sexta-feira, 9 de março de 2012
A estrada da Revolução: A cidade dos murmúrios
Estrada da Revolução: A cidade dos murmúrios
Sariha, uma mulher de vestes e véu negro, tem duas filhas a combater nas montanhas. «Só há guerrilheiros porque continuamos a não ter os mesmos direitos que os turcos – a nossa língua e a nossa cultura são proibidas».
Mehmet Budak, um calmeirão com o penteado moldado a gel, interrompe: «Nos anos 80, quando iniciámos a luta, não podíamos falar curdo na rua, não podíamos ouvir cassetes de música curda, não podíamos ter nomes curdos. Passo a passo, fomos conquistando direitos. A autonomia há-de chegar». Para trás ficaram os tempos em que Leyla Zana, deputada do BDP, foi presa durante 12 anos por ter falado em curdo no Parlamento. Mas a Roj TV, a única estação a emitir em língua curda (a partir do estrangeiro), foi encerrada esta semana pelo Estado dinamarquês, por pressão do Governo turco. «Temos imensos jornalistas presos. O editor de um jornal de Diyarbakir foi condenado a 360 anos de prisão. Limitou-se a defender a nossa causa, mas foi acusado de incitar ao terrorismo».
Segundo o BDP, há cerca de 5 mil políticos e activistas curdos presos. O primeiro-ministro Recep Erdogan deu mostras de alguma abertura para solucionar um problema que já matou 45 mil pessoas: admitiu programas em curdo na televisão e encetou negociações com Abdullah Oçalan, fundador e líder histórico do PKK, condenado a prisão perpétua em 1999 e detido na ilha de Imrali, no mar de Marmara, também conhecida como a Guantanamo da Europa. No entanto, depois das eleições de 2011, Erdogan terá cessado as reuniões secretas com Oçalan, prendeu os seus seis representantes legais e endureceu as operações militares contra o PKK, levando os 8 mil guerrilheiros a ripostar. Há quem tema uma nova guerra civil.
«Os curdos foram sempre oprimidos nesta região», diz Mehmet Ermin, presidente da Associação de Direitos Humanos. «Desde o tempo dos otomanos houve 29 movimentos de rebelião, 19 dos quais no tempo da República da Turquia [desde 1920]». Depois da descoberta da vala comum, chegam cada vez mais pedidos para encontrar desaparecidos.
Chega uma carta a denunciar um acontecimento relativo a 1994, quando 11 miúdos, que partiam para se juntar ao PKK nas montanhas, foram interceptados pelas forças de segurança, assassinados e queimados. Só 18 anos depois é que alguém ganhou coragem para denunciar o caso. «É uma sociedade em que o risco de morte está sempre presente», diz Ermin. «Ainda há dois meses mataram dois miúdos numa manifestação. Queimam aldeias e destroem colheitas. Na semana passada, fizeram raides aqui na associação, na Câmara, em associações de jovens. Prenderam pessoas e levaram documentos».
Sultan Coban, uma dinamarquesa de ascendência curda a estudar em Istambul, faz parte da rede de activistas internacionais do BDP. «Há rapazes que recebem sentenças de dezenas de anos por atirarem pedras à Polícia. Quando recebem a sentença, preferem juntar-se à guerrilha das montanhas a ir para a prisão. Há mães que têm um filho nas montanhas, no lado do PKK, enquanto o outro é obrigado a fazer serviço militar no exército turco. Esta guerra sangrenta leva irmãos a disparar um contra o outro».
Histórias como estas são contadas pelos cantores de Dengbêj, recitadores de poemas épicos sobre os mais de 5 mil anos dos curdos nesta região. Após o golpe militar de 1980, com a criminalização da língua curda, os velhos cantores de Dengbêj foram silenciados. «As cassetes foram destruídas e quem fosse apanhado com uma era preso e torturado», diz Mehmedê Pîrsgîrêkvan, de 58 anos, barba grisalha e olhos de lobo da montanha. Em 1991, o curdo voltou a ser autorizado na indústria musical e, em 2007, o município de Diyarbakir fundou a Casa de Dengbêj.
Reunidos em redor de três mesas apetrechadas de tabuleiros de chá preto, estão 18 velhos cantores agarrados a masbaha (rosários islâmicos). Um deles, Seyithan Simsek, de 80 anos, coloca a mão esquerda atrás da orelha e, com uma expressão de sofrimento, solta os versos do seu povo, a cappella, porque são as palavras que mais importam. Canta desde os sete anos e a sua voz é tão forte que não se sente a falta de acompanhamento musical. «Não escrevemos estas canções. Elas fazem parte da nossa tradição oral», diz Mehmedê.
Um a um, os trovadores mostram os seus dotes, intervalados por aplausos e tosses de catarro. Simsek termina com uma letra sobre a liberdade. É uma melodia nostálgica, comovente, que soa a tiros nas montanhas, súplicas a Deus e gemidos nas masmorras.
Saindo da casa do Dengbêj, ainda se consegue ouvir a voz de Diyarbakir, abafada pela neblina nas ruas estreitas e milenares. É um murmúrio sofrido, uma súplica encolhida, um segredo amordaçado. As muralhas negras têm ouvidos e do alto das 82 torres que circundam a cidade há sempre alguém a observar.
Fotografias de João Henriques
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