domingo, 29 de dezembro de 2013

Moça Educada, Mulher Civilizada, Esposa Feliz: Relações de Gênero e História em José de Alencar




Moça Educada, Mulher Civilizada, Esposa Feliz: Relações de Gênero e História em José de Alencar

por Aline Pereira da Silva

SOARES, Ana Carolina. Moça Educada, Mulher Civilizada, Esposa Feliz: Relações de Gênero e História em José de Alencar. Bauru, SP: Edusc, 2012.

Sobre o autor[1]

"Estamos todos implicados e presentes em nossas relações de olhar o passado."

Ana Carolina Soares

A historiadora Ana Carolina Soares tem se dedicado há alguns anos a analisar a importância das produções literárias na sociedade do Rio de Janeiro, em meados do século XIX, principalmente as advindas de enredo ilustrativo e moralizante, como é o caso da vasta literatura de José de Alencar, que é explorada pela historiadora. Suas pesquisas baseiam-se nas representações de mulheres oitocentistas, e envolvem também temas como gênero, literatura, cultura, família e imprensa.

Este livro, resultado da dissertação de mestrado da autora, tem como tema uma pesquisa sobre as mulheres urbanas da capital do império brasileiro, no século XIX, vistas pelas lentes da literatura de José de Alencar e da imprensa feminina da época, dois meios cujo interesse principal era instruir as mulheres da "boa sociedade" carioca, determinando quais comportamentos deveriam ser seguidos para atingir plenamente o ideal então concebido para a mulher: a felicidade conjugal e a harmonia na família.

Dividida em quatro capítulos que se distribuem ao longo de 198 páginas, a obra faz uma reflexão de gênero e situa contornos civilizatórios sobre a produção alencariana e os jornais da época. Soares usa como fontes primárias as seguintes produções de Alencar: Lucíola (1862), Diva (1864) e Senhora (1875) e, para complementar o conjunto de referências que, segundo a autora, instituem um discurso "pedagogizante", foram utilizados dois jornais, a saber: Jornal das Famílias e Jornal das Senhoras. A ideia central da pesquisadora ao investigar essas fontes é compreender a finalidade da existência de conteúdos educativos para o casamento e o comportamento feminino de modo geral. Partindo disso, a autora considera que esses escritos eram uma tentativa de instruir suas leitoras fornecendo-lhes modelos exemplares de feminilidade.

Uma das dificuldades mencionadas pela autora é o fato de a literatura ter sido considerada, durante séculos, uma fonte secundária, desprezada pela historiografia tradicional, justamente por ser encarada como produto de pura ficção, dificultando, assim, a compreensão e aproximação da realidade que se pretendesse analisar. Entretanto, Soares deixa claro, para reforçar o propósito de seu estudo e relembrando a incorporação de ideias sugeridas pela nova História, graças a qual a literatura ganhou espaço como fonte histórica, que a literatura contém elementos de seu tempo e que nenhuma obra nasce fora do contexto de seu criador e está intrinsecamente relacionada ao período histórico de seu autor.

A questão da literatura como fonte torna-se, então, imprescindível para a realização desta pesquisa, que agrega e detalha informações que confirmam a importância da contribuição literária aliada à realidade social para compreender o contexto, as mentalidades e os desejos da época.

As obras estudadas se inserem no período pós-independência, em meados do século XIX, época posterior à fixação da família imperial portuguesa no território brasileiro, período fortemente marcado pelo viés nacionalista, caracterizado pela preocupação de intelectuais em delinear novos hábitos e tradições para os cidadãos do Brasil Imperial. Em resposta às novas necessidades advindas da presença da corte, configuraram-se, na elite, novos hábitos de sociabilidade, como os encontros em saraus, bailes, livrarias e passeios ao ar livre, levando, assim, à criação de normas de etiqueta para os sexos, conformando o lugar de cada um nas novas situações públicas. Convém lembrar que essas concepções também eram influenciadas pelo modelo de apogeu civilizatório: a civilização europeia, em especial o modelo francês de sociedade. O cenário das obras concentra-se na cidade no Rio de Janeiro, local que tanto se modificou, seus personagens são famílias abastadas e as ledoras dos escritos, tanto dos romances como dos jornais, seriam predominantemente as mulheres da elite carioca.

Inicialmente, a autora apresenta José de Alencar, o escritor dos romances, defendendo a ideia de que suas obras evidenciam uma percepção pessoal de realidade, baseada no momento histórico contemporâneo ao autor. Alencar, nascido no Ceará, filho de político atuante, foi político, escritor e cronista. Desde cedo foi deslumbrado por literatura, inspirando-se também em autores consagrados como Victor Hugo, Byron e Lamartine. Fato interessante lhe ocorreu aos 11 anos de idade, quando era o ledor oficial de sua casa, atividade que o fez presenciar cenas de comoção por parte do público, experiência que o marcou intensamente. Soares sustenta que talvez esse fato tenha feito com que ele percebesse a profundidade atingida por um romance, criação capaz de criar intimidade com o leitor (p.43). Se com a literatura o escritor obteve muito sucesso, o mesmo não ocorreu em sua carreira política, entrando inclusive em conflitos com D. Pedro. Nas palavras da própria pesquisadora, como político Alencar foi um excelente escritor (p.48).

