quarta-feira, 23 de março de 2011

Festa de Caboclo :Um olhar etnográfico

Festa de Caboclo: um olhar etnográfico

por Luciano Leal da Costa Lima e Marco Antônio Domingues Teixeira





INTRODUÇÃO

O processo de investigação cientifica da Festa de Caboclo não somente requer uma aplicação de técnicas e de procedimentos pré-determinados em seu escopo, mas que traga os questionamentos propostos pelo pesquisador, aqueles que foram adquiridos na experiência de campo por meio de suas observações e interações com o seu objeto de estudo. E isso não é uma tarefa fácil, haja vista que grandes dificuldades foram encontradas para sistematizar e transformar esses procedimentos em códigos capazes de abrir o entendimento e a interpretação correta de objeto estudado, dessa cultura e da ação desencadeada pelos atores sociais. Aqui, percebe-se a grande importância da interdisciplinaridade que deve existir entre as ciências como a História, Antropologia, Sociologia e Etnografia, que dará ao pesquisador uma postura integradora no momento em que vai aplicar os métodos e as técnicas, sem deixar de levar em consideração o tratamento e a apresentação dos dados pesquisados. Desse modo, a Etnografia deixa de ser entendida como uma ciência que procura ter uma mera característica que trata as informações como quantitativas, mas como ciência que dará significado, qualidade, uma nova perspectiva e compreensão ao objeto estudado.

Nessa cadeia de significados iremos encontrar as duas faces de uma mesma realidade conhecidas como o Mito e o Rito. Para ELIADE (1998), Mito é

“uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares... Conta uma história sagrada; relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do ‘princípio’... uma história verdadeira porque sempre se refere a realidade”. [3]

O mesmo autor acredita que nas religiões, o mito é vivo no sentido de fornecer os modelos para a conduta humana, com significação e valor à existência. Partindo desse pressusposto, o que nos interessa é captar o sentido dessas pouco conhecidas formas de conduta, compreender suas causas e a justificativas dadas a elas. O tempo primordial é aquele em que o evento teve lugar pela primeira vez. MALINOSWKI (1926) é quem melhor tentou demonstrar a natureza e a função do mito nas sociedades “primitivas”. Para ele o Mito é:

“Ingrediente vital da civilização humana; uma verdadeira codificação da religião primitiva e da sabedoria prática; constitui-se expressão de uma realidade primeira, que determina a vida imediata, as atividades e os destinos da humanidade; satisfaz as necessidades religiosas, aspirações morais, a pressões e a imperativos de ordem social, e mesmo a exigências práticas”.[4]

Quanto ao Rito é definido como sendo o “Mito em ação”. Ele faz aparecer o Mito; Através dele é que o homem incorpora o mito, ele torna a crença e a transforma em ação, a aplica, torna-a real por meio da celebração. Todos esses elementos estão presentes na Festa de Caboclo estudada e que passaremos a abordar a partir de agora.

O ESPAÇO E A RITUALIDADE



A divisão do Espaço no Terreiro

Arte: Luciano Lima

1 – Casa do Babalorixá de Santo
11 – Assentamento à Ossaim

2 – Ilé Axê
12 – Ilê

3 – Roncó
13 – Tenda do Caboclo Tupi

4 – Ilê Ogum
14 – Exus dos Filhos de Santo

5 – Exu Onã
15 – Assentamento à “Pomba-Gira”

6 – Exu Oritá
16a e 16b – Banheiros

7 – Assentamento à Ogum
17 – Exu Odará

8 – Assentamento à Oxum
18 – Cozinha

9 – Iroko ou Tempo
19 – Assentamento à Oxalá

10 – Assentamento à Oxumarê ou Oxumaré
20 – Anexo da Cozinha



O espaço do caboclo é o espaço das matas, Seu Tupi é um caboclo de pena, morador das matas e detentor de um assentamento no terreiro. A festa em sua homenagem acontece intra muros, nos espaços do terreiro, abrangendo tanto os recintos sacralizados pelos rituais, quanto os espaços profanos reservados à moradia e convivência da familia do Babalorixá.

