quinta-feira, 4 de abril de 2013

O Curso de Especialização em Educação para as Relações Étnico-Raciais: a aplicação da lei 10.639/2003 na região sudoeste do Paraná




O Curso de Especialização em Educação para as Relações Étnico-Raciais: a aplicação da lei 10.639/2003 na região sudoeste do Paraná

por Carina Merkle Lingnau e Sônia Maria dos Santos Marques

Sobre primeira autora1

Sobre a segunda autora2

Introdução

O Curso de Especialização para a Educação em Relações Étnico-Raciais iniciou no município de Francisco Beltrão, PR no ano de 2010 após convênio firmado entre o Programa Uniafro/MEC/SECAD e Unioeste. O processo de organização do curso na Universidade Estadual do Oeste do Paraná - Unioeste, Câmpus Francisco Beltrão desenvolveu-se a partir de relativa persistência, visto que a documentação foi enviada para os órgãos competentes já no ano de 2007, antes ainda da criação da Lei 11.645/2008, que tornou obrigatório o ensino de História Indígena na escola. Este também foi um dos motivos pelos quais o Curso não contemplou, de forma direta, a questão indígena.

O projeto Curso de Educação para as Relações Étnico-Raciais teve como objetivo analisar, discutir e pensar propostas de intervenção pedagógica que contribuíssem para a superação do preconceito e racismo no cotidiano escolar. No momento atual, medidas efetivas são tomadas para a reversão da situação de vivência hierarquizada das relações étnico-raciais no âmbito educacional. Vivemos um contexto de proposições e implementações de políticas de ação afirmativa, relacionadas à educação dos afro-descendentes e indígenas, etnias que ainda enfrentam obstáculos na conquista da cidadania. Nesse sentido, cabe destacar a alteração provocada pela Lei 10.639/2003 art. 26 da Lei 9.394/96 que determina a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, na Educação Básica.

Essa legislação requer, dos profissionais da educação, compromisso humano, social e reflexão profunda sobre a constituição multiétnica e multicultural de nossa sociedade. Todavia, o tratamento não segregador e não discriminatório ainda é uma postura política e profissional ausente de muitas práticas pedagógicas e de vários processos de formação de professores (as). Estudos como os de Moreira (1994), Gomes (1995), Silva (1995), Gonçalves e Silva (1996), Arroyo (2000) dentre outros discutiram a relação estreita entre etnicidade e os complexos processos de sua elaboração e apreensão. Constataram que a diversidade étnico-racial é mais do que uma questão posta à sociedade, à escola e ao currículo, é um componente dos processos de socialização, de conhecimento e de educação.

Após aprovação do Curso e, dispondo dos recursos financeiros advindos do Programa Uniafro -MEC/Secad, as atividades tiveram início. Foram constituídos módulos, corporificados nas disciplinas: História do Brasil e a presenças dos afro-brasileiros; Produção de Materiais Didáticos; Educação Quilombola; Metodologia da Pesquisa; Movimentos sociais negros no Brasil e educação; Corporeidade, música e dança na cultura africana e afro-brasileira; História da África; Educação para os Direitos Humanos; Identidade Étnico-Racial e Educação; Jogos, brinquedos e questões étnicas; A arte e a diversidade étnico-racial; Novas tecnologias e questões étnico-raciais; Literatura Africana; Gênero e Diversidade; Cultura, complexidade e educação.

Perfil dos (as) Alunos (as) do Curso

Os professores e professoras que buscaram formação no Curso de Especialização para a Educação em Relações Étnico-Raciais possuem, em sua maioria, vínculo com escolas públicas municipais e estaduais da região sudoeste do Paraná, uma vez que o curso foi oferecido exclusivamente para os profissionais do ensino público, ficando as vagas remanescentes com candidatos vinculados a outras instituições. Os municípios em que estes profissionais atuam são respectivamente: Ampére, Coronel Vivida, Enéas Marques, Francisco Beltrão, Marmeleiro, Realeza, Renascença e São João.

