Quando eu me deixar cair
No meu sonho de adoecer para poder dormir,
Fere-me com tua lança!
Reaviva em mim a dor, fonte de esperança.
Quando a verdade, que é nua,
Me cegar como um sol, e eu me voltar para onde há Lua,
E procurar jardins convencionais e plácidos,
Queima-me com os teus olhos ácidos!
Quando me for mais fácil a verdade do que ter
Um papel de actor qualquer,
Como aos que assim se recreiam,
Faz-me exibir-me bobo ante os que aplaudem ou pateiam
Quando eu julgar, falando, dizer tudo,
Faz em mim sorrir teus lábios mudo!
Quando eu me poupe a falar,
Aperta-me a garganta obriga-me a gritar!
Quando eu tiver medo do Medo
E acender fósforos nos cantos rumorosos de segredos,
Arrasta-me pelos cabelos
Para entre os pesadelos!
Quando, a meio da noite e da ansiedade,
Eu me rojar por terra e te pedir piedade,
Não me apareça nem me fales!
Deixa-me só com o meu cálix.
Quando eu te falsificar,
E alugar anjos de serrim para em seus braços me embalar,
Derrete o chumbo dessas casas:
Leva-me no tufão das tuas asas!
Quando eu enfim, não puder mais,
Por tuas próprias mãos belíssimas e leais
E sem caixões nem mortalhas,
Enterra-me na terra das batalhas.
Quando depois de morto, a glória
Me levantar o seu jazigo e celebrar minha vitória,
Desvenda os alçapões dos meus escritos
E arranca a terra que me esconde
os mais secretos dos meus gritos!
José Régio
(1901 a 1969)
poeta modernista português
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