O espaço onde é celebrado a festa é constituido como um lugar sagrado e toda a natureza assume um caráter animista, pois todas as coisas ali presentes são vivas, aparentam consciência e tem “ânima”[5]. O local é transformado por estar carregado de mitos, um complexo conjunto de coisas que entram, destacando-se a vegetação abundante, as entidades que ali se manifestam, vagueiam e tomam seu lugar. A cerimônia suscitam emoções as mais diversas. Eliade (1998) apresenta uma conotação bem elaborada quando diz:

“Toda a cratofania[6] e toda hierofania[7], sem distinção alguma, transfiguram o lugar que lhes serviu de teatro: de espaço profano que era até então, tal lugar ascende à categoria de espaço sagrado”[8].


Dessa forma, o terreiro apresenta-se marcado por dois espaços o sagrado e o profano. O espaço sagrado está repleto de evidências rituais tanto de ordem alimentar quanto de ordem iconográfica e material de aspectos diversos. Todos os rituais que são celebrados pelos adeptos do culto ocorrem nos limites da área sagrada do terreiro.




O Chão Sagrado

Acervo GEPIAA

Assim, os espaços sagrados do Ilê Axé Ogum D’Ajulekan são evidentes para todos os presentes, sejam eles visitantes, frequentadores, clientes ou adeptos do culto. Contudo o acesso e o trânsito por esses espaços são restritos em graus diversos, havendo áreas de acesso exclusivo de poucas autoridades religiosas da casa e outras áreas de acesso mais amplo.

O CABOCLO TUPI E SUAS CARACTERISTICAS


Os caboclos da Umbanda apresentam características e traços bem parecidos, quando se remete e se alude aos objetos e utensílios utilizados pelos seus “cavalos”[9] logo após a incorporação. Esses objetos, como Arco, flecha e cuias, são verdadeiros apetrechos utilizados nos rituais ligados a esse modelo religioso e mostram como as entidades estão sincretizadas com os elementos da natureza e a vida do indígena em particular.

“Seu Tupi Aiá” preserva os traços de uma religiosidade primitiva, tirando da mata os seus utensílios e elementos feitos pelos índios e, por meio dos homens, transportados para os cerimoniais e para os trabalhos dedicados à caridade. Esses elementos culturais e de ornamentações, próprios dessa prática religiosa, apresentam significados próprios e diversos quando examinados os diferentes contextos a eles ligados (vida cerimonial, utilização nos trabalhos). Se tirados do seu contexto, perdem seu significado entre nós (a sua inteligibilidade original). Malinowski (1926) afirma que “... qualquer objeto, costume, ação ou símbolo deve ser estudado em relação ao contexto da vida social do grupo onde ocorre” [10]. O que nos interessa é captar o sentido e/ou significado que esses utensílios trazem nas cerimônias e nos cultos afros em que são apresentados.

Apesar da grande variedades de cores que são características das festas de caboclo e, também, se tenha observado que nas vestimentas de outros médiuns desenvolvidos com a mesma entidade haja a presença das cores amarela, azul e vermelha, as cores verde e branco ganham especial atenção nas vestimentas adotadas para o Caboclo Tupi e estão carregadas de simbolismo próprio.

Para uma breve abordagem acerca das cores utilizadas nas religiões de matriz africana, tomaremos como modelo o que é adotado por Turner[11]. Segundo este autor, os povos africanos dão estatuto especial às cores, sejam através das comidas, dos adornos, das pinturas e velas rituais, etc. Nas festas de Caboclos, essas cores assumem também características e significados especiais. As cores predominantes e mais utilizadas com maior frequência nas religiões de matriz africana são: branca, vermelha e preto. As demais cores, no entendimento e interpretação de Turner, são derivadas dessas três cores principais. Também, nas conclusões de Adolfo (2010)[12], A cor branca vem a ser a cor dos antepassados, positiva, representando ora a masculinidade, ora a feminilidade. Nos ritos reguladores das menstruações femininas, é a cor da pureza, simbolo da entrada numa nova vida - do renascer da morte para a vida espiritual dentro da religião -, e da renovação; A cor vermelha é a cor de caráter ambivalente, podendo ser positivo ou negativo. Ao mesmo tempo que vem a representar a vida, simboliza a morte ou o sacrificio ritual. Quanto ao laranja e o amarelo, estas cores vem a ser consideradas vermelhas. O uso do preto está inteiramente ligado a crença da necessidade de se expulsar as coisas negativas e maléficas. As cores azul e verde são considerados negros. O uso das três cores é um percurso de fruição espiritual e místico que consiste em libertar o sujeito das mazelas a que foi submetido.

