O jazz que vem da Etiópia
19/03/2011 07:00
Fonte: Estadão
Bill Murray está largado no sofá com o mesmo olhar perdido do filme Encontros e Desencontros, de Sofia Coppola. Seu personagem aqui é Don, de Flores Partidas, de Jim Jarmusch. Uma carta anônima o atormenta: ele teria um filho, já adolescente, que quer conhecê-lo. Um vizinho tenta apaziguar as inquietações do amigo e coloca um CD: "Música etíope, faz bem ao coração", diz ele. A faixa que toca é Yèkèrmo Sèw, de Mulatu Astatke, e as palavras do vizinho, interpretado por Jeffrey Wright, definem com simplicidade o impacto do primeiro contato com a obra do maestro, arranjador, instrumentista e compositor. Aos 68 anos, ele se apresenta em São Paulo hoje e amanhã, no Sesc Vila Mariana, com ingressos esgotados para os dias em menos de duas horas. Mulatu é um dos músicos mais cultuados de todo continente africano e um jazzista com um sotaque de causar ao mesmo tempo fascinação e estranheza aos ouvidos ocidentais. Seu vibrafone projeta paisagens sonoras do Oriente Médio e sua percussão balança num calor caribenho tudo meticulosamente entrelaçado. Essa combinação foi batizada de ethio-jazz nos anos 70, num raríssimo caso de um gênero musical associado quase que totalmente a um único artista. Os anos 80, no entanto, foram ruins para a Etiópia e para Mulatu. Enquanto guerras e fome devastavam o país, o músico parou de gravar. A redescoberta começou no final dos anos 90, por intermédio de DJs e relançamentos, e se amplificou com o filme Flores Partidas. No ano passado, ele lançou o disco Mulatu Steps Ahead, mais de 30 anos depois sem um trabalho solo. Em turnê, atendeu ao telefonema do Caderno 2+Música em Londres, um pouco antes de embarcar para o Brasil. Como o senhor criou o gênero conhecido por ethio-jazz? Foi há mais ou menos 40 anos. Eu morava nos Estados Unidos, entre Boston e Nova York. Eu tinha um grupo, que misturava música etíope com jazz. A música etíope é sempre baseada em um conjunto de escalas de cinco notas e o ethio-jazz são essas cinco em choque com as doze da escala ocidental. Para manter a atmosfera do som, eu sempre tenho que tomar cuidado para manter as cinco notas dominando, lá em cima. Sua música é cinematográfica, projeta imagens ao ouvinte... São as fusões, a maneira como misturo essas escalas e como componho. Você sabe, o homem pode ver os seus sentimentos e a música espalha isso. A música de Mulatu Steps Ahead pode ser chamada de ethio-jazz ou é um estilo novo? Existem composições com um novo estilo dentro da música jazz. Os outros trabalhos que fiz também tinham mais de um pensamento nas composições, mas as coisas tinham começo e fim. Em Mulatu Steps Ahead existem músicas com diferentes humores e andamentos. Fazer diferente faz com que o músico pense e trabalhe mais. Como era tocar jazz na Etiópia nos anos 60? Havia muitas bandas, big bands e orquestras, mas eu sempre quis ser diferente de tudo isso. Eu queria tocar jazz do jeito etíope e a abordagem era diferente naquela época, era mais difícil. Isso foi há mais de 40 anos, hoje todos tocam jazz: a América toca seu jazz, a Suécia toca seu jazz, a Alemanha toca seu jazz. Estou muito feliz por tocar no Brasil. No futuro, quero fazer contato com músicos brasileiros para um projeto. O senhor tocou com Duke Ellington em 1973, durante uma turnê pelo Egito. Como foi? Vou admirar Duke por toda minha vida. Assim como Quincy Jones. Foi como mágica ter a chance de tocar com ele. Ele fazia lindos arranjos baseados nas músicas de igreja. Eram bons tempos, muito bonitos. é verdade que o senhor gravou com Alice Coltrane (jazzista morta em 