A classe operária subiu ao palco
AUGUSTO M. SEABRA
A apresentação na Casa da Música de Experimentum Mundi de Giorgio Battistelli foi um acontecimento de todo fora das normas e rotinas vigentes e absolutamente memorável.
JOÃO MESSIAS/CASA DA MÚSICA
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Experimentum Mundi - Uma Dramatugia Do Trabalho
De Giorgio Battistelli
Casa da Música, 30 de Março
A apresentação na Casa da Música de Experimentum Mundi de Giorgio Battistelli, enfim em 1.ª audição em Portugal, foi um acontecimento de todo fora das normas e rotinas vigentes - pois que sejam sofríveis, razoáveis, bons ou muito bons os concertos e espectáculos das entidades musicais inscrevem-se quase sempre na regularidade e rotina das instituições musicais - e absolutamente memorável, um dos mais inesquecíveis não só desde que a Casa têm existência física mas de todo o projecto ao longo do qual se foram gizando as linhas estratégicas, isto é, com o Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura.
É de recordar que em 2001 um dos mais emblemáticos acontecimentos foi a montagem de uma produção do Wozzeck de Alban Berg, numa encenação de Graham Vick, com o envolvimento da população de um "bairro problemático", o de Aldoar, que logo se tornou num case study de sociologia da cultura. Doze anos volvidos ocorreu este Experimentum Mundi - Uma Dramaturgia do Trabalho, aliás neste caso de modo orgânico e intrínseco, pois que a obra parte dos batimentos de artesãos ao trabalho em pleno palco.
Battistelli é um dos mais singulares e reputados compositores contemporâneos. Dedica-se especialmente à ópera e ao teatro musical, em particular ao que se chama teatro instrumental e ao que ele designou como "teatro imaginístico". As suas obras têm sido apresentadas em vários salientes teatros europeus e em festivais como o de Salzburgo. Foi director do Centro Internacional de Arte de Montepulciano, por convite de Hans-Werner Henze, fundador dessa "oficina", bem como do sector de música da Bienal de Veneza. Actualmente compositor em residência no San Carlo de Nápoles, está também a trabalhar em obras para a Ópera de Hanover e o Scala.
Entre muitas obras suas relevantes, destaca-se a particularidade de várias delas se basearem em filmes como Teorema de Pasolini, Ensaio de Orquestra de Fellini, Milagre em Milão de De Sica e Divórcio à Italiana de Pietro Germi, o que é singularíssimo - não se trata de novas músicas para esses filmes mas de acções musicais a partir deles - e indicia o tal específico conceito de "música imaginística". Um filme que ele por certo não retomará é A Classe Operária Vai Para o Paraíso de Elio Petri, pois a presença de classes trabalhadoras salienta-se logo em Experimentum Mundi, obra de 1981 que projectou Battistelli, e que já teve cerca de 400 apresentações, o que é extraordinário para uma peça contemporânea.
O autor partiu de um facto do quotidiano: a percepção dos sons das actividades laborais. "Todo o trabalho manual produz uma pulsação rítmica própria, por natureza assimétrica porque condicionado pela funcionalidade prática, tendo por fim a realização do artigo manufacturado. Assimétrico significa que se desenvolve de forma irregular, fora do sistema mensural da música contemporânea. Daí o nome de Experimenta Mundi como matéria em mudança, como transformação".
É uma concepção de génio, ao nível das melhores obras do mestre maior do teatro instrumental, Mauricio Kagel. Em palco surgem assim um pasteleiro (cujo esmagar dos ovos sobre a massa é uma constante do princípio ao fim da obra), trolhas, tanoeiros, calceteiros, etc., a que acresce um coro feminino de vozes naturais (isto é, não "colocadas", como no "canto lírico"), um percussionista, um actor-recitante (os textos são extraídos da Enciclopédia, a de Diderot e D"Alembert) e projecção vídeo.
Herdámos do latim, convém recordar, um duplo sentido de "artes", enquanto matéria estética e enquanto ofícios, os das "artes e misteres". De modo prodigioso, Battistelli fez confluir de novo esses dois sentidos, e a partir da sobreposição de ritmos assimétricos retomou uma questão fundamental à música contemporânea, a possibilidade de uma escrita e uma realização fora do sistema mensural dos compassos.
Desde a estreia da obra, há 32 anos, Battistelli tem vindo a fazê-la com os mesmos artesãos ou entretanto com os seus descendentes. Também houve algumas apresentações com dramaturgia e direcção de Danielle Abbado, nomeadamente em 1999 no Festival de Salzburgo, com Bruno Ganz como narrador. Mas só no ano passado, em La Paz, na Bolívia, houve uma montagem com artesões locais, e só agora no Porto Battistelli dirigiu pessoas especificamente seleccionadas para este projecto na própria cidade e área urbana, num grande trabalho do serviço educativo da Casa da Música. Por exemplos alguns trabalhadores foram escolhidos por via de Centro de Empregos - e estão portanto lá inscritos porque desempregados - do mesmo modo que as senhoras do coro pertencem a um grupo apoiado pela Santa Casa da Misericórdia da Maia, vivendo com o Rendimento Social de Inserção.
A obra é daquelas que não podem ser apenas ouvidas, tem que ser vista e "sentida". E assim foi enfim possível, com o nada despiciendo pormenor que assistimos não apenas a uma "dramaturgia do trabalho" magistralmente concebida, mas, no aqui e agora, de modo ineludível também a uma "dramaturgia da crise".
Foi memorável, em absoluto memorável.
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