quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Arielismo europeizante e próspero calibanizados em José Marti e Boaventura de Souza Santos: e a Modernização ibero-americana






Arielismo europeizante e prósperos calibanizados em José Martí e Boaventura de Souza Santos: intelectuais e a modernização ibero-americana



por Moisés Wagner Franciscon





Sobre o autor[1]



José Martí expressou as ideias de seu tempo, ou uma nova atuação dos intelectuais ibero-americanos: o combate a elas. Durante um século os países da América Latina haviam procurado por um caminho que os levassem ao desenvolvimento e à consolidação do Estado em suas fronteiras. Quase todos se guiaram pela implementação de modelos externos vindos da Europa ou dos Estados Unidos, mas nem todos, como foi o caso do isolacionismo  e a relativa estabilidade governamental que o país desfrutou  de Francia e da Família Lopez no Paraguai. Porém ele não se inclinava a qualquer um deles. No momento em que Martí perdia a vida em um dos confrontos pela independência cubana, os antigos poderes metropolitanos da América Latina começavam a sofrer do mesmo processo de importação de modelos externos, seguindo os mesmos países considerados como casos de sucesso nas antigas colônias. Uma situação que Boaventura de Souza Santos comentou em seu livro recente (SANTOS, 2009, p. 145). O que era uma preocupação unicamente latino-americana, que dizia respeito apenas a seus problemas, gradativamente também se tornou ibérica[2]. A subordinação econômica secular desses países levou a uma crescente subordinação política, na qual o último ato está a se desenrolar agora, dentro do espaço da União Europeia. O autor utiliza conceitos produzidos pelas correntes pós-colonialistas para tentar explicar esse processo. Também elabora a crítica às correntes mais rigidamente culturalistas, ao acusá-las de omitir la economía política, el poder económico y clasista (SANTOS, 2009, p. 289). Ao analisar dois grandes expoentes do pensamento contrário à importação de modelos externos, que se contrapõe, por exemplo, a um Sarmiento, tentamos reestabelecer as ligações dos intelectuais e o processo de criação de identidades com as condições político-econômicas de sua época. Os personagens de Caliban e Próspero (e menos frequentemente Ariel), da peça A tempestade, de Shakespeare, assumiram as mais diferentes representações nesse processo. Em geral, a rica Europa não ibérica foi apresentado como o soberano náufrago Próspero, já Caliban, o nativo deformado e um joguete com a palavra canibal, foi entendido vez ou outra como o latino-americano, ou com a presença ameaçadora dos Estados Unidos. Ariel é em geral reconhecido como o intelectual, a serviço de Próspero, ou canibalizado, quando procura se vincular às massas.



A América Latina entre movimentos de identidade locais ou ocidentais



Os movimentos nativistas na América Latina do fim do século XVIII foram a primeira expressão das correntes culturais identitárias e nacionalistas  e aconteceram antes mesmo da independência do continente, o que põe em dúvida a afirmação de Fanon de que a cultura de uma nação só pode florescer com a independência política desta (FANON, 2005, p. 121). Os estudos da geologia e da arqueologia, por exemplo, propagados a partir da matriz da cultura ocidental, adquiriram uma conotação própria no continente. Assim o início dos estudos arqueológicos dos astecas pôde servir de base de legitimação do movimento dos grupos que já defendiam uma singularidade da cultura mexicana como diferente e com interesses divergentes dos da metrópole espanhola. As ideias iluministas se espalharam nas colônias, apesar das tentativas metropolitanas de limitar ou impedir a circulação de muitas obras. Havia uma barreira muito clara entre o que poderia ser disseminado na metrópole, onde se apoiava o reformismo econômico e administrativo, e nas colônias, onde o sentido centralizador e de aperto nas relações com a mesma metrópole era sentido, por exemplo, na exclusão crescente dos criollos dos cargos em proveito de chapetones mais confiáveis e diretamente ligados ao centro do poder. O impacto do Iluminismo, ao promover uma agitação cultural como nas metrópoles  por exemplo, publicações locais como revistas de geologia ou de aprimoramentos agrícolas  segundo os modelos europeus, também condicionou essa cultura a uma matriz local e identitária. Assim, o Iluminismo deu apenas cor e ímpeto a um novo estudo e afirmação de si mesma da América espanhola (SCHWARTZ; LOKHART, 2002, p. 400).



Nos últimos anos do século XVIII havia um impulso externo para a rebelião, mas a Revolução Francesa também propôs muitos modelos, de acordo com suas fases. Se havia os defensores da abolição da escravidão, também havia os que defendiam posições contrárias  e em alguns países o fim da escravidão foi alcançado de fato tão tarde quanto 1854, como na Venezuela. A preocupação identitária também foi reforçada com a experiência do sucesso na Guerra de Independência dos EUA e na consolidação de seu Estado após 1783.



De 1810 a 1850 ocorreu a criação e a consolidação dos novos Estados no continente. Até esse momento as fronteiras eram fluídas e a existência dos Estados poderia ser efêmera. O México perdeu metade de seu território ao norte e sofreu a separação da Capitania da Guatemala e de toda a América Central para além da metade da península de Iucatã. Ocorreu a dissolução da República da Grã-Colômbia, das Províncias Unidas do Rio da Prata, da Confederação Peru-Bolívia. A Bolívia esteve ora integrada às Províncias Unidas ora ao Peru. As mudanças de fronteiras continuaram a ocorrer, mas foram menos dramáticas, como o Chaco, Antafogasta, Panamá e o oriente do Equador. A partir de 1850 as oligarquias regionais passariam a controlar mais decididamente suas respectivas nações. O caudilhismo e a luta pelo poder entre caudilhos e seus respectivos séquitos, durante ambos os períodos, foi responsável por um sem-fim de trocas de governo, de regime, de constituições, pela instabilidade política generalizada. Os problemas surgidos com as guerras de independência e caos político, como a crise econômica, favoreceram a perspectiva de importação de modelos europeus. Eles pareciam ser um caminho para estabelecer a ordem desejada pelas oligarquias. Mesmo no Brasil o período é caracterizado pelo repúdio à experiência prática quase presidencialista das regências e os inúmeros conflitos da época, através da substituição destas e do anterior regime de monarquia constitucional por um modelo de parlamentarismo, em boa parte copiado do regime britânico. A busca por esses modelos era geral e motivada também pelo reconhecimento do atraso e dependências estruturais derivados do colonialismo. As escolhas políticas feitas a partir do empurrão das circunstâncias econômico-sociais e seus respectivos resultados práticos se comportam de outra maneira. A Grã-Colômbia foi o país que adotou mais profundamente o liberalismo clássico do século XIX. Porém, a contragosto de seus dirigentes e daqueles que sugeriram a estes tal modelo, a posição que o país ocupava no mundo e o emprego deste modelo econômico liberal e daquela forma prática impediram ou impossibilitavam o alcance da meta desenvolvimentista.



