Xingu aborda com dignidade a questão indígena
Há setenta anos, três jovens burgueses - de 27, 25 e 23 anos -, alistaram-se na expedição Roncador-Xingu e embarcaram na maior aventura de suas vidas. Felipe Camargo (Orlando, morto em 2002), João Miguel (Claudio, morto em 1998) e Caio Blat (Leonardo, morto em 1961), dão vida aos irmãos Villas-Bôas em “Xingu”, de Cao Hamburguer. Mais do que ser uma cinebiografia sobre eles – em especial, sobre Claudio e Orlando, já que Leonardo não ficou lá muito famoso -, o filme é definitivo na cinematografia nacional, ao dar margem para uma superprodução que sai do território das favelas ou do sertão, e trata da temática indígena com ingredientes tão bons que o transformam numa saborosa aventura.
E essa “saga” dos irmãos boas-praças chega num momento fundamental, no qual se debate tanto questões como economia verde, sustentabilidade, a necessidade de progredir sem destruir, que seu significado se amplia. Apesar de tratar de fatos ocorridos há muito tempo, a luta pela preservação dos saberes tradicionais, da cultura e da floresta, prossegue. Baseado no livro diário dos irmãos Villas-Bôas (Marcha para o Oeste), dos arquivos da família e de muitas conversas com pessoas que colaboraram com os três, o roteiro foi escrito por Cao, pela cineasta Anna Muylaert e por Helena Soarez.
Os três garantem lugar na expedição do período getulista a terrenos desconhecidos, se passando por sertanejos analfabetos. A reles aventura se transforma num árduo trabalho de descoberta. De 1945, quando avistam a primeira cabeceira de rio e logo travam contato com a primeira tribo, até 1961, quando Jânio Quadros resolve criar o parque, muitos anos se passam e transformam a cabeça dos irmãos. Ao se embrenharem mais e mais na floresta, os Villas-Bôas vão entrando em contato com outra cultura e se deixam envolver por um processo reverso de “civilização”.
Ambições épicas
Na outra margem do olhar, a desconfiança durante o primeiro contato de Orlando e Claudio com uma tribo, é perene. É definitivo. Eles tornam-se linguistas, antropólogos, médicos, advogam pela causa indígena, dos povos que sempre foram donos da terra e passaram a ser dizimados nela. Os Villas-Bôas foram os desbravadores que, ao lado de intelectuais como Darcy Ribeiro, lutaram pela criação do Parque Nacional do Xingu, reserva de 27 mil m² onde hoje vivem 14 povos indígenas. E ao lado dos índios, eles desenharam e delimitaram fronteiras para a reserva.
Mesmo tratando de uma temática que pode não empolgar a maior parte do público – afinal, como o próprio Claudio dizia “homem branco não gosta de índio” – a experiência de vida retratada captura a atenção de imediato. A ambição deles era épica, na mesma medida em que Cao e sua equipe se empenharam durante cinco anos para fazer nascer o filme. Isso era necessário, já que a maior conquista deles, um parque para preservação indígena, com o tamanho da Bélgica, completa 50 anos e é o tipo de história que merecia ser transposta para a magnitude das telas de cinema.
Entre as populações que permeiam o Xingu, essa história é contada de pai para filho, de geração para geração, e só está presente no livro-diário dos Villas-Bôas. Mesmo após a criação do parque, é preciso estar atento e forte (e isso está impresso no filme) para reprimir as investidas dos militares, seringueiros, fazendeiros e outros invasores. Os irmãos entram em conflito, mas jamais perdem o foco da defesa dos povos e do território, e lutam mesmo contra o avanço da Transamazônica.
Herois imperfeitos e, por isso, cativantes
Em alguns momentos, pode-se até ter a impressão de que Cao Hamburguer tenta endeusar os irmãos Villas-Bôas, mas ela logo é desfeita. Leonardo, Orlando e até o virtuoso Claudio estão longe da perfeição. O caçula se aprofunda demais no mundo “selvagem” e acaba dando um novo rumo à expedição. Acostumado com os entremeios e tramas da política, o articulista Orlando passa a questionar até que ponto o seu empenho em conquistar terras para os índios não serve apenas para massagear seu ego e conquistar status. Comedido com as palavras e com os gestos na maior parte do tempo, Claudio (João Miguel) é tão determinado a ir até ao fim das coisas, que entontece a plateia. Ele é um turbilhão de emoções, tão apaixonado pelos indígenas que não mede consequências em busca da salvação das tribos. Esse Claudio fictício é tão conflituoso e envolvente, que é impossível não torcer por ele tanto quanto pela sobrevivência dos índios do Xingu. (Diário do Pará)
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