Negros esquecidos: a herança maldita na literatura brasileira
Em 2011 um comercial da Caixa Econômica Federal retratou o escritor Machado de Assis como um dos mais antigos correntistas da empresa. O objetivo era comemorar os 150 anos da instituição, mas o resultado foi uma chuva de críticas de entidades ligadas às questões raciais. A peça trazia Machado, um afrodescendente, interpretado por um ator branco.
Por Tory Oliveira, em Carta Capital
Para o organizador da recém-lançada antologia de Literatura e Afrodescendência no Brasil, os autores negros continuam sendo ignorados / Foto: Washington Alves
Criticada pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir), a Caixa prontamente tirou o vídeo do ar com um pedido de desculpas.
Para o especialista em literatura afro-brasileira Eduardo de Assis Duarte, o caso foi apenas mais um no esforço histórico para apagar as raízes africanas do escritor. Lançada em 2011 e organizada por Duarte, a antologia Literatura e Afrodescendência no Brasil (Editora UFMG) reúne vida, obra e análise crítica de cem autores negros em 2 mil páginas e quatro volumes.
O objetivo é ampliar a visibilidade e a reflexão a respeito dos escritores afro-brasileiros. Em entrevista concedida por telefone a Carta na Escola, o doutor em Literatura pela USP fala de novas leituras possíveis de autores consagrados, de preconceito e dos entraves ao ensino da literatura afro-brasileira nas escolas.
Carta na Escola: Como o professor pode usar a antologia Literatura e Afrodescendência no Brasil para selecionar autores e ler com seus alunos?
Eduardo de Assis Duarte: A antologia é fruto de uma pesquisa de dez anos, envolvendo 71 professores e pesquisadores vinculados a 21 universidades brasileiras e a seis universidades estrangeiras. Procuramos cobrir a produção dos afro-brasileiros em todas as regiões do País e, com isso, dar visibilidade a autores relegados, tanto por estarem distantes dos grandes centros - como por tratar da questão racial.
Procuramos construir uma obra útil ao professor em diversos sentidos. Lá, ele encontra não apenas autores completamente esquecidos, como o poeta paulista negro Lino Guedes, como também autores clássicos, como Machado de Assis, que foram embranquecidos pelo sistema e apresentados como indivíduos alienados de sua condição étnico-racial e mesmo alheios aos problemas do seu tempo.
CE: Como o senhor definiria a literatura afro-brasileira? Ela é caracterizada pelo autor ou pela temática?
EAD: Pelos dois. Mas, isoladamente, nem o autor nem a temática são suficientes. Porque há, por exemplo, autores brancos que falam do negro a partir de uma -perspectiva dominante, europeia. E, muitas vezes, o negro é colocado como uma figura folclórica ou apenas como o tema. É preciso uma articulação entre autoria e temática e, subjacente a ambas, o ponto de vista identificado com a afrodescendência, ou seja, com a visão de mundo do negro.
Quando você tem um ponto de vista afro identificado, isso interfere na linguagem, e a linguagem dessa literatura surge despida dos estereótipos e dos valores disseminados pelo o que a gente chama de “branquitude” hegemônica. Essa conjunção de autoria, temática, ponto de vista e linguagem – todos eles fundados no ser e no existir do negro – visa atingir um quinto elemento dessa construção cultural, que é a formação de um público receptor afrodescendente. Só a partir dessas cinco instâncias é possível falar de uma literatura afro-brasileira ou negra na plenitude do termo.
CE: Alguns autores como Cruz e Sousa e Lima Barreto já são estudados nas aulas de Literatura, tratá-los como autores afro-brasileiros mudaria o modo como são estudados?
EAD: Sem dúvida. Cruz e Sousa é apresentado aos estudantes como um “negro de alma branca”, um poeta alienado de sua condição ética e social. E, em geral, só são lidos seus primeiros textos, marcados pelas repetições de imagens caras ao simbolismo. Os poemas mais maduros, como O Emparedado, em que ele faz uma crítica muito forte ao racismo embutido na ciência e na filosofia da segunda metade do século 19, ficam de fora.
Então, ver Cruz e Sousa como um autor negro dá abertura para a leitura desses textos mais políticos. A mesma coisa com Lima Barreto. Ele é apresentado como um romancista menor, uma espécie de cronista de subúrbio, ainda acusado de escrever mal. Com isso, fica de lado todo um trabalho de Lima Barreto com os afrodescendentes. Eu citaria, por exemplo, o preconceito racial que é transformado em drama literário por ele. Essa questão está presente em dois de seus romances esquecidos. O primeiro é Recordações do Escrivão Isaías Caminha e o outro é Clara dos Anjos, em que a questão da mulher afrodescendente é colocada de outra forma.
Normalmente, a literatura brasileira hegemônica trata a mulata dentro daqueles estereótipos da mulata assanhada e sensual. Em Clara dos Anjos a coisa é diferente: você tem um caso de sedução de uma menina mulata por um branco, em que ela é abandonada. As relações inter-raciais são trabalhadas tanto em Lima Barreto quanto em Cruz e Sousa de maneira problemática e não como um aspecto folclórico, festivo, carnavalesco do País.
CE: Recentemente, tivemos o caso do comercial da Caixa Econômica Federal que mostrava um Machado de Assis “embranquecido”. O que caracteriza Machado de Assis como um escritor afrodescendente? Existe esforço da crítica em minimizar esse fato?