Nenhum lugar liberalizou mais do que a República de Nova Granada (Colômbia) entre 1848 e 1854, mas quem afirmaria que as grandes esperanças de prosperidade de seus chefes de estado foram realizadas imediatamente, se é que foram realizadas? (HOBSBAWM, 1997, p. 53).





As reformas ocidentalizantes e liberalizantes não só não trouxeram o progresso econômico esperado, como também não se serviram a criação de uma verdadeira estabilidade governamental, ou mesmo desencadearam novas ondas de revoltas e crises do Estado. Promoveu a profunda divisão  que acabou passando de fraudes e violência generalizada durante eleições para hostilidades militares abertas e permanentes  entre os campos políticos dos conservadores e dos liberais (ou federalistas e centralistas) em todo o continente. As facções oligárquicas liberais promoveram uma reforma agrária segundo os princípios teóricos e práticos que o liberalismo já havia aplicado na Europa, com a desvinculação dos morgados e o confisco das terras da Igreja para lança-las à especulação e à criação de um mercado fundiário (apesar desse conflito ter sido mais latente na Colômbia e no México do que em outros países, como a Argentina, que conseguiu combinar a liberdade de culto com o reconhecimento do catolicismo). A ideia oficialmente era combater o poder eclesiástico, assumir a postura de um Estado laico moderno e dinamizar a economia (e a arrecadação). Os resultados foram, entretanto, bem diferentes. Tais variações ocorreram por razões que vão desde a falta de uma ampla base anticlerical nas sociedades latino-americanas, até a imutabilidade dos potentados locais e de sua rixa com os setores comerciais e financeiros também desejosos do poder.



Na Colômbia, a guerra civil entre conservadores e liberais estourou em 1854 e, novamente, em 1860, entre federalistas e centralistas e a questão da liberalização da terra. Conflito que seria repetido em 1876, 1885, 1895. No México, a Guerra da Reforma durou três anos (1857-61), e os conservadores derrotados serviram de apoio à próxima etapa dramática da história do país, a invasão franco-austríaca e a implantação do Segundo Império Mexicano  ou até que este se mostrasse com as mesmas disposições dos liberais e os conservadores se alienassem (BETHELL, 1985, p. 139). Em 1859 a guerra entre os dois grupos eclode no Equador e retorna em 1875. Na Argentina, o projeto liberal começou a ser implantado depois da derrubada de Rosas, mas só passou a vingar de fato após a regularização da situação das aduanas e do comércio externo, com a retomada da província separatista de Buenos Aires, em 1859. Na Bolívia, ao lado da guerra civil, o assassinato político também foi uma importante ferramenta prática dessas disputas. A Venezuela não apresentou uma grande era liberal ininterrupta: seus governos eram constituídos de rápidas passagens pelo poder de grupos conservadores ou liberais, que acabavam por se revezar, intercortados pela guerra civil. Entre elas, uma tão demorada quanto 1858-1863, a Guerra Federal (BETHELL, 1985, p. 190).



um caso de estabilidade no mundo hispano-americano, durante a maior parte do século XIX, foi o Paraguai. Após a ditadura perpétua de Gaspar Rodríguez de Francia, terminada com sua morte, surgiu uma junta provisória e dela a presidência de Carlos Antonio López e deste o poder foi transferido sem percalços para seu filho, Francisco Solano López. O custo dessa estabilidade foi um regime autoritário. Custo que José Martí não estaria disposto a aceitar.



A crítica de José Martí



Nesse cenário de conflitos internos e externos que impediam o desenvolvimento econômico, a democracia, a estabilização e a segurança dessas nações, surge a crítica ao ideário ocidentalizador e europeizante que, através dos homens públicos, havia prometido a superação desse mesmo impasse. O retorno do ideal pan-americano e da valorização nacional como forma de se opor à pulverização política, uma balcanização territorial, e a persistência de enclaves coloniais e de um regime político e cultural semicoloniais pode ser encontrado em José Martí. Seu pensamento foi formado nos incessantes conflitos e polêmicas jornalísticas que provocava e em seu conhecimento direto da realidade do continente, por ter vivido ou conhecido muitos lugares do mesmo.



