segunda-feira, 22 de abril de 2013

Guerrilha do Caparaó em busca de resposta



Guerrilha do Caparaó: em busca de resposta
Afinal, por que ousaram lutar os militares que se embrenharam na inóspita Serra do Caparaó nos anos 60?
 

     
José Caldas Costa



Era agosto de 1997. Uma fria noite de lua cheia. Saí de Vitória com minha mulher e os três filhos com o carro lotado de agasalhos, donativos para a população carente de Dores do Rio Preto, talvez a cidade mais fria do Espírito Santo, ali a cinco quilômetros da divisa com Minas Gerais, a 250 km de Vitória. Uma região, até hoje, de escassos investimentos públicos e baixíssimo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).

Um grupo de pessoas, lideradas por Leilson, pastor batista, esperava-nos para uma aventura pela qual eu aguardava desde criança. Apesar de criado aos pés da Serra do Caparaó, em Alegre, onde, a rigor, localizava-se o Pico da Bandeira até a emancipação de Ibitirama, em 1990, nunca havia subido a famosa montanha, para uns considerada sagrada.

De Dores do Rio Preto já dava para avistar o pico, lá distante. Mas teríamos que percorrer longos 50km para entrarmos no Parque Nacional pelo único acesso permitido àquela época, em Alto Caparaó, pelo lado mineiro.

As primeiras dificuldades foram para transpor, com o Gol 1000, os pouco mais de quatro quilômetros  da estrada íngreme e empoeirada que levava da portaria do Parque à Tronqueira, a 2 mil metros de altitude, onde montaríamos acampamento.

Chegamos ao local por volta das cinco horas da tarde e a temperatura estava em franco declínio, soprando um vento frio do alto da montanha em direção ao vale. Corremos até a Cachoeira Misteriosa para um banho na água gelada. Jerônimo, então com 15 anos, filho do Leilson, e Jessé, o meu mais velho, com 13 anos, arriscavam mergulhos rápidos.

Quando a noite caía, já havíamos montado as barracas e acendíamos o fogo da churrasqueira, onde também seria preparado o chocolate quente para a escalada. O frio apertava e as crianças divertiam-se fazendo fumaça com o ar quente saindo da boca para condensar em contato com o ar frio do ambiente. Do mirante, eu divisava cidades como Alto Caparaó, Presidente Soares, Manhumirim e, mais adiante, o clarão das luzes de Manhuaçu, todas cidades do lado mineiro.

Uma turma de operários trabalhava na construção de futuros alojamentos, com recursos federais. Um pesquisador da Universidade da Califórnia estava acampado em uma pequena barraca com sua mulher e a filha de seis anos estudando a vegetação da região para basear sua tese de que Brasil e África, um dia, foram  uma coisa só.

A conversa que me interessou mesmo foi com um dos operários e, enquanto o frio já feria o nosso rosto, perguntei-lhe se já havia escutado alguém falar da guerrilha. Todo mundo na região ouviu falar da guerrilha. Alguns, mais velhos, viveram a época. Os mais jovens receberam as informações por tradição oral, na base do quem conta um conto aumenta um ponto.

Estávamos todos muito bem agasalhados, podíamos nos expor em quaisquer circunstâncias sem receio, leváramos muitos alimentos, podíamos acender fogueira à noite para assar o churrasco e esquentar o leite sem medo de sermos descobertos,  tínhamos barracas , três carros no grupo, um bom de suprimento de chocolate e leite condensado para repor as calorias, e mesmo assim fiquei assustado com o rigor do clima local durante a expedição.

Na noite fria de agosto, enquanto bebia uma caneca de chocolate quente e contemplava as luzes distantes das cidades, perguntei ao jovem operário o que ele sabia sobre a guerrilha. Tudo o que ele sabia era o que o pai comentava: que um monte de homens barbudos, fortemente armados, tomara a serra e dera muito trabalho à polícia. A rigor, era tudo o que eu também sabia. Aquilo não me saiu da cabeça.

Quando deu onze e meia da noite, começamos a nos preparar para iniciar a caminhada de nove quilômetros até o topo do pico, a quase 3 mil metros de altitude, o maior desafio físico de minha vida, àquelas alturas, absolutamente, sedentária. Já acostumado à aventura, Leilson alertava a todos sobre o comportamento adequado durante o trajeto, salientando que não seria uma jornada fácil e que ninguém deveria parar sem autorização, nem retirar os agasalhos, mesmos se estivesse suado. Havia risco de morte por choque térmico.

Jessé havia saído de Vitória empolgado para subir a serra. Na escola dele, todos esperavam pelo retorno e pelas novidades. Mas, naquele momento, ele entrou em pânico. Por dentro, queria subir. Por fora, temia não conseguir. Paralisado pelo medo, ficou na acampamento, em prantos, junto com a Euzi, minha mulher, o Júnior, que tinha oito anos, minha mãe, então com 74 anos, e a Simone, mulher do Leilson.

A Lídia, com 11 anos, não estava ali para subir, mas encheu-se de razão e resolveu ir conosco. Era a mascote da expedição, mas, cheia de opinião, irrompeu serra acima, com entusiasmo.

