Vitae Patrum (Vidas dos Pais da Igreja). Um deles é o de Taís, uma prostituta pelo qual um monge sente-se atraído sexualmente, e ela por sua vez, mostra para ele as maravilhas do mundo do além que poderá perder se ceder à tentação, por causa de uma fraqueza passageira. O que não se pode deixar de explanar aqui é um novo papel desempenhado pela mulher. Ainda sim, este papel é reforçado com a intenção de valorizar a virgindade feminina. A reflexão sobre a virgindade realçada por Maria segue a lógica de que antes morrer virgem do que apreciar os sabores do sexo. Enfim, o sexo pode ser visto como contraproducente e uma moléstia (PILOSU, 1995, p.43).



Também temos, anteriormente, a metáfora da morte, que se apresenta sob duas óticas. Quanto que para o servo de Deus é a consumação de toda uma vida dedicada em prol da salvação, para a prostituta, é a punição divina por seduzir um homem piedoso. A principal penitência utilizada para vencer o pecado da luxúria era o jejum, haja vista, os sete pecados capitais elaborados pelo monge Evágrio do Ponto no século IV. Os dois piores pecados são o da luxúria e o da gula. Devido a isso, a Igreja orientava a abstinência de alimentos com a intenção de solapar o fogo da carne.



A luxúria é representada no poema alegórico Psychomachia de Prudêncio como um carro ricamente dourado com um séquito de mulheres cobertas por um belo manto e tendo os cabelos vermelhos e pretendendo vencer as virtudes, esta por seu tempo, levanta a cruz e derrota a luxúria. A explicação simbólica que liga a luxúria a gula como correlacionadas está nas palavras do teólogo francês Raoul Ardent:



Eis os males que provém da gula: por causa dos seus gostos frequentes e desregrados pelos festins, Herodes entregou-se aos amores prostibulares. De fato, assim como os órgãos genitais são suspensos do ventre, assim a luxúria deriva da gula e a ordem dos vícios segue a ordem dos órgãos. Por isso, se disse que a abundância de pão foi a causa da fornicação ignominiosa dos cidadãos de Sodoma (ARDENT apud PILOSU, 1995, p. 47).



Logo, a gula é a mãe da luxúria, visto como, causa um desencadeamento dos instintos. E para valorizar esta simbologia, recorrerão à textos bíblicos, ressalvando inúmeros casos em que homens santos de Deus usufruíram do galardão celestial após a abstenção dos pecados da gula. Em uma palavra: a contenção do apetite. Assim, como o sexo, a gula deve ser controlada e restrita, a carne nunca pode sobrepor o espírito. Nunca deverá alimentar-se por prazer, com o risco de despertar o fogo da luxúria. Desta forma, há conselhos para evitar a embriaguez e as comilanças. Além do mais, são entorpecedoras da mente e deles derivam as doenças do corpo.



Alain de Lille citado por Pilosu relata: Eis a luxúria, filha da gula, fedor nascido da imundície da carne, odor repugnante gerado pela lama do corpo. (LILLE apud PILOSU, 1995, p. 49). E aponta que o antídoto sem dúvida reside na castidade. Essas orientações eram fortalecidas através dos sermões de Jerônimo, Raoul Ardent São Tomás de Aquino dentre outros. Esta conclusão tomada pelos padres proveio da observação empírica do comportamento humano. Os banquetes, as festas e libações, em que os participantes se desmoderaram e se entregavam à embriaguez, glutonaria e lascividade.



Tais práticas eram correntes no governo romano, já que este possuía regras morais e culturais diferentes ao do período medieval. Séculos mais tarde, com a influência social e cultural eclesiástica, as restrições foram a tônica. Pela igreja, o sexo poderia consumir o homem enfraquecendo suas vitalidades. Acreditava-se que o sêmen era o produto vital do homem. O sexo era associado á impudência, porventura um sinal da natureza corrompida pelo pecado, uma multiplicação do mal. Todavia, o caminho de alcançar a purificação se dava pela estrada da abstinência sexual. Segundo Jacques Rossiaud:



O esperma é o extrato mais puro do sangue. Predomina a concepção de que esta preciosa substância, composta se de sangue e pneuma, constitui a vida em estado liquido e de que as regiões cervicais e oculares contribuem muito para sua formação (ROSSIAUD, 2006, p. 478).



De outro modo, a fim de vencer a tentação da carne, o conselho era se afastar das companhias femininas, ao ponto que o teólogo Jacques de Vitry aconselha que o fogo ardente é menos nocivo do que uma mulher jovem, e dela deriva a desventura do homem. Os perigos sexuais atribuídos à mulher foram tantos, ao ponto de o próprio ato de cantar ser uma atitude passível de condenação. Basta lembrar das lendas que associam a mulher à sereia e à música. É em si a imagem da sedução que perverte a vontade masculina (PILOSU, 1995, p. 54).



Toda esta ideologia e simbologia eram reproduzidas nas lendas. A paixão e o sexo estavam ligados a algo podre, fétido e repulsivo. Como é o caso da ave poupa que convida o passarinho rouxinol a dançar em seu ninho, porém, o rouxinol sentido a podridão do ninho dela, optou por passar a noite em seu recinto desconfortável. A alusão da parábola de que o ninho repugnante representa o mau cheiro da luxúria, e a sábia decisão do rouxinol simboliza o homem devoto e casto, no qual temendo a punição, prefere levar uma vida de solidão e abstinência. A queda na tentação é vista como perda de todas as boas ações, de todas as orações de uma vida santa e religiosa (PILOSU, 1995, p. 66).