Fez parte da fundação do movimento literário modernista na América Latina. Suas principais obras são Ismaelillo (1882), Versos sencillos (1891), Versos libres, Flores del destierro, El presidio político en Cuba (1871) e Nuestra América (1891). Foi agitador político e revolucionário desde os 15 anos, quando começou a Guerra dos Dez Anos em Cuba, em 1868, que pretendia emancipar a ilha da Espanha. Trabalhou escrevendo no jornal de própria autoria, o Patria Libre, sobre a causa da independência, o nacionalismo cubano, na forma de poemas, sonetos e dramas. Foi preso aos 16. Foi condenado há seis anos no cárcere por traição. Cumpriu parte da pena, até os 18 anos, numa ilha prisão em Cuba. O resto da pena foi comutada em exílio na Espanha, onde poderia terminar os estudos, após jurar lealdade à coroa. Passa a sustentar polêmicas nos jornais com as comunidades de exilados e emigrantes cubanos e espanhóis por onde quer que passe  e que, posteriormente, seriam estendidas também aos governos com que tomava contato. Manteve uma polêmica com o jornal madrileno La Prensa, acusando-o de caluniar a colônia local de emigrados cubanos. Sua primeira experiência com o caráter volúvel de um regime ocorreu na própria Espanha calibanizada. De monarquia passou a monarquia parlamentar. Derrubaram-se os Bourbons e inseriu-se uma nova dinastia, que caiu diante da Guerra dos Dez Anos, das insurreições republicanas e das guerrilhas carlistas e Bourbônicas. A república resultante foi marcada pela consecutiva troca de presidentes militares ou intelectuais. Durou menos de um ano e foi derrubada pela crise geral e pela continuidade daqueles mesmos conflitos. A proclamação da Primeira Republica Espanhola, em 1873, não o fez pensar em parar de defender a separação cubana. Findo o período de exílio, em 1874, acabou se fixando na Cidade do México, onde entrou em conflito com o jornal local da colônia espanhola e contrário a independência cubana, o La Colonia Española. Se envolveu nas lutas políticas nacionais, primeiro com o apoio ao presidente Sebastián Lerdo de Tejada, contra Porfírio Diaz, que acabou assumindo a presidência após a batalha de Tecoac, em 1876 (BELNAP; FERNANDEZ, 1998, p. 73), e em seguida entre o governo local e o governo federal comandado por Porfírio Diaz, ao promover críticas a este nos jornais El Socialista e El Federalista e a se candidatar a delegado do primeiro congresso operário mexicano (BATALLER, 1995, p. 46). Se aproximou dos círculos socialistas e liberais políticos contrários aos porfiristas.



Engajou-se em um maior radicalismo ao emigrar para os EUA e entrar no Comitê Revolucionário Cubano de Nova York. Em 1881 se estabelece na Venezuela, de onde teve que retornar aos EUA após entrar em conflito com o ditador local, Antonio Guzmán Blanco, em decorrência da publicação de seus artigos em apoio ao poeta Cecílio Acosta, nos jornais La Opinión Nacional e Revista Venezolana (BELNAP; FERNANDEZ, 1998, p. 73). Teve contato direto com o caudilhismo e com os mandatários militares e autocráticos durante os seis meses de estadia em Caracas e as relações com um presidente que havia assumido o poder por três vezes: 18701877, 18791884, 18861887, mas eleito uma única vez. Passa a escrever para o La Nación de Buenos Aires e o La Opinion Liberal do México. Serviu também como cônsul para os EUA da Argentina, Paraguai e Uruguai. Entrou em choque com os militares da colônia de emigrados cubanos na Flórida, ao apontar que pretendiam se estabelecer como ditadores após a independência da ilha, bem como com o novo partido autonomista cubano, que pretendia estabelecer uma soberania legal cubana com o respaldo da Espanha, que preferiria manter a ilha ligada de alguma forma, como uma confederação.



Percebeu que logo eclodiria uma guerra entre Espanha e EUA pela posse de Cuba. Se o interesse estadunidense para uma expansão territorial no caribe era clara por suas antigas ligações com a área, desde o comércio colonial triangular e pela declaração de intenção de compra de Cuba pelo presidente Jefferson, antes mesmo da formulação da Doutrina Monroe, no início da década de 1890 ficou claro para Martí que a guerra e a conquista americana não se fariam esperar. A imprensa americana exigia a entrada dos EUA na guerra ao lado dos rebeldes cubanos. Havia uma escalada antiespanhola. As propostas de compra sucediam-se com velocidade maior (os presidentes Buchanan e Grant a fizeram novamente). A influência americana se espalhava pelo Pacífico em direção ao Japão e precisava de territórios para apoiar sua frota e fazer escalas  e as ilhas espanholas do Havaí, Guam, Carolinas, Marianas, além das Filipinas, próximas tanto da China como da Indonésia e de seus estreitos estratégicos, seriam um precioso butim de guerra. Se a sombra da anexação sempre existiu ao menos desde 1823, agora ela era muito mais que isso. Era imediata. Se Cuba não se livrasse prontamente do longínquo e débil controle espanhol, se depararia obrigatoriamente com a proximidade e o forte laço estadunidense, do qual não poderia esperar escapar.



Funda o Partido Revolucionário Cubano, em 1892, com base nos trabalhadores e exilados cubanos nos EUA, em que se torna o dono e editor do jornal do partido, o Patria. Conheceu o poeta nicaraguense Rubén Darío no Novo México. Percebendo que não possuía mais tempo, preparou uma expedição armada, que desembarcou em Cuba em janeiro de 1895 e que pretendia prestar apoio a resistência dos irmãos Maceo. Seu desembarque deu início à Guerra de 1895 ou Guerra Necessária (BELNAP; FERNANDEZ, 1998, p. 101).



Martí via as raízes do ambiente caótico na América Latina como fruto da imposição de modelos externos inviáveis, mas também o caráter jovem, ora apático ora violento e irresponsável da população e da identidade local (MARTÍ, 1991, p. 195). Mas não atribuiu qualquer uma dessas características à raça ou culturas ibéricas, como os norte-americanos o faziam, ao menos desde o presidente Jefferson e sua descrença na capacidade dos latino-americanos de construírem regimes e governos estáveis  pensamento que pode ser estendido a sua matriz ibérica na Europa.



Opõe-se tanto contra um caudilhismo militar, quanto uma meia independência pregada pelos autonomistas, ou ainda a tendência de anexação pelos EUA. Cuba teria que ser inteiramente livre segundo sua própria vontade e realidade. Qualquer presença externa era um ato de imperialismo. Moldar o país segundo fórmulas estrangeiras era tornar irrealistas suas instituições e abrir caminho para o fracasso e queda das mesmas. Não se poderia impor sobre as populações rurais e indígenas da América o direito francês ou as leis estadunidenses, transladados de onde foram constituídos segundo o caráter e realidade de seus povos para uma região totalmente estranha ou avessa a esse mesmo caráter e condições objetivas.