A primeira obra analisada, Lucíola, romance publicado em 1862 e cuja protagonista é Lúcia, possui caráter moralizante. A jovem Maria da Glória (nome de batismo de Lúcia), depois de ver sua família atingida pela febre amarela, em 1850, encontra na prostituição um meio de renda para ajudá-la a se reerguer. Consumadas as primeiras investidas, Lúcia é expulsa de casa. No decorrer da trama ela conhece Paulo, seu herói (a figura masculina é geralmente concebida como salvadora, redentora do "sexo frágil"), e através dele ela alcança a redenção. A personagem desta mulher caracteriza-se como uma "Madalena arrependida", que abandona o passado e se contenta com os afazeres domésticos. No enredo, Lúcia morre ao dar à luz uma criança, cena que configura a intenção de postular que um corpo impuro, prostituído, não pode ser ungido com a benção divina de um filho (p. 78). Felicidade e prostituição são incompatíveis, segundo Alencar, e se alguma leitora tinha em mente entregar-se aos prazeres do mundo na esperança de alcançar o resgate com o casamento, deve ter concluído que não existia essa possibilidade. Nesse romance destaca-se também a construção igualmente de caráter instrutivo, pedagógico - dos lugares frequentados, já que nos espaços públicos era viável que as mulheres estivessem acompanhadas por figuras masculinas, para não serem confundidas com mulheres indesejadas, juntando a isso o fato de que os locais urbanos eram considerados desviantes, tendo sido necessário, para o convertimento de Lúcia, a mudança para Santa Teresa, local considerado residência de boas famílias.

Emília, personagem do segundo romance analisado, Diva, de 1864, é, em oposição a Lúcia, totalmente pudica. Nota-se a preocupação persistente de Alencar, em suas obras, de delinear perfis masculinos e femininos. Considerada mal-humorada e nervosa, Emília repudia o médico Amaral, homem sensato e experiente, que outrora cuidou de sua saúde. No final do romance, ela acaba conquistada pelo dominador, cai em si sobre suas atitudes infantis, e compreende que somente um marido poderia dar sentido a sua existência. Pede então desculpas e se arrasta para que Amaral a aceite como esposa. O codinome Diva (que se deve à beleza da personagem) era a combinação de mulher civilizada e da última moda. Não bastava o recato, já que as mulheres, segundo a ótica da época, presente na literatura alencariana, deviam obediência ao homem e evitar o comportamento expresso inicialmente por Emília, pois ele resultaria em infortúnio. Seguindo seu exemplo, as mulheres alcançariam a felicidade plena.

A terceira obra, Senhora, tinha como objetivo fazer com que as leitoras aprendessem características do casamento perfeito. O personagem central é masculino, Seixas, homem atingido pelo mal da sociedade do segundo reinado: o espírito de consumismo. No passado, Aurélia havia sido seduzida por Seixas, enriqueceu e sua vingança consiste em comprar o casamento, aproveitando-se da condição econômica inferior de Seixas. Assim como Lúcia, Aurélia descobre que há coisas que o dinheiro não pode comprar. Quando Seixas, após muito trabalho árduo, enriquece e assume posição de liderança no casamento, os dois atingem a plena felicidade conjugal, que é claramente baseada no controle e zelo masculino.

Para comprovar que as concepções e criações de Alencar faziam parte do imaginário e repercutiram na época, Soares utiliza-se de fontes jornalísticas do período, cuja análise permite observar que os comportamentos propagados e defendidos por Alencar eram reproduzidos nos jornais da época, especialmente no Jornal das Famílias (1853-1878) e no Jornal das Senhoras 1852-1855). O primeiro, escrito por homens, e o segundo, embora escrito por mulheres, não divergia dos olhares e "valores" masculinos do período. Os conteúdos divulgados pautavam-se em receitas medicinais e culinárias, resenhas teatrais, moda, poesias. Esses escritos não deixaram de ter caráter educacional, já que eram considerados itens adequados (e necessários) ao conhecimento das mulheres da chamada "boa sociedade", instigando a manutenção da felicidade conjugal pelo amor e sujeição.

