sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

A controvérsia stalinista no relatório secreto de Nikita Khruschov


Stalin - sendo velado


Batalhas de memória no pós-guerra soviético: A controvérsia stalinista no relatório secreto de Nikita Khruschov

por Chrystian Wilson Pereira




A morte de Josef Stalin, em 1953, selava a imagem do líder da URSS como a mais controversa personagem da trajetória do socialismo soviético. Mitificado por uma ampla parcela da população, Stalin sucumbia devido a uma hemorragia cerebral, discutida incansavelmente a posteriori sobre suas possíveis causas – em que se pese a possibilidade de assassinato. Os anos seguintes a este acontecimento tornavam o legado stalinista objeto de acirrados debates historiográficos e combustível para as lutas de poder que perfaziam o processo de desestalinização do Estado Soviético, deflagrado a partir do “vazio de poder” deixado por um governo centrado exaustivamente no culto ao líder. Estas novas demandas do aparato político-ideológico soviético, de caráter reformista, mostravam-se um golpe no âmbito da esquerda internacional.

Coincidia com a gestão de Stalin a vitória dos sovietes na Grande Guerra Patriótica contra a Alemanha Nazista (1941-1945) e um indiscutível desenvolvimento econômico que consolidara Moscou na posição de centro de uma emergente potência mundial, quase quatro décadas após a insurreição bolchevique e a subseqüente instalação revolucionária de um inédito governo socialista e antiburguês. Os índices de crescimento atingiram impressionantes safras, impulsionados pela industrialização forçada e a eficácia do aparelho de controle e planejamento estatal que estrangulava as possíveis resistências ao modelo autoritário de modernização. À esteira das contradições de seus “grandes feitos”, o governo stalinista se caracterizava como uma repressiva e sanguinária ditadura. Campos de concentração, labor coercitivo e semi-escravista nos campos, exploração operária, propagação do terror e do medo, coletivizações forçadas de terras, deportações de inimigos e culto ao líder: eis os caminhos que perfaziam.

Em 1956, um relatório secreto apresentado no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) por Nikita Khruschov denuncia uma série de irregularidades do governo de Stalin, pesando o seu desvio dos preceitos partidários, a transgressão dos princípios coletivos do comunismo e os seus “erros ideológicos”, referentes à contradição que o governo tinha criado ao gerir uma sociedade dita socialista, em um único país, e praticar a ilegalidade por meio da violência, promovendo uma radicalização revolucionária.

No momento, estamos preocupados com uma questão que tem imensa importância para o partido agora e no futuro - a forma como o culto da pessoa de Stalin foi crescendo gradualmente, o culto que se transformou em um determinado estágio específico, a fonte de um conjunto de perversões extremamente sérias e graves dos princípios do Partido, da democracia partidária, da legalidade revolucionária. (KHRUSCHOV, 1956)

Para Khruschov, o culto à personalidade stalinista violava os interesses do povo e o princípio fundamental de liderança coletiva professado pelo marxismo leninista, erro pelo qual o governo antecessor havia causado um “grande dano por violação do principio do sentido coletivo partidário e pelo acúmulo de poder imenso e ilimitado nas mãos de uma pessoa”. Aparece, em seu discurso, a defesa de uma unidade indissolúvel entre o Partido, seus líderes e as massas trabalhadoras. O abuso de poder cometido por Stalin, para Khruschov sujeito rude e caprichoso, havia sido prejudicial e levado pessoas inocentes a se serem enforcadas pelo Estado. A imagem de Stalin deixava de ser intocável. O líder que se transformara em uma espécie de semideus patriota, encarnação da utopia socialista, passava a ser gradualmente questionado. Era a dessacralização de um mito.

Para Kiva Maidanik (p. 16, 1998), “o massacre do Partido Comunista e a implantação do stalinismo significaram a primeira morte da Revolução de 1917”. O caráter ideológico do processo de desestalinização faz Khruschov, novo presidente da URSS, desmontar Stalin e opô-lo à tradição revolucionária leninista. Para muitos que acreditavam em uma revolução socialista produzida no seio de batalhas ideológicas e na conscientização do povo, sem imposições da força ou propagação do terror, o período entre a morte de Lenin em 1924 e a de Stalin em 1953 compreendia uma obscura contra-revolução, ilegal e disfarçada de socialismo. À procura de legitimar sua posição a favor dos traços revolucionários bolcheviques, Khruschov opõe a práxis política de Stalin à de Lenin:

Traços de Lenin – um paciente trabalho com as pessoas, de teimosa educação e diligência, a capacidade de induzir as pessoas sem o uso da coerção, mas sim através da influência ideológica sobre eles de todo o coletivo – foram inteiramente estranhas a Stalin. Ele descartou o método leninista de convencer e educar; abandonou o método de luta ideológica e adotou a violência administrativa, repressões em massa e terror. Ele agiu em uma escala cada vez maior e mais obstinadamente através de órgãos punitivos, ao mesmo tempo, muitas vezes violando todas as normas existentes. (KHRUSCHOV, 1956)

Existem entre Stalin e Lenin duas vias de revolução, dois aportes de ação política consideradas, em momentos diferenciados, como motes para construção do socialismo soviético. Ressaltada por Khruschov, esta richa ideológica se encontrava no cerne das lutas de poder que caracterizavam o “vazio de poder” caracterizado pela crise de 1953. Contrapunha-se à revolução de baixo para cima, promulgada junto ao povo por uma via dita pacífica um modelo autoritário, realizado de cima para baixo, aceleradamente industrializante e coletivizador. O novo líder da URSS defende um retorno à ordem revolucionária defendida por Lenin. É uma posição ideológica que permite atribuir ao documento secreto a dimensão de estratégia frente a um “tempo de reformas” que, segundo Daniel Aarão Reis Filho, caracterizaria a era Khruschov.

O governo acompanharia a introdução de uma política de democratização do Estado, um retorno à direção coletiva do Partido, desligamento dos órgãos de segurança, abrandamento da censura, liberdade a presos políticos, fechamento de campos de concentração e, em especial, melhorias à população por meio da flexibilização das relações de trabalho, enfim, um afrouxamento das políticas autoritárias stalinistas que levava a uma relativa liberalização político-econômica.

Do ponto de vista das mudanças, em certa medida, ocorreu um processo tanto paralelo como inverso ao ocorrido no pós-Lenin da década de 1920. Assumiu o poder um setor da estatocracia mais inclinado à abertura, preocupado com as necessidades sociais do povo, com uma certa inclinação populista. [...] Mas as bases do sistema do ordeno e mando – monolítico e monopolista – não foram colocados em xeque por N. Khruschov ao longo do processo de desestalinização. Por algum motivo, a maior parte da estatocracia apoiara o processo da década de 1950. O sistema possuía uma desmedida fora de inércia, em grande medida devida aos êxitos obtidos na época da centralização necessária dos recursos, da industrialização, da reconstrução e obtenção do equilíbrio militar, e um poderoso corpo de defensores. [...] Confrontada com estas múltiplas variantes, a estatocracia escolheu e impôs o pior: prosseguir sem mudar. (MAIDANIK, p. 24, 1998)

Se analisado em retrospectiva, o processo de desestalinização é, no entanto, questionável, na medida em que a URSS continuava um Estado altamente burocrático, autoritário e sem modificações substanciais na política econômica. Sua gestão permanecia centralizada, o que prejudicava o governo de uma gigantesca potência entre o extenso mar de suas contradições. O caráter autoritário do “novo” Estado soviético, embora flexível se comparado ao período stalinista, revelava-se continuísta. O modelo ideológico da URSS continuava a impor-se no exterior como o legítimo comunismo (marxista/leninista), o que explica os impasses diplomáticos com a China pós-revolucionária maoísta, alternativa ao bolchevismo leninista e ao stalinismo, e a repressão às insurreições revolucionárias anti-soviéticas na Hungria em 1956.

Se estamos considerando esta questão como marxista-leninista, então temos de afirmar inequivocamente que as práticas de liderança que surgiram durante os últimos anos da vida de Stalin tornaram-se um sério obstáculo no caminho do desenvolvimento social soviético. Stalin falhou ao contrair problemas extraordinariamente importantes, sobre a vida do Partido e do Estado, cuja solução não pode ser adiada. Durante a liderança de Stalin, as nossas relações pacíficas com as outras nações eram muitas vezes ameaçadas, porque as decisões de um só homem poderiam causar grandes complicações. (KHRUSCHOV, 1956)

Paradoxalmente, se a URSS sofria impasses fora do seu território e cisões dentro do bloco socialista que formava uma frente alternativa ao capitalismo capitalizado pela liderança dos EUA, o discurso de Khruschov se desenvolve sob a retórica de uma “coexistência pacífica”, sob a possibilidade da ameaça de uma guerra atômica que, potencialmente, poderia devastar a humanidade. Ao apontar a belicosidade e o caráter violento do governo stalinista, seu sucessor não apenas mobiliza o passado soviético recente para demonstrar erros cometidos pela degeneração ideológica e o culto à personalidade, como, implicitamente, defende uma posição pacífica das duas potências e a diplomacia nas relações com outras nações.