Como Roig apontou (ROIG, 1981, 56), existe uma carga de crítica ao racionalismo produzido na Europa. Martí o considera da mesma espécie que o racionalismo aldeão, presente na população e na elite latino-americana. Seria aquela racionalidade que desconhece o mundo para além de seus horizontes, que em sua forma elitista também é uma visão limitada de mundo, na qual as condições objetivas da América Latina não se encaixam, não tem espaço ou estão eivadas de negatividade. O pensamento aldeão apenas serviu para dividir o continente e mesmo enfraquecer cada nação emergida da fragmentação das colônias espanholas, bem como para preparar o caminho para o avanço estadunidense sobre o território, sem que a América Latina ao menos se apercebesse desse perigo. A dicotomia entre barbárie ou civilização estabelecida por Sarmiento se transforma, segundo Roig, na mais realística cisão entre artificial e natural, ou também poderia ser descrito como entre o mundo da falsa erudição e o da realidade concreta, que vai sendo descrito em seguida como a divisão entre cidade e campo. Ao contrário do Brasil, onde o papel da cidade foi pequeno durante a etapa colonial (HOLANDA, 2005, p. 96), na América hispânica ela já estava lá antes mesmo da chegada dos europeus e acabou adquirindo e conservando, mesmo após a independência, a mesma hierarquia dos tempos coloniais, em que se definia como centro de administração para uma massa indígena rural conquistada.



A imposição da cidade sobre o campo apenas aumentou com a europeização dos filhos da elite, seja nas universidades europeias ou nas universidades hispano-americanas de estrutura e conteúdo europeus. A diferença entre Europa e América e do pensamento modernizante/europeizante da elite e a realidade da população nativa voltou a se intensificar, pois ambos ficaram mais próximos. Era evidente a diferença da visão daqueles que estudaram no exterior, imersos num mundo que não pretendem entender mas sim fazer seguir suas ordens e leis aprendidas segundo os modelos externos, com a população. Eram como os homens que se vestem de dragonas e togas e que vivem em meio a um povo que veste alpargatas e fitas na cabeça (MARTÍ, 1991, p. 198). Ou como Argumedo indica (ARGUMEDO, 2004, p. 26), logo após uma consolidação mínima dos Estados e uma quase definição das fronteiras, as oligarquias puderam se assentar sem tanto medo de novas revoltas e deposições feitas em nome de um caudilho tempestuoso ou de alguma região turbulenta, e a participar da expansão imperialista e da divisão internacional do trabalho, em que teriam o controle local, através da incorporação das suas economias, sociedades e leis à modernidade.



O advogado Martí lembra o quanto foi danosa essa tentativa de impor modelos estrangeiros e acreditar que eles funcionariam por si só, moldando a população ou servindo apenas a partes especificas dessa mesma população, ou que tudo poderia ser resolvido através de um canetaço que seguisse os mesmos preceitos dos decretos americanos ou franceses. Assim se procura implantar um modelo como o de Hamilton para a indústria, ou do liberalismo inglês para as mais diversas esferas econômicas e políticas do país, ou se pretende uma presidência de tipo francesa, com amplos poderes, no entanto liberal, sem que se obtenha qualquer resultado exceto um mau governo, o descontentamento e a revolta popular e caudilhesca, pois a massa inculta é preguiçosa e tímida nas coisas da inteligência, e quer ser bem governada; mas se o governo a fere, sacode-o e então governa (MARTÍ, 1991, p. 196). Para evitar as guerras civis, as ditaduras, a ascensão dos caudilhos e a constante instabilidade política, era necessário compreender o país e saber o que de fato ele necessita e o que de fato é aplicável e que funcione segundo essa realidade imanente. As leis devem ser constituídas segundo o povo e não segundo a consulta dos manuais de direito napoleônicos. Deve ser, portanto, algo original, que seja um reflexo do próprio povo e o abarque por inteiro, ter raízes latinas. Sua oposição aberta aos arielistas ocidentalizantes, aos intelectuais adeptos da modernização em programas externos, entretanto, não pode negar a experiência de um local em que essas medidas tiveram um impacto no sentido contrário ao do resto do continente: a Argentina. O fim do caudilhismo regional e da alienação das províncias e de seus mandatários foram alguns dos resultados da implementação dessas políticas. Ao mesmo tempo Martí se tornou precursor de uma outra corrente de arielistas  nacionalistas, aqueles que passaram a identificar os EUA como uma ameaça política e cultural ao continente latino-americano, como Rodó. Retamar, entretanto, não tem dúvidas em coloca-lo como um símbolo primeiro dos autores calibans (RETAMAR, 2004, p. 138).



O modernismo literário abria o caminho para um novo nacionalismo e a rejeição a copia dos modelos estrangeiros, repúdio a vergonha das origens e passado indígena e colonial sentido pelas elites latino-americanas, o tom negativo sobre o próprio país, a busca mesmo pela dominação intelectual ou mesmo direta das potências externas, como os EUA ou a Franca. Para isso, a própria elite latina teria que encontrar um novo caminho, para além das rixas entre conservadores e liberais, entre tradicionalistas e anticlericais, que nos anos 1850 haviam levado à guerra civil em boa parte do continente, e serviram mesmo de estopim para a formação do império de Maximiliano I. Para Martí, tanto uns como outros pretendem a implantação de instituições alheias à realidade e que não funcionarão, levando a um novo ciclo de lutas fratricidas, que não é nada mais que o fruto da inadequação das leis exóticas impostas às reais necessidades do povo latino.



A elite política conhece a arte política e o funcionamento das instituições de Estado segundo seus estudos na Europa ou em centros europeizantes, mas desconhecem não só como fazer política com os potentados locais, naturais, com quem terão que tratar, mas desconhecem o seu próprio país. Governo nenhum sob essas condições será um governo benéfico e estável  trará sobre si novamente a sina da derrubada dos regimes. O que se deve buscar para criar uma classe dirigente com o mínimo de condições de governo e administração é criar universidades locais e que ensinem as técnicas locais, o conhecimento político prático, uma arte política de agir segundo as circunstâncias locais  e não de querer impor qualquer vontade a elas, atendendo a agentes político-sociais autóctones. Esse seria o caminho de um bom governo. Nessa busca pelo que é típico e funcional na população do continente, ele reconhece, por exemplo, a influência da religião, que tanto provocou crises 40 anos antes (mesmo sendo ele ligado a posições liberais e socialistas), a mestiçagem, a não homogeneização da população, dividida em muitos grupos às vezes hostis uns aos outros  que tem que ser reconhecida e tratada diante dessa situação.