2007, que foi casada com John Coltrane)? Sim, nós fizemos algumas músicas quando ela foi para a Etiópia. Gravamos em uma estação de rádio. E onde está esse material? Bem, foi gravado em uma estação de rádio. Provavelmente ficou guardado lá. Estou procurando isso, mas viajo muito tocando e fico pouco em casa (na capital da Etiópia, Addis Adaba). Mas preciso insistir com o pessoal da rádio para encontrar essas gravações. Como surge a inspiração de suas músicas? As coisas surgem na minha mente. Eu ando bastante e quando eu ando as coisas vêm. é assim que funciona. Qual foi a importância do filme Flores Partidas para a redescoberta de sua música? Jim Jarmusch é um diretor que admiro e que realmente pensou na minha música. Depois do filme, tive uma experiência diferente em Nova York: toquei em alguns lugares como o Winter Gardens e havia jornalistas do New York Times e do Los Angeles Times em todos os shows. Todos fizeram boas críticas e resenhas sobre os shows, sobre o ethio-jazz e sobre o filme. E qual é a sua expectativa para os shows em São Paulo? Estou muito, muito ansioso mesmo. é minha primeira visita ao Brasil e realmente me interesso pelo seu país. Toda a turnê tem sido bem-sucedida, todos os shows com ingressos esgotados. é uma coisa muito boa, meu amigo. ENQUANTO OS LíDERES FAZIAM GUERRA... A virada dos anos 60 para os 70 inspirou experiências jazzísticas em todo o continente africano. Se Mulatu inventou o ethio-jazz com uma mistura de sotaques latino e árabe depois de viagens para o Estados Unidos, o nigeriano Fela Kuti (1938-1997) também criou um gênero depois de visitar o país. Estimulado pela combinação do tradicional highlife com os improvisos de Miles Davis e John Coltrane e pelo funk de James Brown, ele criou o afrobeat um mantra em forma de groove, com pontuação marcante dos metais, acento percussivo e improvisos. Gravou mais de 70 discos em pouco mais de 30 anos e transformou a música numa arma para combater e criticar o regime militar da Nigéria. Na áfrica do Sul, o trompetista e compositor Hugh Mazekela também se apropriou do jazz para entrar para a história do país. Seus primeiros lampejos, ainda nos anos 50, seguiam os caminhos dos discos de 78 rotações que ele ouvia de artistas como Louis Armstrong, Count Basie e Sarah Vaughan. Nos 60, exilou-se em Londres após o massacre de Sharpeville em que 69 pessoas foram assassinadas pela polícia, num dos episódios mais emblemáticos dos anos de Apartheid. Estudou música em diferentes escolas e cidades de vários continentes durante a década de 70, fez amizade com Dizzy Gillespie e voltou ao país natal apenas nos anos 90. Quase simultaneamente, outros músicos africanos adicionaram o molho próprio na receita jazzística e funkeada: Manu Dibango nos Camarões, Salah Ragab no Egito, Ebo Taylor em Gana, a Orchestre Poly-Rhythmo de Cotonou em Benin... Foram anos em que a áfrica improvisou para compensar o sofrimento de guerras e miséria.
©UN | Plugar Informações Estratégivas S.A
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Pesquisar este blog
Seguidores
Arquivo do blog
-
▼
2011
(1888)
-
▼
março
(212)
- Selena Quintanilla-Pérez
- Em 31 de março de 1596 - nasceu o filósofo Descart...
- Operação Brother Sam
- Fatos Históricos Políticos e Sociais
- Movimento Negro e associações reagem às declaraçõe...
- Leitura do Rei da Vela na USP
- OAB encaminha ação contra Bolsonaro por quebra de ...
- Baby Can I hold you
- Fatos Históricos Artísticos e Literários
- Fatos Históricos Políticos e Sociais
- Fundação Getulio Vargas
- Iniciação Científica na USP
- Cantora Preta Gil processará deputado Racista Jai...
