Casa-Grande e Senzala: Estudo e Relação com Base na Cultura Material
por Fábio Rodrigues Teles e Aline Rios Oliveira Moreira
Introdução
A arqueologia histórica é uma área da ciência ainda incipiente no Brasil, sobretudo no que diz respeito a pesquisas realizadas sobre grupos subordinados. Este artigo tem como principal objetivo tentar entender, de uma forma mais ampla (a partir de estudos realizados pela historiografia e pela arqueologia, através da cultura material) as relações entre a casa-grande e a senzala, ou seja, os senhores de engenho e os negros africanos durante o período de escravidão no Brasil, dando um enfoque maior a questões como religião, cotidiano e resistência dos escravizados. A arqueologia, a partir da herança material deixada por esses últimos e dos registros históricos busca compreender de que forma se davam essas relações, de maneira a confrontar estas duas fontes de informação (artefato e documentação) para obter maiores informações sobre o que ocorreu durante esse período da história do Brasil.
O Brasil foi oficialmente colonizado a partir do século XVI por portugueses, sendo que documentos históricos datam a presença de negros trazidos da África a mais de quinhentos anos. Eles vieram de várias partes do continente, sobretudo de países situados na costa ocidental. Vieram em três grandes grupos culturais: os Yorubá conhecidos como "nagô", os Dahamoey chamados de "gegê" e os Fanti-Ashanti denominados de "minas", dentre muitos outros grupos menores e pouco representativos, como, por exemplo, os "malês" de religião islâmica, como salienta Darcy Ribeiro (1995).
Formou-se na América tropical uma sociedade agraria na estrutura, escravocrata na técnica de exploração econômica, híbrida de índio - e mais tarde de negro - na composição. Sociedade que se desenvolveria defendida menos pela consciência de raça, quase nenhuma no português cosmopolita e plástico, do que pelo exclusivismo religioso desdobrado em sistema de profilaxia social e política (FREYRE, 2006: 65).
Concordamos com Rambelli (2006), quando diz que apesar de ser entre os anos de 1500 e 1800 o grande apogeu populacional do Brasil, não é necessariamente nele que tem inicio a era das Grandes Navegações da Modernidade, tendo em vista que esta prática, também, era dominada por várias sociedades distintas que antecederam e que presenciaram o momento da conquista europeia. Vestígios arqueológicos de sítios pré-históricos e relatos de viajantes quinhentistas testemunham este acontecimento.
Na África, bem como em outras partes do mundo, era bastante comum que grupos derrotados durante guerras fossem escravizados pelos vencedores. Mas o que ocorreu aqui no Brasil durante quase quatro séculos foi bem diferente do que sucedia noutras regiões do globo e isto influenciaria para sempre o constituir da nação brasileira.
O povo-nação surge da concentração de uma força de trabalho escrava, recrutada para servir a propósitos mercantis alheios a ela, através de processos tão violentos de ordenação e repressão que constituíram, de fato, um continuado genocídio e um etnocídio implacável (RIBEIRO, 1995: 26).
Os negros da África vieram para o Brasil para trabalharem nos engenhos de cana-de-açúcar, minas, lavouras e tiveram que passar por um longo processo de adaptação, pois a África era (e ainda é) composta de uma grande diversidade de etnias. Eles nem mesmo conseguiam entender os dialetos e línguas dos seus vizinhos, sendo os mesmos compostos por grupos hostis uns aos outros, o que persistiu quando aqui chegaram, pois além de não dominarem o idioma local trouxeram consigo as rivalidades que existiam entre eles na África. Então os negros eram isolados de forma severa e devido à falta de comunicação, tinham que aprender a cultivar os alimentos da terra, chamar as coisas e os espíritos em línguas indígenas.
A diversidade lingüística e cultural dos contingentes negros introduzidos no Brasil, somada a essas hostilidades recíprocas que eles traziam da África e à política de evitar a concentração de escravos oriundos de uma mesma etnia, nas mesmas propriedades, e até nos mesmos navios negreiros, impediu a formação de núcleos solidários que retivessem o patrimônio cultural africano (Ribeiro, 1995: 115).
Talvez ao pensarmos em como tenha sido a vinda de escravos paro o Brasil a imagem a que remete este processo, seria a obra de Rugendas (Negros no porão) que relata a situação cruel a qual eram submetidos os escravos durante a travessia para o país; Rambelli (2006) assevera que não teria sido tão desumano este processo, visto que eles eram mercadorias que custaram dinheiro, e por tal necessitariam de cuidados. É questionável que, apenas uma imagem represente todo este sistema, uma vez que o tráfico movimentou um mercado durante aproximadamente quatro séculos, existiam então embarcações próprias para tal finalidade, uma arquitetura especial para estes fins, embora o autor, acima citado, saliente que a intenção do texto não é abrandar o sofrimento a que eram submetidos os negros africanos.