Cheia de simbolos e significados, é preparada a festa mais antiga da Casa. Muitos filhos da casa se reunem para verem render homenagem áquele que acompanha o Babalorixá desde tenra idade. É a Festa Seu Tupi “Aiá”!

PREPARATIVOS PARA A FESTA

Todos os procedimentos adotados para a realização da festa implicam na idéia de submissão à autoridade espiritual da entidade homenageada e de reconhecimento da autoridade das hierarquias religiosas da casa, começando pelo Babalorixá que consagrou o local e que recebe a entidade. Os rituais obedecem à rígida estrutura hierárquica da casa. Todos sabem os seus papéis e o seu lugar na realização dos festejos. O respeito à hierarquia é fundamental pois organiza as dimensões materiais entre os membros do culto e as dimensões espirituais, evidenciando os niveis de autoridade e importância de cada entidade que irá se manifestar durante o festejo. A submissão à hierarquia torna esse processo possivel, pois ele auxilia no processo de transformação do lugar, de um mero espaço físico em um polo de forças sobrenaturais, uma fonte de forças e de sacralidade que permite a todos os presentes comungar nessa sacralidade, interagindo entre si e com as entidades manifestas.



Foto: Luciano Lima

Acervo: GEPIAA

Todas as determinações que a entidade espiritual transmite devem ser cumpridas. Essas exigências podem ser transmitidas através da própria entidade homenageada, manifestada na cabeça de seu filho, ou via uma série de outras situações, tais como as ordens emanadas por outras entidades que se disponha a colaborar e que se submetam à autoridade do caboclo homenageado ou ainda por vias oníricas, mediúnicas, etc. E isso acontece desde o primeiro momento em que o Babalorixá ou Mãe-de-Santo o consulta ou manifesta a intenção de realizar o festejo em honra da entidade. Na casa pesquisada, esse processo se iniciou 60 dias antes do festejo, a fim de saber se o caboclo estaria ou não de acordo com a realização do festejo e com as comidas e bebidas que iriam ser ofertadas a ele mesmo e ao público que estaria presente. Durkheim diz que:

“Os seres sagrados são, por definição, separados. O que os caracteriza é que, entre eles e os seres profanos, há uma solução de continuidade”[13].

Diversas reuniões foram feitas pelos participantes da casa, a fim de se definir os procedimentos que seriam adotados para o festejo, bem como decidir em que data aconteceria. Esses procedimentos estariam cuidadosamente sujeitados àqueles transmitidos pela entidade festejada. Percebeu-se que aconteceram interdições de diferentes espécies: as de caráter religioso e as que dizem respeito à magia e a beleza que envolve o evento. Nada pode ser feito, iniciado, começado, nada se pode fazer sem uma orientação prévia[14]. Durkheim (2000) diz que não sendo seguidas as recomendações, produz-se o que ele denomina de desordens materiais e penas propriamente dita, que visivelmente se manifestarão por meio de censura ou reprovação pública. Eliade (2001) acrescenta:

“Ao desobedecer, correm-se riscos, como aqueles aos quais se expõe um enfermo que não segue os conselhos de seu médico... a interdição religiosa implica necessariamente a noção do sagrado, vem do respeito que o objeto sagrado inspira e tem por finalidade impedir que falte esse respeito”[15].

Assim, o caboclo Tupi manifestou seus desejos, suas ordens, suas restrições e interdições ao festejo. E tudo teve que ser feito conforme a sua vontade expressa. Em depoimento oral, o Babalorixá disse que a entidade foi consultada diversas vezes a fim de seguir suas determinações.

Quando uma entidade sobrenatural consagra um local, o mesmo, por esse ato, se transforma num santuário, assumindo aspecto de semelhança com os locais sobrenaturais onde vivem as entidades. Esses espaços sacralizados são perceptíveis através de uma série de elementos, de símbolos ou de ocorrências de rituais específicos. Os simbolos apresentados na festa do caboclo Tupi manifestam uma força sagrada, representam uma manifestação da própria entidade celebrada e recebem dela força que assegura essa proteção e poder aos que deles fazem uso. Eliade (2001) diz que quando o espaço sagrado é consagrado pela teofania, torna-se aberto para o alto, um comunicante com o mundo espiritualista. Essa “Porta dos Céus” dá aos humanos o acesso ao mundo dos seres do além e vice-versa. O autor complementa: “...Santuários são “Portas dos deuses” e, portanto, lugares de passagem entre o Céu e a Terra”[16].