Mapa I- Representação dos municípios de origem dos participantes do Curso de Especialização em Educação para as Relações Étnico-Raciais- Unioeste, Câmpus de Francisco Beltrão



A formação acadêmica destas (es) professoras (es) são diversificadas e fizeram a graduação, no ensino superior, nos seguintes cursos: Administração, Ciências Biológicas, Ciências Econômicas, Ciências Químicas, Ciências Sociais, Economia Doméstica, Educação Artística, Educação Física, Filosofia, Geografia, História, Letras, Matemática, Pedagogia e Português e Licenciatura.
Gráfico 1 Curso de formação dos alunos do Curso de Especialização em Educação para as Relações Étnico-Raciais- Unioeste, Câmpus de Francisco Beltrão



Como podemos observar no gráfico 36% dos (as) alunos (as) do Curso de Especialização em Educação para as Relações Étnico-Raciais, têm formação em Pedagogia. A predominância desta área de formação pode indicar dificuldades para lidar com as questões étnico-raciais no cotidiano escolar e, o desejo de ação sobre tais questões na escola. Assim, os (as) pedagogos (as) precisam lidar não só com sua formação, quanto orientar questões de ordem formativa dos outros colegas professores (as) e as relações que se compõem no interior da escola (dimensões que ultrapassam o conhecimento de ordem cognitiva do Currículo Escolar, questões históricas e de concepção do sujeito).

No curso estes sujeitos puderam problematizar, refletir, exercitar novas práticas relativas à temática. Um exemplo disso é a reflexão sobe os manuais escolares.

No livro didático a humanidade e a cidadania, na maioria das vezes, são representadas pelo homem branco e de classe média. A mulher, o negro, os povos indígenas, entre outros, são descritos pela cor da pele ou pelo gênero, para registrar sua existência (MUNANGA, 2005, p.21).

Em várias situações é possível identificar as lacunas históricas deixadas nos materiais didáticos que estão disponíveis para trabalhar as temáticas do conteúdo curricular com os alunos (as). Neste sentido é interessante notar que é para o (a) pedagogo (a) que tenha participado de um curso de formação em Educação para as Relações Étnico-Raciais já se espera um olhar mais aprofundado, um reparar diferenciado que eventualmente no passado se encontrava bem mais naturalizado. Outra questão que pôde ser discutida e levada para as escolas foi a discussão sobre respeito e diversidade cultural e o papel fundamental do (a) professor (a) para desestabilizar relações por meio da aplicação da Lei 10.639/2003. Vera Moreira Figueiras, pesquisadora do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, ao analisar a postura do professor, reconhece a importância desse profissional para lidar com a questão étnico-racial. A autora adverte que o docente pode articular revisão de comportamento e atitudes em relação aos estereótipos vividos pelo grupo na sala de aula. Munanga (2005) também corrobora com esta discussão quando diz que

a postura do professor por ser ele aquele que transmite, a partir de sua condição de autoridade central na sala de aula, conceitos que serão absorvidos pelos alunos como conhecimento científico, conhecimento verdadeiro. Por tal motivo, estudar a formação do professor, no que toca a sua visão sobre o negro, é crucial para se perceber em que medida a escola está preparada para lidar com a questão racial (MUNANGA, 2005, p.55).
Em outra fatia do gráfico pode-se verificar que 17% dos (as) alunos (as) do Curso de Especialização em Educação para as Relações Étnico-Raciais têm formação em História. Assim, fica até mais fácil entender o interesse pelo curso, uma vez que a princípio, aqueles que optaram por um Curso de História deveriam apresentar interesse pelo assunto da Lei 10.639/2003 uma vez que há uma proposta voltada para a sua área de atuação. Importante notar que no decorrer do curso foi possível ter contato com textos até então desconhecidos pela maioria dos historiadores e demais alunos (as).

Este despertar para outras versões históricas e novas possibilidades de trabalhar a questão étnico-racial em sala de aula provocou discussões entre os colegas de curso e interferiu nas práticas reflexivas e no trabalho com os (as) alunos (as). Um exemplo de leitura interessante a ser compartilhado, apresenta o desenvolvimento da África pré-colonial.

Possuidor de moeda própria, o zimbo, concha que o ntotila3 mandava recolher na ilha de Luanda, o Congo4 possuía, também uma organização produtiva complexa. [...] No Congo, o artesanato que compreendia a fabricação de tecidos de ráfia e o trabalho em marfim e cobre era extremamente desenvolvido, assim como a tecnologia do ferro (PRIORE, 2003, p.143).

Como a formação da maioria dos professores e professoras que trabalham nas escolas atualmente não contemplou o ensino de História Africana e Afro-Brasileira, os (as) alunos (as) que puderam usufruir desta formação tiveram a opção de levar tais questões para seu espaço de aula.