Tudo isso relato para demonstrar como as pessoas reagem diante da imponência do gigantesco maciço central da Serra do Caparaó, que para circundar se percorrem mais de 200km. Isso em condições totalmente favoráveis, com o aparato necessário a uma aventura segura. Passei a  imaginar o que passaram ali os homens que sonharam enfrentar o regime militar de 1964 em armas e mudar o Brasil a partir de um foco guerrilheiro!

Talvez minha aparência, naquele  momento, lembrasse um dos guerrilheiros. Vestia quatro blusas de lã, touca ninja, que somente deixava os olhos à mostra, três calças, uma delas, a debaixo de todas, de lã, e dois meiões. As mãos calçavam luvas. Estava irreconhecível e parecia um flagelado quando cheguei ao topo da montanha.

Os últimos 50 metros são um sofrimento. Você está tão perto e tão sem forças! Foi o único momento em que a Lídia falou em desistir. E eu, exausto, a incentivava. Assim chegamos, arrastando-nos. As pernas já não obedeciam aos comandos do cérebro. Dávamos um passo de cada vez.

Havíamos caminhado desde a meia noite até às 6 da manhã. No meio, uma parada estratégica no Terreirão, a 2.400 metros de altitude e a 4,5km do acampamento.  A Casa de Pedra - onde, mais tarde eu soube, houve uma fatídica reunião da guerrilha, e uma severa discussão entre o “comandante” urbano Amadeu Rocha, estudante de Direito que já se intitulava doutor, e o comandante militar Amadeu Felipe da Luz Ferreira, sargento do Exército, expulso no primeiro ato do golpe militar de 1964 – estava lotada e dormi por quase duas horas sobre a pedra gelada, abraçado à minha filha, um corpo aquecendo o outro.

E havíamos feito apenas a metade do trajeto, em duas horas. A parte mais difícil estava por vir, do Terreirão ao topo, em terras capixabas, porque, bem perto da Casa de Pedra é a nascente do rio José Pedro, que serpenteia entre as rochas, demarcando a divisa do Espírito Santo com Minas Gerais e cujas águas vão, muitos quilômetros depois, alimentar o rio Doce antes de chegar ao mar. Mais duas bacias hidrográficas recebem águas da serra – Itapemirim e Itabapoana.

Do topo da montanha se participa de um dos espetáculos mais lindos que a natureza pode proporcionar:  o nascer do sol, imperdível, quando se pode perceber que a Terra é um ser vivo e pode-se “ver” o vento em movimento. Após a contemplação, os corpos exaustos estirados sobre a rocha, adormecemos. Acordamos com o sol já alto, despertados pelo Leilson, convocando a todos a descerem, porque o sol esquenta muito na montanha.

Um dos 14 participantes da expedição, um jovem pastor de Bom Jesus do Itabapoana, surtou e desceu a montanha correndo e gritando que nunca mais voltaria ali. Eu desci lentamente e cheguei ao meio dia no acampamento decidido: iria me dedicar a resgatar aquela história que passou diante de meus olhos quando eu tinha 7 anos de idade, morava em Alegre e, seguro pelas mãos de minha mãe, vi o comboio de caminhões do Exército passando pela cidade para reprimir a guerrilha. Ninguém jamais havia me dado uma explicação satisfatória sobre o que vi.

Meu sargento no Tiro de Guerra, Rodolfo Faião, quando perguntei numa instrução o que tinha acontecido, limitou-se a falar que os comunistas queriam tomar o Brasil e que um bando de subversivos havia se instalado na Serra do Caparaó. Muito pouco para minha curiosidade.

Luiz Trevisan, hoje casado com Laurinha, médica sanitarista perseguida pelo regime militar, contou-me que, no mesmo dia em que vi o comboio, ele caçava passarinhos, com uma espingarda de chumbinho, em Cachoeiro, e escondeu-se no mato com medo de que lhe o Exército estivesse ali para acabar com sua brincadeira.

Embora, por ossos do ofício, razoavelmente bem informados, nenhum de nós dois havia tido uma explicação para aquela sinistra imagem de infância gravada em nossa memória.

Para satisfazer à minha inquietação, e de todos os que de alguma forma têm algum tipo de lembrança da infância vivida nos anos de chumbo, que roubaram nossa inocência e nossa liberdade de sonhar, e para que a história não se perca nas sombrias nuvens do passado, e que as novas gerações não pensem que a liberdade não tem um preço, que muitos pagaram com anos de cárcere e outros com a própria vida, é que investi dez anos de minha vida a decifrar o enigma da Guerrilha do Caparaó, e deixo à posteridade a reportagem em forma de livro para todas as gerações atuais e futuras.

Afinal, por que ousaram lutar os militares que se embrenharam na inóspita Serra do Caparaó nos anos 60?

José Caldas da Costa é jornalista, licenciado em Geografia pela Ufes, nascido em Alegre, ES,  testemunha ocular infantil da corrida à repressão à Guerrilha do Caparaó. Acima de tudo, um repórter do cotidiano.


FICHA TÉCNICA

“Caparaó: a primeira guerrilha contra a ditadura”, com prefácio de Carlos Heitor Cony.  Editora Boitempo, São Paulo, 2007, 336 páginas. Prêmio Vladimir Herzog 2007 e finalista do Prêmio Jabuti de 2008, como melhor livro reportagem.


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Manoel Messias Pereira

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