Por mais profundas que foram as medidas para a modernização na América Latina segundo padrões externos, com a exceção talvez da Argentina, em que até uma substituição populacional foi praticada, elas nunca foram tão radicais na vida cotidiana como as adotadas na Prússia, na Áustria ou na Rússia. Mesmo que a liberalização da terra para o mercado especulativo fundiário tenha-se dado através da expropriação da Igreja e dos morgados, com a erupção de guerras civis, nunca foram implantadas leis para obrigar cada habitante do país a se comportar como cidadãos das potências ocidentais, como as ordenações de conduta formuladas por Pedro I ou Frederico II, ou as normas para os enterros de José II. Além da não existência formal e mais ainda real de um poder absoluto como o dos monarcas da Europa Central e Oriental, também pode ser arrolado como explicação o desenvolvimento do ideário liberal da viragem do século XVIII para o XIX e a falta de interesse ou reconhecimento da população comum como objeto da reforma. Eram, em boa parte, índios, que ainda eram vistos como uma população conquistada, ou de mestiços degenerados. Não havia um motivo para intervir em seu cotidiano. E não havia esperança de que a educação poderia melhora-los, uma vez que não eram europeus, como fica expresso pelo ideal elitista de alguns intelectuais latino-americanos, como o também político Juan Alberdi (ROIG, 1981, p. 30-31), que faziam voz às mesmas tendências posteriormente defendidas por Ernest Renan (RENAN, 1878).



Boaventura Santos: Portugal e Espanha como Próspero calibanizado ou o Caliban da Europa



Os países da Península Ibérica passaram a desempenhar um papel subalterno e crescentemente dependente no cenário europeu e do sistema capitalista a partir da restauração da independência portuguesa, em 1640, e do fim da Guerra dos Trinta anos e a consequente derrota da Espanha (que, inclusive, para ela foram 80 anos ruinosos desde o início dos conflitos nos Países Baixos). A situação era muito mais dramática para Portugal, sem exército constituído, sem marinha mercante ou de guerra (que em parte já havia sido destruída tão cedo quanto 1588 e a derrota da Invencível Armada de Felipe II), sem finanças devidamente estabelecidas, com antigos aliados tornados inimigos e que praticavam a pirataria ou a conquista em suas antigas colônias ou o que havia sobrado de seu império comercial asiático do século XVI. Tornou-se necessário transformar os antigos tratados de aliança com a Inglaterra numa verdadeira cadeia de dependência, tanto econômica como política e militar (NOVAIS, 1989, p. 20-23).



Para a Espanha, essa situação de perda de ricos territórios comerciais estrategicamente posicionados na foz dos afluentes do Reno, e que se constituiriam nas Províncias Unidas, com a Paz de Westfalia, se agravaria mais ainda com o fim da Guerra de Sucessão Espanhola e da conquista do trono por uma dinastia até o momento rival, que significou a cisão dos domínios europeus com a Casa da Áustria, o fim da aliança com esta e a perda de territórios importantes e de reivindicação secular como o Milanês, Nápoles, Sicília, Sardenha e os Países Baixos, além de outros tradicionalmente dentro das fronteiras da própria nação, como Gibraltar e Minorca, de vital importância para o controle e vigilância do Mediterrâneo, entregues para a Inglaterra, com o Tratado de Utrecht (KENNEDY, 1989, p. 109). A possibilidade de um Mediterrâneo primeiramente catalão e posteriormente espanhol, foi totalmente enterrada em 1713.



As Reformas Bourbônicas se deram como reação à fraqueza do império espanhol dos Habsburgos e o ideário empregado não estava em atraso ao seu uso no resto do continente e nem admitido com um sentimento de inferioridade ou atraso à sua adoção em outros países. Como estes, os Bourbons espanhóis modificavam ou inseriam o programa reformador iluminista de acordo com suas necessidades e interesses. Assim pode-se explicar a defesa do livre comércio como a abertura de mais portos aos negócios com a metrópole, e a perda do estatuto de Cádiz frente a outras cidades portuárias do território metropolitano, mas não na abertura dos portos ao tráfico direto com outras nações (SCHWARTZ; LOCKHART, 2002, p. 419). Também se deram pelo próprio reconhecimento da nova realidade do derecho de asiento no comércio de escravos imposto pela Inglaterra vitoriosa.



Em 1765, quando José II assumiu o controle do Sacro Império junto à sua mãe Maria Teresa, a Espanha já havia implementado suas reformas. Ou quando Catarina II matou seu marido Pedro III e passou a dominar sozinha a coroa do Império Russo, em 1762. Ou mesmo quanto a Frederico II, rei da Prússia a partir de 1772. Na realidade, os primeiros países europeus a tornar realidade parte dos preceitos liberais dos filósofos do século XVIII foram os ibéricos. Em Portugal as reformas começaram cedo também, com a nomeação do Marques de Pombal para o cargo de ministro de José II ainda em 1750. Os monarcas mais reconhecidos como déspotas esclarecidos ou iluminados não foram os que deram o impulso inicial. Porém esta postura dos países ibéricos, e da Espanha principalmente, é também um reconhecimento de sua degradação. A Espanha não estava mais no mesmo nível que França ou Inglaterra ou mesmo com o propósito, quanto mais à possibilidade, de subjugar, controlar ou invadir essas potências, como Felipe II. Ela havia se dado conta de que era impossível enfrentar qualquer uma das duas grandes potências europeias sem fazer parte de uma ampla coalizão. Como foi o caso da sua união com a França, a Holanda e os rebeldes das Treze Colônias, como forma de derrotar a Inglaterra e recuperar territórios perdidos na Guerra dos Sete Anos (KENNEDY, 1989, p. 114). De um poder de primeiro plano, a Espanha passava a ser uma potência secundária, junto aos países que adotaram as reformas. Estas seguiram um rumo diferente na Inglaterra  com o aperto sobre o comércio e as liberdades tradicionais das Treze Colônias e o novo papel de coletora de impostos na Índia, e na França  onde foram abortadas com o fracasso da política econômica e dos negócios financeiros de Law, tão cedo quanto 1727.



