domingo, 15 de abril de 2012

O percurso do ANC até à derrota do racismo



Cultura

O percurso do ANC até à derrota do racismo

Miguel Júnior


Em conformidade com os registos históricos, a luta do povo sul-africano contra o apartheid começou há muito tempo. O ANC beneficiou de inúmeras ajudas e os seus militantes foram acolhidos em diversos países. Neste contexto, alguns países da África Austral também albergaram os combatentes do ANC. Foram os casos de Angola e Moçambique. Além do mais, a partir desses territórios, diversas acções foram coordenadas contra o regime do apartheid. Foi nos campos de batalha de Angola e Moçambique que o apartheid se desmoronou.

No fim de um conjunto de esforços políticos, militares, diplomáticos e de outra índole, a luta do povo sul-africano foi coroada de êxito. O regime do apartheid foi derrubado. O ANC chegou ao poder. No fim de contas, o resultado alcançado contra as forças do apartheid é, acima de tudo, uma vitória do povo sul-africano, sem esquecer, como é evidente, os contributos provenientes de muitas partes.

Derrotado o apartheid, há toda a necessidade de percebermos certos aspectos da luta contra esse anacrónico sistema. Por um lado, para penetrarmos na história da luta do povo sul-africano sob liderança do ANC e, por outro lado, de modo a entendermos certas particularidades dessa luta.

Vários estudos têm sido feitos sobre a matéria. Uns prestam a­tenção às frentes externa e interna. Os demais congregam os dois lados e outras tantas questões. Todos os estudos se fazem com o mesmo propósito. Perceber mais sobre a luta do povo sul-africano contra o apartheid.



Guerra do Povo



A nossa atenção vai incidir sobre a frente interna para que possamos perceber o seu peso no conjunto da luta e ver como ela contribuiu para a vitória final. De resto, a guerra do povo, que constitui o fulcro deste texto, está associada à frente interna. Para aferir o peso e a dimensão da frente interna, no entanto, fazemos recurso a estudos publicados por duas instituições sul-africanas – Institute for Strategic Studies (University of Pretoria) e South African Institute of Race Relations.

O estudo divulgado pelo Instituto Sul-africano de Relações Raciais é de 2009 e consta da obra “Guerra do Povo Nova Luz na Luta pela África do Sul”. Já o estudo publicado pelo Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade de Pretória é de 1987 e está expresso no artigo “Os distúrbios na África do Sul: Setembro de 1984 – Maio de 1987” (ISSUP Strategic Review, 1987).

Para melhor compreendermos o esforço da frente interna, é preciso escalonar os factos de forma sequencial. Como é do domínio público, a luta na África do Sul passou por várias etapas. Depois da criação do Congresso Nacional Africano – ANC e de outras forças políticas (Partido Comunista Sul-africano – SACP e Congresso Pan-africanista - PAC) ocorreram situações que acabaram por moldar a vida política do país e configurar os desafios subsequentes.

Os acontecimentos que vão de 1960 a 1977 são considerados como parte da luta ligada à resistência ao apartheid. Este período de tempo engloba as grandes manifestações ocorridas em Sharpeville, Soweto, Cape Town, Durban e Port Elizabeth e actividades políticas de mobilização e de protesto. Além do mais, é marcado pelo aprofundamento das relações entre os partidos comunistas da União Soviética e da África do Sul, cujas relações datam do ano de 1921.



Aliança revolucionária



Outro aspecto é a aliança revolucionária estabelecida entre o Congresso Nacional Africano – ANC e o Partido Comunista Sul-africano – SACP. Desta maneira, as acções armadas fizeram-se sentir em diferentes pontos do território sul-africano. Mas, em contrapartida, as contramedidas em termos de segurança interna também não se fizeram esperar. Em consequência, a liderança da luta armada, na qual constava o próprio Nelson Mandela, acabou por ser detida.

No âmbito das medidas contra as acções armadas dos combatentes da liberdade, um cordão sanitário tinha sido estabelecido nos países limítrofes, o que refreou a estratégia da luta armada e remeteu o ANC à completa imobilidade. Diante deste estado de coisas, a credibilidade do ANC ficou, de certo modo, beliscada.

Aliás, o estado da organização era de tal ordem que a União Soviética foi forçada a reduzir as ajudas materiais e financeiras, e remeteu-as para os movimentos de libertação das colónias portuguesas. Na medida em que esses movimentos estavam a dar mais provas do ponto de vista da luta armada no terreno.



Campanha internacional



Quando se alcançou, entretanto, o entendimento no seio das Nações Unidas sobre o perigo que representava o apartheid, este passou a ser considerado como um crime contra a humanidade.

Assim, em 1973, começou uma campanha internacional contra o apartheid e foi objecto de condenação. Ao mesmo tempo, nestas circunstâncias, várias vozes se mobilizaram e ecoaram em muitos pontos do globo, o que foi conferindo alento ao ANC. Em Portugal eclodiu a Revolução dos Cravos devido à pressão da guerra nas colónias portuguesas. Assim se criaram condições para remoção do cordão sanitário, que imobilizava a luta armada do ANC. Outro aspecto notório é que o ANC, na prática, também não tinha condições para atender o grande movimento reivindicativo das massas trabalhadoras dos anos 70 e que exercia uma forte pressão sobre o sistema do apartheid. A imobilidade e a inoperância eram os elementos que imperavam no seio da organização.