A festa de caboclo é uma prática umbandista, apresentando toda uma religiosidade reelaborada a partir das religiões de matrizes africanas, incorpora valores e representações espirituais que estão presentes no Catolicismo Romano. O ritual apresenta uma lógica natural e uma simplicidade existente em seus cultos, que lhe dar uma expansão horizontal de práticas ligadas à natureza.

A REALIZAÇÃO DA FESTA

Para a realização da festa de caboclo foi preciso muita dedicação, haja vista que o povo sempre quer ver o local bem organizado, bonito, bastante enfeitado e adornado com os mais diversos elementos que evoquem as representações e os simbolos ligados a entidade cultuada. Certamente é esse um tipo de festa que começa bem antes da data marcada e termina um dia depois. Além da prática ritualista ao homenageado, a casa passou por todo um processo de transformação: pintura, decoração com palhas, folhas, adornos nas estruturas do prédio e das plantas. Para o Caboclo Tupi foi preparado um local exclusivo. Na junça[17] foram colocadas diversas oferendas: frutas (banana, melancia, mamão, laranja, maçã, goiaba, uva, abacaxi, côcô, melão, maracujá e cacau), bebidas (vinho, cachaça, bebidas fermentadas), fumos (charutos e cigarros), velas (de diversas cores e tamanhos), imagens de santos (São Jorge, Oxum – saudada como Nossa Senhora Aparecida), caboclos e objetos indigenas (potes, arco e flecha, cuias, chocalhos e conchas) . A junça é o elemento de destaque e indispensável na festa de caboclo. Um acento foi colocado no local, para que no momento em que o homenageado chegasse, se acomodasse e recebesse os cumprimentos e honras dos convidados.




A Junça de Seu Tupi

Acervo: GEPIAA

“Eh, Pai Oxossi....” com este verso que alude ao Orixá Oxossi, o Babalorixá inicia a festa ao som dos atabaques e instrumentos de percussão, entoando-se cantigas sagradas e louvores atribuidos a todos os Orixás adorados na Umbanda. O som é alegre, forte e envolvente, além de bem executado pelos ogans da casa, que juntam suas vozes a do Babalorixá e dos filhos e filhas de santo que formam um circulo e dançam envolta do assentamento presente no meio do Ilê. Num clima de muita alegria, o Babalorixá canta em alto som ao seu Caboclo, que logo se apresenta e incorpora no seu “Cavalo”. Os atabaques batem cada vez mais forte e um a um os caboclos vão se apresentando e se apossando do corpo de seus “cavalos”[18]. É um clima de enorme entusiasmo que toma conta de todos os presentes na festa.




Transe ao som dos Atabaques

Acervo: GEPIAA

O transe ganha as atenções e um a um os filhos e filhas vão sendo tomadas por seus encantados. Parece existir uma hierarquia nas incorporações. Os mais antigos demoram mais para serem possuidos; percebe-se que têm um maior controle da incorporação, pois estão mais habituados, conhecem mais os sinais que são caracteristicos ao transe. Os atabaques tocam mais forte. Os ogans parecem demonstrar que o máximo de caboclos deverão estar presente na Festa, a fim de homenagearem Seu Tupi e prestarem-lhe as honras. Percebe-se que cada filho ou filha de santo possuido, veste-se com as indumentárias e ferramentas utilizadas pelas entidades. A cada transe, são levados para o Roncó para se vestirem com os trajes completos: roupas alegres e de cores, colares e chapéus de vaqueiros para adornarem suas cabeças, alguns são auxiliados por Cambonas[19] que trazem consigo as bebidas dos caboclos e fumos que lhe são caracteristicos. Seu Tupi se apresenta com suas roupas de cores verde e com detalhes em branco, não somente na “cabeça” do Babalorixá, mas possui a de muitos outros filhos e filhas de santo da casa e, também, de praticantes oriundos de outros terreiros.