Apesar de toda esta gama de agruras,este grupo subordinado foi aos poucos e de forma passiva tendo que incorporar elementos de outras culturas à sua. De forma gradativa a história dos negros no Brasil se formou através dos séculos, dando ao país cores, cheiros e sabores únicos, da chamada cultura afro-brasileira.
Resistência Escrava
É provável que a demora dos arqueólogos em se dedicarem ao estudo dos povos escravizados tenha se dado devido à premissa de que esses grupos não teriam uma expressão cultural que pudesse ser representada através da sua cultura material. Todavia, com inicio de pesquisas arqueológicas em locais de refúgio conhecidos como assentamentos quilombolas, este pressuposto não se sustenta, pois os resultados de estudos arqueológicos revelaram características próprias destes grupos que habitavam esses abrigos. Existem alguns quilombos, que por sua importância merecem ser citados, como os de Minas Gerais, Ambrósio e o da Cabaça, notado por Prous (1992), e o mais conhecido, o de Palmares (PE, AL) um exemplo clássico desse tipo de local de proteção relatado por Funari (2005).
Entendemos que, os locais, acima descritos, são extraordinariamente promissores para pesquisas arqueológicas, pois neles o estilo de vida de seus moradores era como em seus lares de origem, deste modo, suas peculiaridades culturais seriam mais bem representadas, se expressariam de forma mais livre, não eram, nestes locais, reprimidos para se manifestarem culturalmente. Funari (2005) defende que Palmares seria a consolidação e a reafirmação da cultura e do estilo de vida africanos. Mais uma vez, a defesa da cultura negra frente à cultura branca.
Qualquer tentativa de ignorar a importância da força entre homens e mulheres presos à escravidão serve meramente ao restabelecimento das velhas crenças de que a resistência e rebelião escrava raramente ocorriam (Aptheker, 1943:13).
A Religião
A imposição da ideologia da Igreja Católica sobre os escravos foi outro importante elemento desse sistema de dominação. Essa ideologia visava a inculcar os escravos à importância da passividade cristã perante a vontade de Deus. Assim, na qualidade de bons cristãos, os escravos deveriam aceitar sua condição serviu passivamente. Nesse sentido, a escravidão adquiria o significado de uma penitência necessária para alcançar o Reino de Deus (SYMANSKI, 2007).
A cultura material evidenciada em escavações arqueológicas mostra que além da repressão a que eram submetidos, como a imposição da cultura branca, a imposição religiosa dentre outras, os escravos tentavam expressar suas crenças incorporando elementos da religião católica e do cotidiano à sua religião de origem, tentando assim ludibriar seus senhores.
O vestígio mais evidente encontrado no interior dacasa grande foi um prato de cerâmica com uma moeda de cobre, cunhada em 1869, colocada em seu centro, esse conjunto foi colocado exatamente no canto de uma das celas, abaixo do piso, sobre a fundação da casa. A dimensão ritual afro-orientada desse material é sugerida por uma descrição histórica fornecida por Sweet (2003:130), de um escravo Mina preso em João Pessoa, em 1799, o qual, visando a prever seu futuro, colocou uma moeda no centro de um prato com água (SYMASKI, 2007: 23).
Outro achado que pode ser indicativo da possível manutenção de sistemas de crenças de origem africana pelos escravos de chapadas dos Guimarães é um par de garrafas completas, uma de vidro preto e outra de grés branco, as quais foram enterradas em um dos cantos de uma senzala do sítio Engenho Água Fria. Garrafas como estas foram encontradas na Jamaica e nos Estados Unidos, foram identificadas como garrafas de feitiço, garrafas eram, também, um item comum na parafernália ritual das casas de candomblés baianas do século. XIX (SYMANSKI, 2007: 25).
Esses elementos foram reproduzidos através de gerações até se conformarem no catolicismo camponês cujos rituais e crenças apresentam, até os dias atuais, estrutura e simbolismo de origem africana (SYMANSKI, 2007).