EAD: É um problema. Há um esforço histórico no Brasil de embranquecimento de Machado de Assis. Quando Machado morre em 1908, foram emitidos dois documentos. O primeiro é um atestado de óbito que afirma que ele é branco. Mas a máscara mortuária, tirada no mesmo dia, expressa com toda nitidez seus traços de afrodescendente. O episódio da Caixa Econômica é apenas mais um capítulo e deve-se destacar, inclusive, a pronta intervenção dos órgãos governamentais que, sensíveis às milhares de mensagens de protesto surgidas na internet, logo se desculparam e substituíram o comercial.
Os romances machadianos recusam o panfletarismo e o imediatismo da luta política daquela época e adotam a “poética da dissimulação”, conjunto de procedimentos em que a ironia é apenas a ponta do iceberg. Muitas vezes, para falar do negro, Machado fala do branco. Um ponto curioso no projeto romanesco do escritor é que ele mata os senhores de escravos em quase todos os livros. Em Memorial de Aires, Machado mata o barão de Santa Pia logo após o fim da escravidão.
O velho escravocrata não aguenta ver a festa dos negros celebrando a abolição e morre três semanas depois. O curioso é que a herdeira da fazenda distribui a terra entre os antigos escravos. É a primeira cena de reforma agrária do romance brasileiro. Ninguém comenta isso. Machado sempre foi contra a escravidão, mas havia um pudor imenso quanto à utilização do texto panfletário na literatura. Nas crônicas, que são muito pouco estudadas, ele é muito mais explícito. Mas ali ele estava protegido pelo pseudônimo. José Galante de Sousa, um dos maiores estudiosos da obra machadiana, anotou 23 pseudônimos em textos de Machado de Assis.
CE: O escritor moçambicano Mia Couto, na Conferência Internacional de Literatura, em Estocolmo, declarou que “a África tem sido sujeita a sucessivos processos de essencialização e folclorização, e muito daquilo que se proclama como autenticamente africano resulta de invenções feitas fora do continente. Os escritores africanos sofreram durante décadas a chamada prova de autenticidade: pedia-se que seus textos traduzissem aquilo que se entendia como sua verdadeira etnicidade”. Em que medida tratar os autores por sua etnia não acaba reduzindo a apreciação de sua produção artística?
EAD: Mia Couto está certo. Há uma idealização da África, mas acontece que essa queixa não se pode aplicar a qualquer outro continente ou país. Basta ver o caso brasileiro: nós habitamos um país “abençoado por Deus e bonito por natureza” e somos um país com uma espécie de “essência mestiça” que nos faz alegres, tolerantes, receptivos, sensuais etc. Quantos de nós não acreditamos piamente nisso? Muitos autores negros vão acabar idealizando uma “Mãe África” até como -forma de se contrapor a essa ideia de -paraíso tropical difundida aqui pelo pensamento hegemônico brasileiro.
Quando nós falamos de literatura e afrodescendência, não estamos sendo benevolentes ou abrindo mão de abordagens críticas. Em toda produção cultural há obras boas e ruins. Se hoje muitos escritores fazem questão de se declarar negros e afirmar em seus textos os valores inerentes à essa condição, certamente eles têm razões históricas para isso. Não seria um gesto de legítima defesa? No dia em que o Brasil for uma sociedade multiétnica e verdadeiramente democrática, acho que não vai haver necessidade de cunhar essa vertente das nossas letras com o qualificativo de “negra” ou “afro-brasileira”.
CE: A lei que determina a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira (n.º 10.639/2003) mudou a recepção desse tipo de literatura nas escolas?
EAD: Ela tem mudado, mas muito lentamente. Na maioria das escolas, a lei só é lembrada em 13 de maio e 20 de novembro. Isso porque falta à maioria dos professores capacitação e mesmo repertório para tratar das questões com os alunos de forma adequada. Até hoje, os cursos voltados à formação docente ignoram solenemente a cultura e a literatura afro-brasileira. Mas sou otimista, acho que estamos indo em frente, no caminho certo. Nosso núcleo de pesquisas da UFMG recebe e-mails de professores do Brasil todo, empenhados em trabalhar esses conteúdos.
CE: Quais são os entraves para o ensino efetivo da literatura afro-brasileira nas escolas?
EAD: O principal entrave é o preconceito. Achar que essa literatura é coisa menor, sem relevância ou qualidade estética. Em seguida, outro entrave é a omissão que você vê nos manuais e nos livros didáticos, que ignoram em grande medida esse segmento da literatura brasileira.
CE: Quais são os caminhos que o professor de Ensino Médio deve seguir para abordar o tema da literatura afro-brasileira nas salas de aulas?
EAD: O primeiro caminho é ler os autores. Tenho certeza de que esses professores, quando lerem Solano Trindade, Carolina de Jesus, Joel Rufino dos Santos, Ney Lopes, Miriam Alves, Ana Maria Gonçalves, Oswaldo de Camargo e muitos outros, vão gostar e, se forem de fato educadores, vão querer levá-los para seus alunos.
CE: Como o senhor avalia a atual situação da literatura negra no Brasil? Existe espaço para esses autores nas grandes editoras?
EAD: É um espaço reduzido. Nos últimos 30 anos, houve um grande incremento dessa literatura, mas a partir de esquemas alternativos. Em São Paulo, você tem o grupo Quilombhoje, que publica desde 1978, em forma de produção cooperativada, os Cadernos Negros. Fora isso, há editoras pequenas focadas nessa produção.
Aqui em Belo Horizonte, temos duas editoras: a Mazza, com mais de 25 anos, focada nessa temática, e, recentemente, a editora Nandyala. No Rio de Janeiro, há a editora Pallas, com mais de 500 títulos publicados. Em São Paulo, novamente, existe o Selo Negro, do grupo editorial Summus. Mas, quase semptre, as grandes editoras ignoram essa produção, pois estão preocupadas com autores canônicos e também com os best sellers.
Fonte: Carta Capital
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