Estão todos em terra: caboclos, caboclas, boiadeiros e marujos. As danças apresentam traços que são caracteristicos da entidade incorporada e executam, de uma forma clara, uma estrita codificação corporal, gestual e verbal. Os pés parecem sambar, dançam um frevo, ou dirigem o corpo num ritmo de chote e baião. Enquanto alguns bailam, outros cumprimentam os presentes, sempre respeitando as hierarquias presentes, até os mais simples que se aglomeram nas dependências do espaço do barracão. Alguns frequentadores aproveitam os momentos de transe para pedirem orientações para assuntos de interesses pessoais.

A festa é uma constituição de uma variedade de danças, ritmos e cantigas. São servidos vinhos, cervejas e outros tipos de bebidas alcoólicas. Enquanto alguns dançam, outros saboreiam uma carne assada, que vem acompanha com mandioca. Aos poucos os filhos e filhas de santo vão sendo “desvirados” e retornam ao barracão, para se deliciarem do banquete oferecido pelo Babalorixá.

ANÁLISE DAS CANTIGAS DO CABOCLO TUPI E SEUS SIGNIFICADOS


A festa do Caboclo Tupi é considerada uma festa tradicional pelos frequentadores da casa Ilê Axé Ogum D’Ajulekan e ocorre desde a firmação do caboclo Tupi na cabeça do Babalorixá. Portanto essa é a festa mais antiga e tradicional do que as festas de candomblé que a casa celebra. A festa é uma constituição de uma variedade de danças, ritmos e cantigas. Essas cantigas são mais conhecidas como pontos cantados[20], uma espécie de utilização mágica do som, ou seja, de acordo com sua entoação e frequências próprias, sustentam vibratoriamente o trabalho mediúnico. Esse clima propicia um estado de transe anímico e a festa, ao som dos atabaques, cria um ar de extrema alegria e expectativa tanto para os adeptos como para os frequentadores e participantes. Esses cânticos podem ser entoados com finalidades diversas: invocar entidades, marcar o inicio de sua incorporação ou desincorporação, criar formas mágicas para determinados trabalhos, abrir e fechar sessões, pedir forças espirituais, afastar espíritos maus, pedir perdão e diversas outras finalidades.

Tratando especificamente do culto voltado unicamente para uma entidade, no caso aqui o Caboclo Tupi “Aiá”, PRANDI (2001)[21] diz que todos os encantados tem cântigas apropriadas para a sua chegada, para a sua dança (enquanto está em terra) e para a sua partida, além de outras que podem ser cantadas em homenagem a eles, sem que os mesmos estejam presentes. Verdadeiras mantras, preces, rogativas, que atuam como “dinamis”[22] da natureza, fazendo com que se entre em contato com as forças espirituais. Ainda, segundo o autor, fazer isso sem conhecimento e sem fundamento, é extremamente prejudicial para o desenvolvimento do culto e à continuidade da verdadeira encantaria.




Babalorixá Hilton Monteiro entoando uma Cantiga de caboclo

Acervo: GEPIAA

Partindo desse pressuposto, analisaremos algumas cantigas entoadas ao Caboclo Tupi no Ilê Axé Ogum D’Ajulekan, que trazem no seus versos os traços de sua personalidade[23] bem como suas características enfatizando, também, uma resumida análise linguistica de palavras onde algumas dentre elas não constam em nosso dicionário, dando sentido ao texto. São palavras remanescentes e que sobreviveram das linguas utilizadas pelos ancestrais, sejam indígenas ou afros que mantém em cada uma das canções.

“Eu estava na minha aldeia

Quando ouvi tambor runfar

Eu pulei peguei o arco e peguei a flecha

E sai para guerrear

Meu Pai mandou me chamar

Eu vim salvar

Eu sou TUPI AIÁ”

Os adeptos dessa religiosidade acreditam que essa cantiga é entoada pela própria entidade logo na sua chegada. Uma espécie de apresentação. Para eles, cada linha cantada pode remonta para uma imagem, remonta um sentimento da própria entidade que o canta.

Logo na primeira linha observamos a palavra “aldeia” que ao ser utilizada na umbanda vem a significar a “falange”[24] que pertence o Caboclo Tupi. Dependendo da linha ou vibração[25] que se origina, o caboclo Tupi pode pertencer a de Oxossi, a Xangô, Ogum, Yemanjá ou Oxalá, que são os Orixás que regem as linhas de atuam dentro dos Terreiros de Umbanda. O som dos tambores é uma espécie de prece que o evoca, convocando a comparecer com seus instrumentos de caça e sempre pronto para a guerra. Os atabaques, objetos sagrados trazidos pelos escravos africanos para o Brasil, são utilizados em todos os rituais das religiões afro-brasileiras e exprimem a identidade profunda de um povo. A eles são atribuidas as simbologias da força e da vida do chefe de uma clã e de todo o seu povo.