A Espanha já era um país com uma relativa proeminência no cenário europeu antes mesmo da unificação total do território. Já reivindicava direitos de soberania tanto no norte quanto no sul da Península Itálica muito antes da descoberta da América e do afluxo de seus metais preciosos. Mas e Portugal? Teria tomado uma posição dependente a partir de quando? Talvez a situação subordinada do país possa ser recuada até sua origem, durante as Cruzadas. Don Afonso Henriques teve que recorrer a negociações com os cruzados vindos do nordeste do continente, principalmente da Inglaterra, para que Lisboa pudesse ser conquistada em 1147. A independência do país foi novamente assegurada pela presença dos aliados ingleses na Batalha de Aljubarrota, em 1385, apesar de que, este conflito em especial também foi, além de uma disputa pela sucessão do trono português, um desdobramento da Guerra dos Cem Anos. Com arqueiros ingleses lutando pelo lado português e a cavalaria francesa pelo lado espanhol, com um desfecho bem condizente com Agincourt, travada 30 anos depois, repetindo os desafios da cavalaria frente aos besteiros, os novos arcos, as armas de fogo e a infantaria da era da pólvora (KEEGAN, 2006, p. 62). Porém, se os primeiros séculos de Portugal foram de uma posição marginal, não o foram os séculos XV e XVI.



A decadência da Espanha enquanto Próspero foi muito mais rápida que a de Portugal. Os restos de seu império colonial foram perdidos a partir do fim do século XIX. Ambos os países ibéricos haviam fracassado nas tentativas de conquista do Sultanato do Marrocos, e por volta de 1900 a Espanha foi reduzida às suas colônias do Saara Espanhol e da Guiné Espanhola, territórios sem expressão. Ceuta e Melila são considerados hoje como enclaves pertencentes ao próprio território nacional espanhol e não como colônias. O império colonial português manteve seu caráter global até os anos 60, quando perdeu o Timor Leste, invadido pela Indonésia, e as cidades de Goa, Damão e Diu na Índia, ocupadas pelo exército indiano. Na década seguinte seu império na África, que perdia em extensão apenas para o francês e o inglês, se emancipou após a Guerra de Ultramar. Mas suas possessões territoriais conheceram uma sobrevida até 1999, quando da entrega de Macau à China.



Boaventura Santos aponta o papel econômico desempenhado por Portugal no sistema mundial como o fator fundamental de sua posição subordinada e intermediária entre centro e periferia do mesmo sistema (SANTOS, 2009, p. 269). E sem dúvida o foi mesmo, ao preparar a falta das condições necessárias para manter seu exclusivo comercial, auferir os maiores lucros, manterem-se competitivos no cenário europeu, legitimar seu papel diante dos colonos como algo além de atravessadores e proteger suas possessões. Além do modelo de mercantilismo metalista ruinoso em longo prazo adotado pela Espanha (mas que foi capaz de garantir a rolagem da dívida estratosférica de Carlos V e Felipe II e seus tercios militares sobre uma parte considerável da Europa), pode-se mencionar também os resultados das políticas estratégicas portuguesas para o Oriente  em que teve que arcar com o frete através de dois oceanos, o estabelecimento de feitorias e fortalezas para garantir o acesso marítimo e proteger a frota por todo o Índico em meio a inimigos poderosos e a dependência financeira dos banqueiros flamengos e das posições dos negociantes brabantinos para atingir o comércio no interior do continente europeu  onde se encontravam os maiores lucros (NOVAIS, 1989, p. 74). Porém a sujeição diplomática e política tornava essa relação dependente e de semiperiferia ou semicentro ainda mais visível (SANTOS, 2009, p. 269-270).



A dependência para a comercialização final dos produtos coloniais só se agravou com a fixação da cotação padrão da arroba de açúcar segundo a bolsa de Londres. Também ocorreu o mesmo movimento na outra ponta: a da produção de mercadorias destinadas aos colonos e o meio de transferir a produção de commodities da periferia para a Europa. Anteriormente, Portugal possuía vários mercados onde poderia buscar esses produtos: porcelana e seda chinesas, bugigangas e roupas indianas. Mas a partir do fim do século XVIII havia um único empório, uma oficina do mundo, onde esses produtos poderiam ser adquiridos por um valor vantajoso que viabilizasse o comércio colonial. A diferença de tempo entre a perda da soberania econômica e a subordinação política pode se alargar e durar muitas décadas, como a decadência do Império Otomano, ou um prazo mais curto, como a da Rússia, emergida da periferia do sistema mundial após as Guerras Napoleônicas para retornar a ela poucos anos após regressar ao seu status de fornecedora de matérias-primas. O caminho contrário também é válido.



