segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

64 - Revolução

64


Cidadezinha qualquer. Plano Americano. Enquadramento sei por quatro. Ação: sessenta e quatro.
Quatro vertice de esquina apontam seus narizes para o centro da rua. Narizes caricatos. Num deles a verruga de granito desafia, potiaguda, a geometria do calçamento. O sangue brota na ponta do dedão, chute infeliz naquele dia em que a laranja rolava manquejando e a unha do dedo fere o fio da sarjeta. Futebol solto, com arte, sem objetivo de gol. Tabelas que desenhavam o acaso nas brincadeiras com a molecada. Barriga cheia, satisfeita das frutas roubadas.

Meio dia: a vida é desolável. As folhas das árvores balançavam molemente ao ritmo da preguiça nacional.
A outra esquina - csarão -, nariz carnudo, pegajoso, sem faor. Embotado pela rapé, comprometido com a política. Nariz maleável sisudo, contraído pelos pesados aros dos óculos da miopia política. Barreira instraponível. O sonho moleque de ver o bem, o bom e a justiça diluído em lágrimas nas urnas corruptas.
Duas horas: o mormaço persiste. Fios de ruídos intorpecem toda a cidade enovelada em tramas: letargia. No outro vértice de esquina, o branco da construção clássica intensifica a claridade. A tarde irradia toda sua profusão de luz sobre os sentidos. A razão adormece. A imaginação brinca comprazer. Infância - ciranda de lembranças tramando as saias rodando, pernas entrelaçadas, mãos acariciando. O prazer salta pelos poros, brinca maladrando.
Quarto quadrante:naris miúdo, rasteiro. Sapicado pelo verde dos jardins, o vermelho se assenta em disciplina rígida, compenetrado em flores: corações-de-estudante. Sobre raiz, olhos placidos, paternos.
Sobrancelhas arcadas pelo cansaço com que a fachada desafia o tempo. Testa enrugada, cabelos esbranquiçados pelo ensino paciente. Grupo escolar. Rosto amigo, dorso arcaico. A esfinge reina petrificada do alto de seu ponto de contemplação. Da rua não se divisa o seu interior labiríntico dimensionando as aventuras das crianças ali aprisionadas. O canto-de-sereia é contínuo e persuasivo. Entra por todas as arestas cerebrais.
Dos ouvidos da esfinge o ritmo martelado sobrevoa a cidade. A melodia é monótona, maçante. Fantasmas de notas imprimem no ar o bailado mágico das vogais e consoantes. A cidade se constroi: bá, bê, bi, barriga roncando de fome. Faca, favela, fê, fi, fome. A faca brilhou no ar, a roda-de-samba petrificada, o gingado agiganta-se no silêncio. O sol desafia com seus raios o fio da faca afiada. O grito aterroriza o ar: o sangue escorre lento no corpo negro que tomba. O vermelho e o negro quadriculam a memória - Saia do mundo da lua! Abelha, a, e, e, o zumbido percorre o labirinto, atravessa os ouvidos e se perde na rua.
Quase quatro e meia: o ritmo martelado encontra barreira. Lá embaixo, cadenciado, o som estranho invade a ruazinha. Projeta-se para o aclive. Os quatros narizes entrecruuzam-se fixando o centro do conflito.
Os transeutes são poucos pelas ruas. O bueiro encarrega-se do alerta. Em instantes a cidade prepara-se para a invasaão. A comunicação é subterrânea, eficente, aprimorada, na tensão da convivencia. Intrigas sussurradas e tramadas escrevem o enredo-de-costumes das cidadezinha pequena.
O aglomerado humano aumenta. Todos os tipos ali instigados e desarmados frente ao invasor que cresce. O ritmo da marcha impõe sobre o bê-a-bá. A cidade agita e ajeita-se. Cala-se, comprimida, diante da cena estranha. O invasor, triunfante, ganha o centro das quatro esquinas.
Quatro e meia: a última resistência vencida. O som do sinal juntamente com a algazarra e da meninada que sai da escola é abafado. Os olhos infantis misturam-se na multidão curiosa. A marcha cresce em evoluções. Os hinos amedrontam. O visual do preto das roupas cuidadas e o vermelho das bandeiras massacram. Olhos atônitos acompanham incompreensíveis o movimento do vermelho -dourado das insígnias indecífraveis.


A saída dos escolares completa o quadro de terror. a população indefesa sente-se desarmada frente a impossibilidade de ação. As crianças desprotegidas intensificam o medo e o desespero. Última evoluções. O inimigo prepara o silêncio providencial para o ataque. Não há resistência, o vencedor consolidado vai iniciar a dominação. Em instante desabarão sobre o povo as ladainhas das pregações. TFP Tradição Família e Propriedade.
Nisto, um grito de menino corta o silêncio. CORRAM, É O COMUNISMO!
A imagem se esgarça com o grito. Tumulto. Plano geral fechando em câmara lenta. Imagem desfocada, fica o vazio, o nada. No centro das esquinas, na mira dos quatro narizes, uma formiga aponta no bueiro. Imperturbável, recomeça o seu trabalho.
Sergio Vicente Motta
(texto dos 19 contos de Rio Preto)




Nenhum comentário:

Postar um comentário

opinião e a liberdade de expressão

Manoel Messias Pereira

Manoel Messias Pereira
perfil

Pesquisar este blog

Seguidores

Arquivo do blog