Para o Babalorixá Hilton de Ogum, o pai que “o mandou chamar” é seu José Inca Tupinambá, a entidade chefe da falange dos caboclos Tupis. Essa liderança ligada as antigas civilizações Incas, Astecas e Maias que habitaram as regiões ameríndias, é uma entidade portadora de grande sabedoria. Acredita-se também que outras se originam de diversas outras regiões do planeta.

“Eu sou TUPI AIÁ”. “AIÁ” é de origem da palavra Ajaá (do tupi aia-á), que é o nome de uma árvore no Brasil, cuja madeira se presta para obras externas[26]. Para o Babalorixá Hilton de Ogum, o significado de seu nome o remete para a natureza de onde se origina. As árvores carregam o princípio de ancestralidade e estabelecem a dinâmica da relação entre os seres e a natureza. Na mitologia yorubana, a palavra “Aya” ou “Aia” é a divindade dos tambores, enquanto que no dicionário umbandista, vem a significar Toalha Branca para uso em terreiros[27].

Quando nesta casa entrei

Eu louvei Maria

Quando nesta casa entrei

Eu louvei seu santo dia

Percebe-se o forte sincretismo quando a entidade chega no lugar e reverência Maria, presente nos valores religiosos e espirituais da Umbanda, ora identificada com Oxum quando assume o papel de “Maria Virgem”, ora identificada com Yemanjá quando se manifesta como “Maria Mãe”[28]. É o desconhecido se apresentando e se identificando com elementos já conhecidos, a fim de não causar estranheza. Camargo (1961)[29] diz que isso remete ao sentimento de pertença daquele que busca as religiões mediúnicas e observa que boa parte dos frequentadores se consideram católicos.

Quando nesta casa entrei

olhei para a cumieira

Salvei o dono da casa

E a sua familia inteira

Bandole, ole, olá

Bandole, ole, olá

Bandole é caboclo

Bandole, ole, olá

As saudações fazem parte do comportamento (personalidade) das entidades. O olhar para a “cumieira”[30] é o respeito que se tem aquilo que sustenta a casa.

O verso “Bandolê, olê, olá” está presente em muitas outros pontos de caboclos, sendo mais comum nas cantigas entoadas aos “Caboclos Boaideiros”[31]. Supõe-se que a palavra “Bandolê” derive de duas palavras bantu: bando/banda + olelê/olalá[32]. A palavra bando/banda significa: lugar de origem de uma entidade umbandista (banda, linhagem, zona, província, distrito, parte de uma país); olelê/olalá é uma interjeição de alegria, no sentido de combater com alegria, ou que venha a significar um grito de Guerra, de animação, nos dando o sentido de que a “entidade vem de uma região, de uma linhagem, com gritos de guerra para combater com alegria”. A palavra “Caboclo” vem do tupi “Kareuoká” que significa cobre, acobreado. São espíritos guias das raças ameríndias, que possuem linguajar assemelhado aos dos indígenas[33].

Surucucu, Cascavel

Venho de Minas Gerais

Piso na folha seca

Vejo a cobra piá

Essa cantiga remete-o para um passado que o liga ao Estado de Minas Gerais, podendo se supor que se trate de uma trajetória de vida historicamente superada. A tese que se pode levantar é a do “fenômeno de reorientação de sua mensagem”. Essa proposta foi defendida por Prandi (2001)[34], quando apresenta que os referenciais africanos costumam ser transplantados para os caboclos e por estes revividos, a sua possível origem africana ligada as minas, serve de paradigma para a sua origem. Tratar-se de uma composição sincrética com Aruanda, quando abordado a partir do principio de mitificação do remoto.

As cobras Surucucu e Cascavel são encontradas nas regiões do norte e na mata atlântica dos Estados do nordeste. São cobras que seguem o calor dos animais que caça e, por terem um acurado sensor de calor, emitem um som com suas caldas ao perceberem que invadiram seu território. “A cobra pia” é uma afirmativa presente no relato de muitos sitiantes, seringalistas e indígenas.

