quarta-feira, 3 de abril de 2013

O doloroso exercício da finitude




Maria Maura Fadel


Morremos, é fato. Fenômeno óbvio – sabemos racionalmente.  Mas, não raro, o tratamos como se fosse exceção. E o fazemos não só pelo apego à vida, mas possivelmente também pela falta de representação subjetiva dessa experiência. Por mais que prevaleça a negação – principalmente numa cultura como a nossa, que nos convida a viver para sempre – e o incômodo em relação a esse desfecho, é impossível escapar do que está por vir. Morre-se a qualquer momento (não diz o ditado que basta estar vivo?), é inegável. Mas quanto mais os anos passam, temos consciência – sim, em algum lugar de nós temos certeza – de que nos resta menos tempo a cada dia. Curioso é que diante do inevitável quedamos abismados, como se tivéssemos sido traídos. E se haver-se com a própria morte é difícil, assistir a um objeto de amor definhar de forma irreversível é uma experiência complexa, que desperta uma gama de sentimentos. E, principalmente, nos coloca de forma direta com a finitude. É assim no premiado Amor.

O austríaco Michael Haneke, autor, diretor e roteirista, estudou psicologia e filosofia na Universidade de Viena – uma formação que provavelmente contribui para que apresente maneiras menos idealizadas de ver o ser humano e as relações. O filme, aliás, apresenta uma lição desconfortável: o amor não vence tudo e – por mais que tenhamos vivido belas histórias, apreciado obras de arte, criado filhos, construído relacionamentos – o peso da decadência sempre nos ronda. Além disso, o filme nos lembra quanto é trabalhoso morrer.

Muito além da angústia propriamente dita, dos dramas existenciais, do luto, do sofrimento e dos problemas sociais e mesmo das questões práticas, há imenso esforço – tanto físico quanto psicológico – envolvido no percurso rumo à morte. E não apenas de quem morre, mas também daquele que, por necessidade ou por escolha, acompanha esse processo – e, desta forma, também termina por morrer um pouco.

O diretor do intrigante A fita branca, que mostra primórdios da insanidade nazista, e de Caché, sobre a violência dissimulada, expõe desta vez os últimos dias de um simpático casal de idosos, Georges, vivido por Jean-Louis Trintignant, e Anne, interpretada por Emmanuelle Riva. Num exercício de despojamento, os dois atores – que, quando jovens foram ídolos do cinema – expõem ao olhar impiedoso das câmeras rostos sulcados pelas rugas, cabelos ralos e desgrenhados e corpos enfraquecidos.

Já na cena de abertura o espectador – mesmo o mais desavisado – percebe qual será o desfecho quando bombeiros arrombam a porta do apartamento do casal, abrem as janelas e constatam o falecimento de Anne, possivelmente ocorrido há alguns dias. Seu corpo, rodeado de pequenas flores, foi cuidadosamente arrumado sobre a cama – ela vestida com esmero e penteada. Meses antes, os dois músicos aposentados viviam uma intimidade marcada pela ternura: passeiam, vão a um concerto e administram as questões do dia a dia. Ele elogia a beleza da mulher: “Eu me lembrei de dizer que esta noite você estava realmente bonita?”. O cenário é um apartamento também antigo, algo sombrio, porém espaçoso e ainda confortável, repleto de livros, quadros e discos – objetos que testemunham uma vida marcada pelo gosto pelas artes.  Mas de repente – aliás, como acontece não só nos filmes, mas também na vida – sobrevém a tragédia: Anne sofre um acidente vascular cerebral que paralisa metade de seu corpo e a deixa numa cadeira de rodas.

Em Amor, assistimos impotentes à entrada em cena de dois grandes fantasmas da velhice: a solidão e a dependência. Talvez a desventura pareça ainda mais inquietante porque os protagonistas são dois intelectuais da alta burguesia, com recursos culturais e econômicos que – pelo menos teoricamente – deveriam protégé-los da catástrofe.

Enquanto ainda tem condições de se expressar, ela procura reagir com dignidade. Mesmo abatido, Georges cuida dela delicadamente: ajuda a despir-se, usar o vaso sanitário, tomar banho e comer. Anne não deixa de dizer “por favor” e  “obrigada”. Mas a angústia e o medo do futuro dominam a ambos a cada momento. “Prometa-me que não me levará mais ao hospital”, pede a mulher com a voz tranquila e firme, assim que chegam em casa, após a alta médica. Embora permaneça em silêncio, o marido irá procurar atender a esse desejo, da melhor forma que lhe é possível. O compromisso, porém, é penoso: ele assume pessoalmente a maioria dos cuidados cotidianos, enquanto as condições de Anne pioram.

No decorrer do filme, os diálogos aparecem gradativamente mais rarefeitos, não há música de fundo; o que prevalece é a sensação do enorme esforço físico do marido para levantar a doente, alimentá-la, acompanhá-la ao banheiro, resignar-se enfim a colocar-lhe o fraldão. Conversa com ela e canta, mesmo quando Anne não faz mais do que apenas balbuciar. Um dos momentos impactantes é sua exasperação quando Anne insiste em não comer a papa que ele lhe oferece às colheradas. Sim, é possível entendê-la: perdeu-se de si mesma de uma hora para outra, o corpo não responde a seus comandos, está emocionalmente cansada, profundamente triste e debilitada; a recusa da comida é arecusa da vida. Ele, por sua vez, exausto e desamparado, tem cada vez mais dificuldade de sustentar Anne – seja fisicamente, para mudá-la de posição, ou emocionalmente, para mantê-la viva. Nessa fase, Georges se nega a atender o telefone; por orgulho ou pudor, não quer receber visitas e expor sua miséria. Anne não deseja nem ouvir música, há uma progressiva restrição dos interesses e da energia vital, tudo parece concentrado na mera sobrevivência.

Para aliviar a demanda, Georges chega a contratar duas enfermeiras, pagas por hora. Porém, ambas pouco envolvidas afetivamente e ele descobre que ter as profissionais por perto pode ser ainda mais desgastante. Paralelamente, a frieza e o descomprometimento de Eva, única filha do casal, vivida Isabelle Huppert, tornam o abandono ainda mais evidente. Ocupada com a própria vida, se emociona e se “preocupa”, desde que o drama dos pais não ameace suas prioridades. A única ligação dos idosos com o mundo externo acaba sendo o casal de prestativos porteiros, que sobem de vez em quando para limpar um pouco a casa ou, incentivados por gorjetas, fazem compras.

O desafio da trama parece ser dar sentido justamente ao que escapa ao sentido. Uma metáfora dessa busca parecem ser as cenas do pombo que insiste em entrar por uma janela aberta e Georges, repetidamente, se empenha  em espantá-lo. Podemos pensá-las como uma representação da realidade inexorável do envelhecimento e da finitude que ganham espaço por mais que desejemos afastá-las.  Talvez uma das coisas mais tocantes de Amor seja o fato de que é incomodamente possível, factível, verdadeiro. Poderia ser comigo. Poderia ser com você. Talvez um dia seja...


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Manoel Messias Pereira

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