- Morre José Alencar, vítima de câncer
- Para Larissa
- Grândola, Vila Morena (25 de Abril)
- Fatos Históricos Artísticos e Literários
- Fatos históricos Políticos e Sociais
- Timor : Centro de Refugiado debatido na Conferênci...
- Angola e a Republica Socialista do Vietname eleger...
- Reajuste da Tabela do IRPF
- ZIZI POSSI " A PAZ "
- Fatos Históricos Artísticos e Literários
- Fatos Históricos Políticos e Sociais
- Escolas indígenas receberão investimentos de R$7 m...
- CDH vai debater Estatuto da Igualdade Racial ...
- Caetano Veloso vê racismo contra Maria Bethania
- Hoje comemoramos
- Manifestação pro Kadafi no Mali
- Ruty Levi analisa a arquitetura brasileira do inic...
- Advogado Dr. Philippe Missamou assimila bombardeio...
- Oração
- Limites do Amor
- Inverno nuclear
- Somewhere over the rainbow sarah Vaughan.mov
- Fatos Históricos Artísticos e Literários
- Fatos Históricos Políticos e Sociais
- O Brasil redescobre Elis Regina
- Brasil não tem lei federal específica para combate...
- Morreu Cibele Dorsa
- As diferenças em pauta
- na solitude do mar
- Legado
- Do inquieto oceno da multidão
- Sonata ao Luar - Beethoven
- Fatos Históricos Artísticos e Literários
- Fatos Históricos Políticos e Sociais
- Palestra na USP -"Arquitetura em Moçambique"
- A história do bairro do Bexiga
- Agostinho Brandi ministra palestra na ACIRP
- Morre Tomaz Farkas aos 86 anos
- PCB NA TV - MARÇO 2011
- Fatos históricos Artísticos e Literários
- Fatos Históricos políticos e Sociais
- Casa da Passagem Indígena
- Bairro da Liberdade sedia eventos em favor de víti...
- Keri Russell's goin' down...
- Fatos históricos artísticos e literários
- Fatos ´Históricos Políticos e Sociais
- Desfazendo o Mito em torno da princesa Isabel
- Funcionamento do Cérebro Humano
- Festa de Caboclo :Um olhar etnográfico
- Governo Brasileiro se curva ao imperialismo
- Exposição sobre o Bairro da Luz em São Paulo
- MEC lança bolsa mestrado para professores
- Ministra Maria do Rosário acompanha a busca de cad...
- Regina Chueire recebe a Medalha Rut Cardoso
- George Benson - Give Me The Night
- Fatos Históricos Artísticos e Literários
- Fatos Históricos Políticos e Sociais
- Ziggy Marley na Reggae nigth
- Aos Educadores
- A LISTA DE SCHINDLER- FILME MISSIONÁRIO
- Faos Históricos Artísticos e Literários
- Fatos Históricos Políticos e Socais
- Os anos 70: Vladimir Hezorg e sua experiência pion...
- O Planejamento escolar
- Sem Você
- Em louvor de Propertius
- Ato ao acaso
- Fatos Históricos artísiticos e Literário
- Fatos Históricos Políticos e Sociais
- Indigenas Xerentes realizam audiência pública pra ...
- 16. Festival Internacional de Documentários
- EUA e Grã Bretanha disparam 110 misseis na Líbia
- Obama falará para celebridades no Rio de Janeiro
- A cura das dores de amores
- Um dia ela libertará
- Solidão
- Il Guarany - Bailado do 3º Ato - 2ª Parte
- Fatos Históricos artísticos e Literários
- Fatos Históricos Artísticos e Literários
- Fatos Históricos Políticos e Sociais
- Mulatu Astatke - Yekermo Sew
- O jazz que vem da Etiópia
- Olimpia-SP
- São José do Rio Preto-SP
- Lykke Li - Let it fall
- Fatos Históricos Políticos e Sociais
- Karl Marx
-
▼
março
(212)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
opinião e a liberdade de expressão