Em linhas gerais, a tentação parte da mulher. E ao fazer com que o monge corrompa sua castidade, equivale ao crime de roubo. Isso perpassa por praticamente todo período medieval, nos exempla e relatos hagiográficos. Eles estão repletos de lendas em que o Diabo toma a forma de uma mulher para fazer o homem santo cair no oceano da luxúria. Que por seu tempo, é como um fogo que consome e devora a alma na pele de uma linda mulher. A tentação é tão forte que o servo de Deus não vê alternativa do que punir seu próprio corpo, ora queimando os dedos como ocorreu a um eremita no baixo Egito, ora rebolando em meio a urtigas como se deu com o monge Bento de Núrsia. Igualmente, há a punição divina com a morte das prostitutas, emissárias de satã. E, ainda, como o caso de um discípulo do monge Pacômio, que ao se sucumbir à tentação é assolado pela lepra (PILOSU, 1995, p. 41-42).



Há, portanto, em relação à sexualidade na longa Idade Média, três momentos. Primeiro: a incessante luta do homem contra o próprio corpo, invólucro pecaminoso. Segundo: a mulher como um instrumento do Diabo, e a Igreja considerando-a com mais inclinada à animalidade do que o homem. E terceiro: as ferramentas empregadas pelo poder eclesiástico para tecer a moral sexual, pelos relatos da vida dos santos (hagiografia) lendas, sermões, bulas e demais meios.



O homem medieval, em geral, deve fugir à tentação sexual feminina. Para o santo, a mulher tentadora tanto pode ser o caminho para profanar a sua vida sagrada, como pode ser um meio de ressaltar sua piedade. Enquanto aquela é o conduto somente do mal. A partir do século X houve uma pequena mudança, começou a ser enobrecida pela sua virgindade, tendo sua projeção no arquétipo de Maria, todavia, a mulher nunca deixou de ser a cortesã, a prostituta. Uma imagem ora tentadora e sedutora (Eva), ora idealizada e pura (Maria).



A moral sexual estruturada pela Igreja não se resume ao presente trabalho, contudo, vai mais além, ao ponto de orientar os dias e posições que são propícios ao sexo. Tais detalhes poderão ganhar corpo em uma possível extensão deste breve artigo. Importante ressaltar que a mesma conduta não permaneceu incólume durante toda a Idade Média. Houve momentos de descontinuidade com a beatificação de Maria e a idealização da mulher, antes demonizada, e também de continuidade com a confirmação do mesmo ideal feminino sujeito ao masculino, somado a um olhar oblíquo para o sexo. Em outras palavras, momentos de repressão e momentos de afrouxamento.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:



DUBY, George. Idade média, idade dos homens: do amor e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.



FRANCO JÚNIOR, Hilário. Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1993.



KLAPISCH-ZUBER, Christiane. Masculino/Feminino. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, J. (Orgs.). Dicionário temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006, v. 2, p. 137- 150.



PILOSU, Mário. A mulher, a luxúria e a Igreja na Idade Média. Lisboa: Estampa, 1995.



ROUCHE, Michel. Alta Idade Média Ocidental. In: VEYNE, Paul (org.). História da vida privada, 1: do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 403-532.



ROSSIAUD, Jacques. Sexualidade. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, J. (Orgs.). Dicionário temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006, v. 2, p. 477- 493.





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[1] Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/Assis-SP). Professor Assistente do curso de História da Universidade Federal do Tocantins (UFT/Campus de Porto Nacional).



[2] Pedagogo e discente do curso de História da Universidade Federal do Tocantins (UFT/Campus de Porto Nacional).



[3] Segundo do Dicionário Aurélio, misoginia [Do gr. misogynía.] significa: Desprezo ou aversão às mulheres. A palavra vem do grego misos (μῖσος, "ódio") e gene (γυναίκες, "mulher"). Não se pode afirmar com propriedade se o homem medieval tinha conhecimento deste termo. Mas, foi um adjetivo posto por historiadores devido a conduta moral da época.



[4] Ver Quadro de Francesco Solimena: José e a mulher de Potifar (c.1675). Disponível em: . Acesso em: 09 abr. 2005.



[5] O termo sexo é de origem controversa. Para alguns etimólogos, a palavra vem de sexus. Para outros, porém, vem da forma latina, secare que significa cortar, dividir, ou seja, dividir o gênero humano em duas partes. Disponível em: < http://origemdapalavra.com.br/palavras/sexo/>. Acesso em: 10 mai. 2012.



[6] É importante observar um quadro pintado por Ticiano no século XVI. Ele mostra Adão e Eva em torno da Árvore que Deus proibira. Nota-se Eva tomando o fruto da boca da serpente. Outra obra que merece atenção é a de Albrecht Durer também no século XVI, que enquanto Eva toma o fruto da boca da serpente, esconde outro com a mão esquerda. Igualmente não pode descartar uma obra de Jan Brueghel, o velho, do século XVII, em que pinta Eva entregando o fruto a Adão.














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Manoel Messias Pereira

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