Nestas condições emergiu uma nova organização política que passou a conduzir as massas, ao ponto de se converter em verdadeira opositora do regime do apartheid. Trata-se do Inkatha Yenkululelo Yesizwe (Inkatha), que foi formado por Mangosuthu Buthelezi. A sua plataforma de luta baseava-se na não-violência e numa perspectiva multidimensional do problema interno. Essa plataforma de luta do Inkatha, assente na fórmula da não-violência, produziu resultados, mas, ao mesmo tempo, ela esbarrou diante dos interesses e da relutância do regime do apartheid.



Revolta do Soweto



Nestas condições teve lugar a grande revolta de estudantes em Soweto (1976), sob liderança de Steven Bantu Biko e Barney Pityan (fundadores da Organização Sul-africana de Estudantes - SASO e mentores (nova vaga) do movimento de “Consciência Negra” da África do Sul. Depois dessa revolta, Steven Bantu Biko foi detido e morreu. Estes factos somados vão inaugurar, nos tempos que se seguem, outro capítulo na história da luta do povo sul-africano.

Milhares de jovens exilaram-se e juntaram-se ao ANC. Apesar disto, alguns jovens, pertencentes outrora ao movimento de “Consciência Negra”, estavam interessados numa “terceira força” devido ao estado em se encontrava o ANC e à situação de estagnação da luta armada contra o apartheid. Só que os jovens foram convencidos, enquadrados e ficaram, pois o ANC estava a criar condições para a luta.

Depois esses jovens passaram a atrair outros jovens, de todos os recantos da África do Sul, para incorporarem o Umkhonto (braço armado do ANC). Nestas condições, a União Soviética incrementou as ajudas financeiras e materiais, e o ANC foi reconhecido na arena internacional como legítimo representante do povo sul-africano.

Assim, em 1979, o regime do apartheid estava desacreditado no plano interno e internacional. Do outro lado, as forças patrióticas no exílio – ANC e SACP – encontravam-se paralisadas e tinham pouco peso em comparação com o Inkatha e o movimento de “Consciência Negra”. Em consequência, os esforços do ANC foram concentrados sobre a luta armada e no sentido da assunção da liderança da luta.



Experiência do Vietname



Para atingir os seus desideratos, o ANC socorreu-se de outras experiências. Tendo a preferência recaído sobre a experiência do Vietname, que resulta da luta do seu povo contra os franceses e americanos. Os dirigentes do ANC e do SACP, em perfeita aliança e coordenação, estiveram no Vietname (1978 -79) e absorveram essa experiência. Quer dizer, eles foram aprender a fórmula da guerra do povo.

Esta fórmula tem a sua origem nos princípios da guerra revolucionária concebidos por Mao e que foram enriquecidos por Vo Nguyen Giap. O saber foi aplicado e produziu muitos bons resultados. Assim se criou uma poderosa concepção de guerra.

Em linhas gerais, a guerra do povo é uma mescla de luta política e militar (violência) com o propósito de encurralar o oponente entre as duas formas de luta. Além do mais, neste género de guerra não se estabelece uma linha divisória entre combatentes e civis. Por outras palavras, todos aqueles que se encontram na área do conflito são identificados como “armas de guerra”. Aqui reside o conceito de guerra do povo.

Uma vez assimilada a fórmula e consideradas as características próprias do povo sul-africano, o ANC criou as condições para o efeito. Por isso, a preparação começou em 1979 e terminou em 1983.

O que implicou reorganizar o ANC e depois passar para uma fase de propaganda armada com a finalidade de divulgar a organização. De seguida, eles passaram para a estruturação de uma organização armada e para uma fase de mobilização e luta política.



Batalha do Cuito Cuanavale



Criadas as condições em conformidade com os princípios da guerra do povo, então a guerra teve o seu início em 1984. O objectivo principal era tornar a África do Sul ingovernável. Em 1985, o ANC fez um apelo no sentido da intensificação da guerra. Três anos depois, a guerra tinha atingido o seu máximo. A Batalha do Cuito Cuanavale foi o fim do apartheid.

A pressão foi mantida, enquanto ocorriam outros desenvolvimentos políticos e militares na África Austral. Esta perspectiva de luta foi preservada até ao estabelecimento do processo de transição política.

Para ilustrar o impacto da guerra do povo em relação ao regime do apartheid, destacamos um trecho de um estudo levado a cabo por uma instituição sul-africana (Ver ISSUP Strategic Review, 1987, p. 21) onde se diz o seguinte: “Desde Setembro de 1984, a África do Sul tem experimentado uma onda séria de violência e distúrbios.

No sentido de conter a escalada de violência, em 12 de Junho de 1986, o Presidente de Estado declarou o Estado de Emergência Nacional. O Presidente de Estado fixou três objectivos prioritários a alcançar com o Estado de Emergência Nacional, a saber: regresso à estabilidade através da restauração da lei e ordem; retorno à normalidade e a continuação do processo de reformas.”

Em linhas gerais, podemos sublinhar que a guerra do povo foi uma realidade vivida. Ela foi essencial no conjunto da luta levada a cabo pelo ANC no plano interno. Este modelo de luta foi a mola impulsionadora para as mudanças que se operaram na África do Sul e que aceleram a derrota do regime do apartheid.

Assim se criaram as condições, no plano interno, que conduziram o ANC ao poder através de eleições gerais e livres, que fizeram de Nelson Mandela o primeiro Presidente da África do Sul livre do apartheid.



*Tenente general das FAA









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Manoel Messias Pereira

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