A noção do fracasso colonizador só surgiu no século XIX. Ainda no século XVI, manter territórios tão extensos a salvo das investidas de outros países não poderia ser considerado de forma alguma um fracasso. Apesar das perdas territoriais, boa parte do império global português atravessou os períodos mais críticos de instabilidade política originados com a crise hegemônica no continente (NOVAIS, 1989, p. 49). Às vezes o sucesso da colonização das demais potências europeias esteve ligado ao abandono consciente do território por parte das nações ibéricas, como sucedeu-se no Haiti, com a retirada da população da região para o que é hoje a República Dominicana. Foi a forma encontrada pela coroa de impedir o contato dos colonos com o contrabando dos piratas franceses  que puderam então se assenhorar do que é hoje o Haiti. Ou então o caso de Curaçao, onde a população foi igualmente removida para Hispaniola ou para o continente, deixando a área com um vazio populacional. Apenas na segunda metade do século XVIII e, principalmente, no século XIX, as potências europeias puderam se introduzir em territórios ainda não desbravados por nenhum mercador ou conquistador ibérico. Países que antes pareciam fortes demais para que os europeus pudessem pensar em qualquer outra relação que não a da aliança e da permissão de estabelecimento de feitorias (KENNEDY, 1989, p. 35) acabaram sendo conquistados, divididos diretamente ou sofreram forte pressão política e militar, constituindo áreas de influência disputadas por outras potências ou reguladas por meio de tratados, como a Pérsia ou a China. A incapacidade das antigas potências ibéricas de participar ativamente da nova partilha do mundo  apesar de manterem feitorias na região, como os enclaves indianos de Portugal, que não foram expandidos apesar dos ingleses liderados por Clive baterem tanto os marajás como os franceses em sua penetração para o interior da península  evidenciou sua fraqueza. No século XIX, a derrota de Portugal enquanto país com capacidade colonial veio pelas mãos da diplomacia, na Conferência de Berlim. Seus planos de uma África Portuguesa do Atlântico ao Índico (o que incluiria além dos territórios de Angola e Moçambique a quase totalidade da Zâmbia e do Zimbábue), contidos no Plano Cor-de-Rosa, entraram em choque direto com o projeto inglês de uma África britânica da foz do Nilo no Mediterrâneo ao Cabo da Boa Esperança e dos lobbys que o apoiavam, como o de Cecil Rhodes e a ferrovia transafricana. Por fim Portugal perdeu o controle sobre a foz do Congo (entregue ao Congo Belga) e do Zambeze, bem como territórios com presença portuguesa, mas que deveriam passar para o controle inglês.



De maneira similar, o sentimento interno de inferioridade frente ao centro do sistema só se assentou definitivamente nos países ibéricos no século XIX, quando a elite intelectual percebeu como sinal do profundo atraso do país as abolições de instituições que permaneceram inalteradas, apesar das reformas Bourbônicas, pelos invasores franceses e o governo de José Bonaparte na Espanha, e em Portugal pelo afluxo da influência dos afrancesados (TENGARRINHA, 2000, p. 265). Como a Inquisição, e que, com exceção do paralelo luterano dos tribunais civis na Suécia, já era algo do passado do continente, mas ainda atuante na Espanha, onde também ainda não havia uma nítida separação entre pecado e crime nos códigos penais. Em Portugal, as reformas pombalinas destinadas a dar vigor à economia metropolitana através da criação de manufaturas, tratavam-se de uma resposta a esse sentimento de inferioridade colonial (NOVAIS, 1989, p. 223-224) e ao papel de mediador entre periferia e o centro do sistema, do qual não participava, e que estabelecia que outros países detinham a produção das mercadorias comercializadas com os colonos através de seu império global. O modelo português, porém, não vingou. Foi rapidamente desmontado com a chegada ao trono de Dona Maria e com os novos tratados com a Inglaterra após 1808. Um padrão de modernização com empresas criadas e dirigidas diretamente pelo Estado, como na Rússia de Pedro I, teria sido uma alternativa? Apenas na medida em que fosse capaz de não tornar o contrabando tão atraente.



Para a Espanha, o ponto mais baixo no papel de semiperiferia talvez tenha sido a forma pela qual o fascismo foi adotado. Mais do que uma etapa da implementação do regime fascista através da Europa, ou como uma força global sincrônica, do militarismo japonês à ascensão de Hitler ao poder, o comportamento da Espanha foi mais parecido ao de uma colônia disputada por potências externas, como a China imperial  a participação direta da Alemanha e da Itália de um lado, e da URSS e das brigadas internacionais (com o interesse inglês e francês pelo caso não se traduzindo em intervenção direta) por outro. No entanto, o momento em que a procura por modelos externos mais se assemelhou a busca praticada por suas ex-colônias americanas, talvez tenha sido o processo de redemocratização e os intentos de assimilação com a Comunidade Econômica Europeia, nos anos 70 e 80.



Já o momento mais dramático nessa busca foi representado pela Revolução dos Cravos em Portugal. O país se mostrou dividido quanto ao seu futuro, ao menos tanto quanto na proclamação da república em 1910. Mas as opções de modelos a serem adotados eram muito mais significativas. A antiga metrópole se viu nas mesmas condições que suas colônias que estavam obtendo formalmente a independência se encontravam, com uma confrontação pelas próprias fundações do Estado e da vida econômica e social postas na mesa, diante dos grupos socialistas, liberais e conservadores (HOBSBAWM, 2001, p. 83).



Boaventura escreve em 2009 e deixa bem claro seu tom pessimista sobre o papel da península na União Europeia, destinada a ser tratada como o primo pobre, em sua sina de Caliban da Europa, apesar de seus momentos de Próspero (SANTOS, 2009, p. 317-318). É provável que ele já estivesse seguindo a tendência do recrudescimento desse tratamento, como um novo ato em que o status de semiperiferia está prestes a ser reforçado de maneira profunda e pública mais uma vez. As privatizações da nova esquerda socialista de Gonzáles, ou da recente gestão de Zapatero, calcadas na cópia do novo programa socialdemocrata europeu desenvolvido após as derrotas eleitorais do início dos anos 80, com a assimilação do neoliberalismo e o abandono da bandeira da igualdade social, parecem não ser suficientes. A própria política interna, a soberania sobre o orçamento e as diretrizes econômicas são ameaçadas pela ingerência das três grandes potências que comandam a zona do Euro, ou ao menos a União Europeia (uma vez que a Inglaterra não adotou a moeda comum), que devem ser sacrificadas pela obediência aos banqueiros e financistas do continente. Em todas as outras etapas do papel subalterno desses países, eles sempre foram obrigados a abandonar posições externas, como as colônias portuguesas no Malauí ou na Zâmbia que foram retiradas para a afirmação do controle britânico na região, mas até o momento, não posições internas. Esse novo passo pode aproximar ainda mais a história comum de dependência das ex-metrópoles com suas ex-colônias, como a de um México obrigado a fazer concessões durante a crise de 1998. As esperanças vendidas para a população de ser parte do centro mundial se mostram enganadoras, com ambas as nações cada vez mais desempenhando o papel de países do Terceiro Mundo.