O Cotidiano
É importante ressaltar, que além da vida rural dos escravos concentrados em minas, engenhos das grandes fazendas, plantações, dentre outros, existia a vida urbana. Nas cidades, havia grande fluxo de escravos assumindo funções como alfaiates, sapateiros, vendedores, lavadeiras e outras atividades. Os chamados escravos de ganho desempenhavam funções, em que o lucro que obtinham com esses serviços extras era entregue aos seus senhores, ficando com os empregados apenas uma pequena porcentagem, no entanto, alguns escravos conseguiam acumular estas economias e comprar sua carta de alforria, outros conseguiam por meio da padrinhagem. Um exemplo de ofício de sapateiro está claro no texto de Tânia Andrade Lima, "Los zapateros descalzos: Arqueología de una humillación en Río de Janeiro (Siglo XIX)", que apesar de terem o oficio de sapateiros, andavam descalços, um elemento diferenciador do estado social e por tanto da sua condição animal, atribuída aos negros do Rio de Janeiro durante o século XIX.
Considerações
O que se procurou expor aqui foi um olhar panorâmico sobre cada um dos temas abordados. Com a elaboração do presente trabalho podemos reconhecer os potenciais de estudos de cada uma dessas vertentes da arqueologia escrava, através dos estudos materiais com o auxílio da historiografia. E ainda a carência em que se encontra esta área do conhecimento. Os futuros estudos sobre o tema trarão importantes resultados para a comunidade arqueológica e em geral, e mesmo se baseando, ainda, muito em texto escritos esta linha da arqueologia mostra como é possível passar para a sociedade os fatos históricos que foram sofreados por forças maiores por todo este tempo, sobretudo manifestações pretéritas sobre os negros que aqui chegaram.
A Arqueologia Histórica é capaz de alterar as grandes narrativas de poder que são frequentemente representadas nos documentos, como mostramos no estudo comparativo entre fontes escritas sobre Palmares e cultura material dos sítios arqueológicos Além disso, acreditamos que o exemplo de Palmares aponta para a importânciado reconhecimento de que a arqueologia lida com evidência de conflito bem como de flexibilidade, e que os arqueólogos não podem reivindicar serem observadores neutros da evidência (FUNARI & ORSER, 2004: 22).
Bibliografia Consultada
FREYRE, Gilberto. Casa - grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal / apresentação de Fernando Henrique Cardoso - 51ª Ed. rev. - São Paulo: Global. 2006 [1933].
FUNARI, Pedro Paulo. Carvalho, Aline Vieira de. Palmares, ontem e hoje. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2005.
Holanda, Sergio Buarque. Raízes do Brasil. 26ª ed. Cia das Letras. São Paulo, 1995 [1936].
Lima, TaniaAndrade. Los zapateros descalzos: Arqueología de una humillación en Río de Janeiro (Siglo XIX).. In Sed nos Satiata II: acercamientossocialesenla arqueologialatinoamericana, ed. por Félix Acuto e Andrés Zarankin. Buenos Aires,Encuentro Grupo Editor.pp.33-55, 2008.
Novaes, Luciana de Castro Nunes. Entre Segredos e Etnografias: O culto de Iyami nos estudos do Candomblé. História e-História, v. -, p. ---, 2011.
Orser Jr, Charles E. Introdução à Arqueologia Histórica. Trad. De Pedro P. A. Funari. Ed. Oficina de Livros Belo Horizonte. 1992.
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Prous, Andre. Arqueologia Brasileira. Ed UNB. Brasilia DF. 1992
RAMBELLI, Gilson .Tráfico e navios negreiros: contribuição da Arqueologia Náutica e Subaquática. Navigator: subsídios para a história marítima do Brasil, v. 2, pp. 59-72, 2006.
RAMBELLI, Gilson; Novaes, Luciana de Castro Nunes. Frutos do mar. Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 6, nº 71, pp 29-31. 2011.
Ribeiro, Darcy. O povo Brasileiro, a formação e o sentido do Brasil. Cia das Letras. São Paulo, 1995.
Souza, Marcos Andre Torres de. Uma outra escravidão: a paisagem social no Engenho de são Joaquim, Goiás. Vestígios, Revista Latino Americana de Arqueologia Histórica, V. 01, N. 02,pp 59-92. 2007.
Symanski, Luís Cláudio Pereira. O domínio da tática, práticas religiosas de origem africanas nos engenhos de chapada dos Guimarães (MT). Vestígios, Revista Latino Americana de Arqueologia Histórica, V. 01, N. 02,pp 7-36. 2007.
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[1] Graduando em Arqueologia Bacharelado pela Universidade Federal de Sergipe - UFS (thellesfabio@gmail.com).
[2] Graduanda em Arqueologia Bacharelado pela Universidade Federal de Sergipe - UFS (aline_rios4@hotmail.com).
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