Onça Tigre é meu cavalo

Surucucu meu gibão

Cascavel minha perneira

Coral é meu cinturão

Nessa cantiga, alude-se a idéia de que o Caboclo Tupi domina animais ferozes como a onça e o tigre, utiliza peças de roupa formada a partir da pele da Surucucu (Gibão - Veste de homem usada durante os séc. XIII a XVII, cobrindo o pescoço até um pouco abaixo da cintura), da Cascavel (Perneira - Peças de couro do vestuário masculino destinadas a proteger as pernas entre o joelho e o pé; são usadas por soldados e campeiros) e da Coral (Cinturão - Faixa larga e ordinariamente de couro, que se traz à cintura para guarda de armas e cartucheiras, ou dinheiro).

Tupinambá é rei

Onde Oxossi mora

Vem ver seus filhos

Que tanto choram

“Tupinambá” é uma palavra de origem tupi. Segundo o Dicionário Aurélio: um povo indígena extinto, da família linguistica tupi-guarani que habitava a costa brasileira, do Pará ao Rio de Janeiro. Na Umbanda, é considerada a entidade-chefe da falange dos caboclos tupis, e a cantiga alude muito bem a isso quando o chama de “rei”. A alusão ao Orixá “Oxossi” é pelo fato de se acreditar que ele seja a força motriz, mítica, desconhecida, a energia que impulsiona ou que alimenta qualquer atividade de origem espiritual[35]. Ele é o Orixá patrono das matas e das florestas. É sincretizado na Bahia com São Jorge e no Rio de Janeiro e Porto Alegre com São Sebastião.

Caboclo vai embora

Pra cidade da Jurema

O bom Jesus tá lhe chamando

Pra cidade da Jurema

Mas ele vai ser coroado

Na cidade da Jurema

Com a coroa de “ai ei ei ô”

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Caboclo junta a tua flecha

Junta teu badoque

O galo já cantou

O galo já cantou na aruanda

Oxalá te chama para outra banda

Essas duas cantigas são chamadas de “pontos de subida”, é o momento em que a entidade está se despedindo. Os pontos apresentam uma linguagem metafísica[36]. Essa linguagem é recheada de alusões épicas, quando fala de cidades (no caso aqui, a cidade da Jurema), deuses, heróis, coroas e, na maioria das vezes, apresentam referência a um lugar celestial, lugar de repouso e de descanso. No dicionário Umbandista, “Aruanda” significa “Céu, Nirvana ou Infinito significam a mesma coisa, isto é, a morada daquele que é criador de todos os mundos. Trata-se, pois de um dos planos da maior elevação espiritual, ou seja, o céu”[37].

Elas são cantadas repetidas vezes quanto necessário for, até se perceber a desincorporação dos médiuns.

CONCLUSÃO

Participando de uma Festa de Caboclo, percebe-se a presença de uma história que está ligeiramente ligada a um passado distante e fabuloso, onde os seus protagonistas assumem o papel de divindades e de entes sobrenaturais. Os seus ritos estão recheados de cantigas épicas e que fazem com que os seguidores, se comuniquem com essas entidades e vice-versa. Ao canto de canções ritualísticas, os seres são invocados a repetirem seus feitos milagrosos e, ao reaparecerem, prestar um serviço instrutivo e manipulador de forças contrárias ao bom estado de vida do individuo que pede suas orientações. A Festa do Caboclo Tupi é uma experiência que nos faz enxergar como toda uma ritualística é revivida e, por meio de um elaborado cerimonial, se desperta “do sono” a entidade e a atrai ao mundo dos vivos.

A Festa tem um caráter sincrético, ora utilizando elementos cristãos presentes no Catolicismo Romano, ora apropriando-se de objetos utilizados pelos indígenas das mais diversas regiões brasileiras e, por fim, conceitos e crenças africanas trazidas pelos escravos que para cá vieram, são incorporados ao Culto afro. Evoca-se os Orixás, Inquices, Vodus e Caboclos para que as homenagens e as honras sejam prestadas aquele que é o dono da festa: Caboclo Tupi “Aiá”.

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[1] Graduando em História pela Universidade Federal de Rondônia e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares Afros e Amazônicos – GEPIAA.

[2] Doutor em Ciências do Desenvolvimento Socioambiental pela UFPA. Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Rondônia. É Coordenador do GEPIAA/GEPRA.