O processo de calibanização de um Próspero malsucedido pode ter outras aplicações além do status semiperiférico das ex-metrópoles ibéricas e de sua exploração ou papel avassalado dentro da União Europeia (SANTOS, 2009, p. 273; 290-294): as grandes potências coloniais do século XIX, França e Inglaterra, não deixaram de ser calibanizadas também, mesmo pertencendo ao centro do sistema mundo, na medida em que algumas regiões passaram a ter uma importante composição populacional de ex-súditos das antigas colônias, como de caribenhos na cosmopolita Londres ou de argelinos na Riviera Francesa.



Ambas as reformas ibéricas no século XVIII destinavam-se a reforçar os elos entre metrópole e colônias, torná-las mais dependentes de suas respectivas coroas e não de outras potências coloniais em ascensão. Companhias de comércio que controlavam tanto a compra dos produtos coloniais como a venda das mercadorias necessárias aos colonos, ao lado da intenção de dinamizar a produção (ou os lucros dos monopólios e impostos reais), possuíam ainda o beneficio de impedir a pirataria, ao impor um controle e fiscalização sobre o que os colonos estavam consumindo, com o atrelamento de suas compras junto com as suas vendas para a companhia (TENGARRINHA, 2000, p. 152).



A cópia de um modelo externo modernizante alternativo ao liberal



Durante o século XX existiram outros dois modelos surgidos fora do continente latino-americano e com uma boa aceitação em outros lugares. O Estado de Bem Estar Social nunca chegou a ser seriamente um caminho no continente, apesar da adoção de alguma rede mínima de seguridade social. O keynesianismo a ele ligado teve uma aceitação muito maior, com a forte ingerência do Estado para promover a modernização econômica. O outro modelo, com algumas características em comum com o primeiro, até mesmo pela atenção que este gerou nos economistas dos anos 30 como alternativa para um liberalismo falido e desacreditado, foi o comunismo e o socialismo (durante a virada da década de 30, que conheceu a queda de quase todos os governos latino-americanos, outros projetos externos também foram adotados, embora com vida curta, como influências mistas do retorno ou reafirmação de um positivismo autoritário e do liberalismo spenceriano sem sua contrapartida econômica convulsionada, e do fascismo). Sua experiência no continente, ou pelo menos a aproximação com algumas políticas socialistas, abarcou o Chile, Nicarágua, Granada, a Jamaica do Partido Trabalhista Jamaicano, a Guatemala de Arbenz, Cuba, além de vários outros países em que guerrilhas possuíam alguma chance real de chegar ao poder nos anos 80.



O cubano Retamar é um autor calibanizado que não deixa de ser, ao mesmo, um arielista modernizante, arauto de um novo modelo externo, com forte apelo dos anos 50 aos 80 (da mesma forma que também pode ser considerado como arielista em decorrência de seu apoio ao Estado). Modelo porém carregado com matizes independentes e originais, como obrigatoriamente teriam que ser após o relatório secreto de Kruschev, no XX Congresso do PCUS, em 1956, e uma crítica velada à presença do monólito partidário e da cópia da experiência precursora da URSS inclusive no território dos países aliados ou adeptos do modelo comunista, de maneira imposta ou aderida. Como foi a questão levantada entre Kruschev e Mao e a insistência em repetir o modelo de coletivização stalinista com o Grande Salto Avante. Mesmo algumas ideias trotskistas para contornar a burocracia ou industrializar Cuba de uma maneira menos voluntarista, centralizada e cheia de percalços e desiquilíbrios como na União Soviética, chegaram a ser debatidas entre os líderes da revolução  apesar de não terem sido implantadas. Essa não era a percepção que Cesaire, outro intelectual latino-americano, possuía da adoção desse modelo alguns anos antes de 1956. Essa mudança na terminologia empregada antes e depois de Kruschev se reflete muito bem em seus textos e os de seu discípulo, Fanon, com a passagem do anticapitalismo para o anti-imperialismo, do capital moral da luta contra a burguesia para o da luta contra a exploração neocolonial e pela liberdade do Terceiro Mundo, que seria um discurso de suma importância para Cuba e para o Departamento Internacional da URSS, dos anos 60 até o início dos 80, capitanearem a luta anticolonial.



Boaventura Santos poderia ser abordado pelos mais diferentes aspectos e conceitos. Mas para confrontá-lo com Martí sua ideia mais importante é a posição ora de semicentro ora de semiperiferia dos países ibéricos. Mesmo nessa discussão o tema ainda poderia ser abrangido para o sentimento de calibanização dos próprios cidadãos metropolitanos ou da elite colonial diante da massa popular, como Boaventura se ocupa em boa parte do texto.



Mais do que de modelos importados, Boaventura fala sobre a dependência. Mais que ocasional ou mutável, se mostra sistêmica e profunda. Mais do que recente, ele a faz retroagir até logo após o fim das Grandes Navegações, da expansão ibérica seguida imediatamente pela crise e decadência econômica e política.



Referências Bibliográficas



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[1] Mestrando em História pela Universidade Estadual de Maringá.



[2] Além é claro, de todos os países que emergiam do colonialismo como nações independentes, no pós-Segunda Guerra, ou nações que sofriam o impacto do imperialismo  como o Japão  ou que se viam em um processo de distanciamento do desenvolvimento europeu  como os países do centro e leste do continente testemunham, ao trocar o modelo fascista pelo soviético e este pelo neoliberal (HOBSBAWM, 1998, p. 15). Entretanto, esse processo global iniciou-se com a primeira onda de independências vinculadas à história ocidental, à emancipação latino-americana. O projeto de modernização dos Bourbons espanhóis, iniciado décadas antes, ou dos déspotas esclarecidos, referem-se às nações já emancipadas, mas em declínio relativo (KENNEDY, 1989, p. 96) ou ânsia de ocidentalização.

















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Manoel Messias Pereira

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