As discussões compartilhadas sobre as civilizações africanas surpreenderam alguns e confirmaram as linhas de pensamento de outros.

Nos estudos históricos, considera-se a civilização humana um atributo quase exclusivo do Ocidente. Até pouco tempo, a idéia de que o ser humano original fosse o negro e africano soava entre ridícula e absurda. Ao longo dos séculos, a ciência ocidental construiu uma série de teses que supostamente comprovavam que os africanos eram criaturas inferiores e incapazes de criar civilizações. Pesquisas mais recentes vêm confirmando não apenas que a humanidade nasceu na África, como também que os negros africanos estão entre os primeiros a construir civilizações humanas e erigiram as bases da própria civilização ocidental (NASCIMENTO, 2008, p.29).

A ideia da África como berço da civilização é comprovada em pesquisas. Ler e conversar sobre o tema com os (as) alunos (as) é uma ótima maneira de aplicar a Lei 10.639/2003, uma interlocução que motive um debate e redefina visões cristalizadas no imaginário social. Tais ações, em sala de aula, motivam novas posturas assim como pode modificar a visão que os alunos negros têm de seu grupo étnico. Portanto, cada reconstrução da imagem do negro, da história e do imaginário potencializam a cidadania.

Como terceiro grupo mais significativo de alunos que procuraram pela formação temos15% dos docentes vindos do Curso de Geografia. Uma das questões que pode ser discutida em sala de aula após este curso é a delimitação geográfica dos países que fazem parte do continente africano e a identidade que envolve muitos grupos que vivem nestes países. Quando tratando sobre definições de identidade Martinez fala sobre duas aberrações que sempre são avaliadas,

uma, é o fato de em muitos lugares existirem populações de etnias diferentes vivendo dentro das mesmas fronteiras político-geográficas de um país, sem se misturarem, travando guerras de extermínio mútuo, cada uma lutando para impor como facção dominante. A outra aberração é a existência de países diferentes dividindo um povo de mesma etnia (MARTINEZ, 1992, p.54).
Esta situação de divisão ocorre uma vez que a África foi retalhada após a Conferência de Berlim informando que
as fronteiras territoriais também foram delineadas sem respeitar a disposição da população local, com base nos interesses dos europeus. Eles percorriam a noções arbitrárias como latitude, longitude, linha de divisão das águas e curso presumível de um rio que mal se conhecia , afirma o historiador Henri Brunschwig em A Partilha da África Negra . E essas fronteiras ainda sobrevivem. Segundo o geógrafo francês Michel Foucher, cerca de 90% das atuais fronteiras na África foram herdadas do período colonial. Apenas 15% delas foram levadas em consideração questões étnicas. Há ainda mais de uma dezena de fronteiras a serem definidas, segundo Foucher (SOMMA, 2005, p.40).
Desta forma o grande trunfo de geógrafos lerem estes textos e discutirem com os colegas do Curso de Especialização é levar a Geografia associada à ideia de identidade, de poder, e das múltiplas influências das composições geográficas. Interessante notar que a identidade se encontra atrelada a um viés também filosófico, cultural e político.

A porcentagem dos outros Cursos de Formação não foram significativas, porém expressam uma parcela da microrregião sudoeste do Paraná que busca formação adequada para dar cumprimento a Lei 10.639/2003.

Considerações Finais

Desses apontamentos iniciais questionamentos se impõem: Como podemos aplicar a Lei 10.639/2003 no cotidiano escolar? Quais são as ações mobilizadas pelos (as) professores (as) neste novo contexto? Uma das respostas pode estar relacionada à
formação de professores capacitados a criar, levantar possibilidades, inventar novas situações de aprendizagem em sala de aula, frente à especificidade do contexto em que conduz o processo de ensino-aprendizagem, imbuídos do sentido de sua profissão e de sua responsabilidade na sociedade, poder-se-á desenvolver um processo escolar de educação consoante à realidade sociocultural brasileira (MUNANGA, 2005, p.79-80).

Destarte, cada vez que um grupo com formação em Especialização para Educação em Relações Étnico-Raciais é estabelecido em uma comunidade de professores (as), existe uma tendência de discutir questões que não foram trabalhadas durante os anos de formação básica e superior. Afinal,
as pessoas não herdam, geneticamente, idéias de racismo, sentimentos de preconceito e modos de exercitar a discriminação, antes os desenvolvem com seus pares, na família, no trabalho, no grupo religioso, na escola. Da mesma forma, podem aprender a ser ou tornar-se preconceituosos e discriminadores em relação a povos e nações (MUNANGA, 2005, p.188) .