[3] ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 5ª edição, 1998.

[4] MALINOSWKI, B. Myth in Primitive Psychology, Apud ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 5ª Edição, 1998.

[5] Palavra que vem do latim e significa Alma, vida.

[6] Cratofania, ou Teofania, é, por excelência, um lugar de poder e de sacralidade. O espaço, como o próprio sagrado, é, porém, ambivalente. É lugar de vida e de morte. Atrai e atemoriza. De um modo geral, entretanto, as religiões vétero-orientais destacam o elemento positivo do espaço sagrado.

[7] Este termo é cômodo, porque não implica qualquer precisão suplementar: exprime apenas o que está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que algo de sagrado se nos mostra.

[8] ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões. 2ª Edição. São Paulo. Martins Fontes, 1998.

[9] Quando a Entidade toma conta da mente e do corpo do médium na Umbanda.

[10] ARANTES, Antônio Augusto. O que é cultura popular. São Paulo: Brasiliense, 1984.

[11] TURNER, Victor. Floresta de símbolos – Aspectos do ritual Ndembu. Tradução de Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto. Niterói: EDUFF, 2005.

[12] ADOLFO, Sérgio P. Artigo: O Simbolismo das cores no Candomblé de Congo-Angola. Publicado no site: http://mbanzakongo.blogspot.com/2010/06/o-simbolismo-das-cores-no-candomble-de.html. Acessado em 15.02.2011.

[13] DURKHEIM, Emile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. O sistema totêmico na Austrália. São Paulo, Martins Fontes, 2000.

[14] ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo, Martins Fontes, 2001.

[15] Idem.

[16] Ibidem.

[17] Quarto de caboclo.

[18] Essa nominação é dada aos filhos e filhas de santo possuídas pelas entidades.

[19] São mulheres que assumem o papel de “monitora”, bem parecido com as funções de uma Ekede no Candomblé. Nos rituais, orientam àqueles que recebem os espíritos, conduzindo-os aos pejis, as paramenta com suas roupas e objetos correspondentes.

[20] Letra e melodia de cântico sagrado, diferente para cada entidade. É uma prece evocativa cantada que tem por finalidade atrair as entidades espirituais, homenageá-las. Quando chegam e despedi-las quando devem partir. Assim os pontos podem ser apenas de louvor ou cantados com finalidades rituais durante determinadas cerimônias.

[21] PRANDI, Reginaldo (Org.). Encantaria Brasileira: O livro dos mestres, caboclos e Encantados. Rio de Janeiro: Pallas, 2001.

[22] Palavra grega que significa “virtude”.

[23] Quando falamos de personalidade estamos nos referindo a forma de trabalho da entidade

[24] Grupo de entidades que estão sob o comando de uma entidade chefe.

[25] Remete aqui para o mesmo significado de falange. Ver citação 31.

[26] Dicionário Michaelis. Uol: 2010.

[27] Disponível no Site: http://www.novaera.blog.br

[28] SARACENI, Rubens. Orixás: Teogônia de Umbanda. São Paulo: Editora Madras, 2005.

[29] CAMARGO, Candido Procópio Ferreira de. Kardecismo e Umbanda: Uma Interpretação Sociológica. São Paulo: Editora Livraria Pioneira, 1961.

[30] A cumeeira representa e guarda os mistérios de cada casa e de seu sacerdote, é nela que seu Orixá se apóia para que sua casa sobreviva ao tempo.

[31] São considerados Espíritos de pessoas que em vida trabalhavam nas fazendas e ligada a imagem do peão boiadeiro: ágil, valente e de grande força física.

[32] ANGENOT, Jean-Pierre & ANGENOT, Geralda de Lima. Glossário de Bantuismos Brasileiros presumidos. Publicação Online do Site: http://www.campusguajara.unir.br,

[33] PINTO, Altair (Org.). Dicionário da Umbanda. 6ª Edição. Rio de Janeiro: Eco, 1990.

[34] Citação 28.

[35] PASSOS, Elizabeth Miriam P. Artigo: Oxossi: o caçador de almas.

[36] Metafísica aqui no sentido aplicado por Hume de que está surge unicamente como conseqüência das ilusões em que a linguagem nos envolve.

[37] Citação 40.

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Manoel Messias Pereira

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