A narrativa da autora recupera, por meio de um olhar historiográfico, as transformações da sociedade carioca, no Rio de Janeiro, em meados do século XIX, mudanças presentes na literatura de Alencar e nos jornais da época, cuja incumbência era instruir, principalmente as mulheres, sobre como agir em sociedade, utilizando, como ponto de partida ou modelo, no caso das produções literárias, as personagens citadas e, para o caso da atividade jornalística, as linhas informativas dos folhetins. Estes recursos se constituiriam, portanto, em verdadeiros tratados que buscavam padronizar o comportamento das leitoras. Encontra-se em todas as obras, conectadas entre si pelo tom pedagogizante, um teor moralizante: segundo Alencar, a moça civilizada e educada torna-se esposa feliz. As mulheres que fugissem desses padrões, que fossem atraídas pela luxúria, pela insubordinação ao poder masculino instituído, sofreriam as consequências, aliás, bem exemplificas no destino das personagens, em especial, no de Lúcia. O casamento ideal seria a total virilidade masculina tecida à submissão feminina. Evidenciam-se, nessa concepção, as relações de poder estabelecidas entre os gêneros, apresentadas como naturais, e consequentemente exemplares, nas obras.

Segundo a mentalidade da época, a condição de passividade era inerente às mulheres. Elas deveriam se ater aos seus lares, ao âmbito privado, ser gentis, belas e educadas, sendo que está educação devia ser "acompanhada", pois o letramento das mulheres, sem a devida vigilância, também poderia acarretar em conhecimento de conteúdos abomináveis. Portanto, as mulheres da elite carioca tinham por devir serem despidas de controle e poder sobre si mesmas e sobre o matrimônio.

O grande mérito dessa obra está em sua reflexão histórica e de gênero em torno da construção dos perfis femininos e masculinos. Podemos lançar um olhar, por meio da análise das produções, para o modo como foram delineados os traços que constituiam a identidade feminina (elaborada, evidentemente, tendo ao mesmo tempo como contraponto e ponto de partida a visão masculina), no século XIX, principalmente durante o período de grandes mudanças, da transição entre o Brasil Colonial (considerado atrasado) e o Brasil Império, influenciado por modelos europeus de civilização (marcado pela vida no âmbito público, programas obrigatórios para as famílias abastadas, como passeios, bailes e o consumismo). Houve a necessidade de delinear tradições, instruir as mulheres (em especial) sobre como deviam se comportar, e quais regras deveriam seguir para alcançar e manter a felicidade plena, representada pelo casamento, pela manutenção da família, dos filhos. É importante ressaltar que apenas as mulheres civilizadas eram consideradas dignas de serem amadas e alcançariam essa felicidade.

No decorrer da obra, Soares aponta que os locais citados nos romances foram frequentados por Alencar, e que sua estética realista contribuía para que a "missão moralizadora" fosse concretizada. Evidencia-se uma pretensão de construir, por meio da literatura, e também da atividade jornalística, uma identidade nacional, desejo afinal bem coerente com o espírito da época, constituído firmemente sobre o propósito de estabelecer uma tradição própria, independente. O próprio autor definia suas obras como retratos da realidade. Essas características, aliadas à cuidadosa análise empreendida pela pesquisadora, são favoráveis à questão do uso da literatura como fonte, uma vez que, através dela, encontram-se elementos, visões de mundo, e representações do período. Reforça a utilidade da literatura como fonte histórica o argumento de Soares sobre a boa vendagem e aceitação pelo público dos jornais e livros na época. Não seria inadequado afirmar que estes pudessem de tal forma, influenciar nas relações entre homens e mulheres. Não eram necessariamente um retrato fidedigno de como eram e agiam as mulheres, mas orientavam sobre o que deveriam se tornar e como deveriam proceder na sociedade.

Visitando as novas formas de olhar e interpretar a história, por meio de uma característica intrínseca aos historiadores, Carolina Soares interroga esse passado, e traz para a discussão as representações dos femininos tão presentes naquela época, bem como suas permanências e rupturas, nos legando uma obra que pode ser lida pelo público em geral, sem a necessidade de um conhecimento prévio. Contribui para essa fluidez de leitura a cuidadosa exposição que a autora faz sobre o período em que se situam as obras estudadas, bem como sobre os personagens e autores. Não existe restrição para área ou idade. As preocupações da autora estão vinculadas à contemporaneidade, contribuindo, assim, para o caráter relevante e envolvente das reflexões.

Referências

SOARES, Ana Carolina. Moça Educada, Mulher Civilizada, Esposa Feliz: Relações de Gênero e História em José de Alencar. Bauru, SP: Edusc, 2012.

[1] Graduanda em História pela Universidade do Sagrado Coração Bauru. Resenha realizada sob a orientação da profª. Dra. Lourdes M. G. C. Feitosa.





 Editorial | Expediente | De Historiadores | Dos Alunos | Arqueologia | Perspectivas | Professores | Entrevistas

 Reportagens | Artigos | Resenhas | Eventos | Curtas | Instituições Associadas | Nossos Links


Nenhum comentário:

Postar um comentário

opinião e a liberdade de expressão

Manoel Messias Pereira

Manoel Messias Pereira
perfil

Pesquisar este blog

Seguidores

Arquivo do blog