Nesse contexto, o desafio parece ser a motivação para novos cursos de formação, a manutenção espaços para o debate qualificado e reflexão sobre a temática étnico-racial; as cobranças aos governos municipais, estaduais e federais no sentido de criar práticas que favoreçam o debate e concretizem mudanças nos mais diversos setores da sociedade. Moura (1997, p. 240) referindo-se à aprendizagem das crianças em uma comunidade quilombola, assim se manifesta:
Porque participam de todas as atividades: nas danças, nos cânticos, na arrumação do ambiente, na seleção das roupas, na preparação do altar, isto é desde a preparação da festa até o momento de sua finalização. Todo o processo é participativo e as crianças e os jovens querem tomar parte nos rituais por que aquilo faz sentido para eles, faz parte de sua vivência e reafirma a noção de pertencimento àquela comunidade. Aprendem assim seus papéis e à hora de exercê-los porque lhes é permitido conhecer o legado dos mais velhos recriado no presente, assim como sua história, que é valorizada constantemente.
A autora aponta a significação do novo conhecimento e o envolvimento dos sujeitos aprendentes como marca dessa forma de ensinar e aprender. Entende que as crianças aprendem com a comunidade e que isso produz um saber capaz de envolver as crianças e produzir significação. No entanto, o conhecimento sistematizado que acontece na escola não tem oferecido possibilidades vivência das diferentes formas de ciência.

Nesse sentido, seria importante pensarmos sobre o caráter emancipatório da educação já há muito discutido. Para Oliveira (2003, p. 117)

O caráter emancipatório da educação é contemplado na medida em que os objetivos propostos e os conteúdos selecionados adquirem relevância social e acadêmica. A relevância social dos objetivos e conteúdos da educação está condicionada às suas possibilidades de fazer o educando compreender as suas condições na sociedade e as maneiras pelas quais esta condição foi histórica e socialmente construída e mantida na atualidade. A relevância acadêmica tem caráter epistemológico e se vincula ao grau de confiabilidade dos conhecimentos postos à disposição dos educandos como instrumentos para compreensão da realidade.
Assim, urge redimensionar as práticas acadêmicas, de maneira que, ao longo da formação sejam estabelecidas discussões sobre a temática das relações étnico-raciais e que, ao mesmo tempo, se criem condições para que a atuação docente possibilite a produção de saberes a partir de problematizações e investigação sobre o contexto educativo na qual a escola se insere.

Deste modo, vemos que cabe à escola compreender as diferentes relações que ocorrem no seu interior, investindo para desnaturalizar as formas como têm se apresentado as relações raciais nos materiais didáticos, nas relações entre os alunos e professores, nos currículos, nas posturas assumidas ou dissimuladas...

Referências Bibliográficas

BHABHA, H.K. O local da cultura. Trad. Myriam Avila; Eliana Lourenço de Lima; Glaucia Renata Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. 395p.

MAFESOLI, M. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.

MARTINEZ, P. África e Brasil: uma ponte sobre o Atlântico. São Paulo: Moderna, 1992.

MUNANGA, K. (org.) Superando o Racismo na Escola. Brasília: MEC/SECAD, 2005.

NASCIMENTO, E. L. (org.) A Matriz Africana no Mundo. São Paulo: Selo Negro, 2008.

OLIVEIRA, I. (orgs). Relações raciais e educação: novos desafios. Rio de Janeiro: DP&A, 2003

PRIORE, M.del. Ancestrais Uma Introdução à História da África Atlântica. São Paulo: Campus, 2003.

SOMMA, I. A Partilha da África. Revista Aventuras na História, ed 35, , São Paulo: Editora Abril, julho de 2005.

1 Mestranda em Educação na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), Câmpus Cascavel. Contato: carinadebeltrao@gmail.com

2 Professora Adjunta do Curso de Pedagogia na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), Câmpus Francisco Beltrão e Cascavel. Contato: mrqs.sonia@gmail.com

3 Ntotila: imperador

4 Congo, ou Reino do Congo, localizado na atual Angola.






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Manoel Messias Pereira

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