A Guerra Fria focalizava, a partir desse momento, uma corrida no campo tecnológico e no desenvolvimento econômico. Tratava-se de uma disputa tendo em vista as metas compartilhadas de autosuperação de ideologias antagônicas e suas aplicações máximas – capitalismo nos EUA e comunismo na URSS. Era de vital importância demonstrar e sublinhar qual deles seria o mais viável e poderoso no campus mundial, capaz de reinventar-se e dominar os continentes. O lançamento do Sputnik em 1957 demonstrava a força soviética e o seu poderio científico. Eric Hobsbawm chegou a alcunhar este próspero período de “era de ouro”.

Os investimentos educacionais, militares e industriais da URSS diminuíam seu atraso em relação aos EUA e impulsionavam incríveis índices de desenvolvimento, escondendo, contudo, as contradições que existiam em seu território e a inflexibilidade do sovietismo em face dos seu acelerado crescimento. Acirravam-se os regionalismos e o centralismo excessivo dos setores econômicos. Desde já, a URSS apresentava indícios de seu futuro colapso. O complexo sistema pedia mudanças em caráter de urgência. As próximas décadas iriam demonstrar o fracasso para que estas fossem suficientemente atendidas.

O discurso secreto de Khruschov marca uma década na qual a utopia do socialismo soviético sofre inúmeros golpes, o que acabava com a sua hegemonia monolítica, ainda que a URSS continuasse sendo o exemplo máximo de um “comunismo revolucionário”. As vitórias da Revolução Chinesa em 1949 e da Revolução Cubana, dez anos depois, demonstravam alternativas ao modelo da URSS. Neste ínterim, desenvolve-se a derrocada do mito stalinista, que divide ainda mais a esquerda no âmbito internacional e rompe com a idéia de uma ideologia contínua dentro do território soviético.

Na prática, os Partidos Comunistas ficariam entre a defesa incondicional do stalinismo (caso da Albânia) ou a remodelação ideológica de vinculações, pensamentos e modelos revolucionários (caso da antiga Iugoslávia). No caso brasileiro, o XX Congresso do PCUS provocou a maior crise da história do PCB. Este se cinde a partir da saída de integrantes “renovadores” mais radicais – fundadores de partidos menores –, ao mesmo tempo em que sua própria Comissão Executiva também se reformula tendo em vista as novas demandas, em uma reação mais conservadora que mantém o vínculo com a União Soviética. (FALCÃO, 2006, p. 6)

Tomemos, a título de ilustração, o papel desempenhado pela reescrita da história após o XX Congresso do PC da União Soviética, quando Nikita Kruschev denunciou pela primeira vez os crimes stalinistas. Essa reviravolta da visão da história, indissociavelmente ligada à da linha política, traduziu-se na destruição progressiva dos signos e símbolos que lembravam Stalin na União Soviética e nos países satélites, e, finalmente, na retirada dos despojos de Stalin do mausoléu da Praça Vermelha. (POLLAK, p. 4, 1989)

A crise que abate a URSS a partir de 1953 é também a crise de seus paradigmas historiográficos, pelos quais a Segunda Guerra Mundial – chamada em território soviético de Grande Guerra Patriótica, especificamente em relação à Alemanha Nazista entre 1941 e 1945 – passa a ser, novamente, palco de conflitos. O papel desempenhado por Stalin na guerra e a sua concepção revolucionária são (re)avaliados e, incansavelmente, tornam-se combustíveis de batalhas de memória que mobilizam o passado histórico frente à (re)construção do Estado na discutível desestalinização. Stalin é denunciado por Khruschov pelo seu desvio dos preceitos partidários; seu comando violento e sanguinário na URSS.

Em que se pesem as concepções de revolução que são contrapostas por Khruschov, seria interessante não demonizar nem endeusar Stalin, mas interpretá-lo como um “ditador brutal, meticuloso, com uma grande capacidade de trabalho e nenhum respeito pela vida” (REIS FILHO, p. 110, 2003) A Grande Guerra Patriótica não fora vencida somente por Stalin. Não cabia sacralizar os grandes feitos e virtudes da nação soviética ao líder, mas compartilhá-los, descentralizá-los, desmontá-los como resultado de exaustivo trabalho de toda uma geração.

A denúncia é política e ideológica: a reformulação histórica pretende tornar protagonistas da construção do socialismo soviético o povo, as lideranças plurais, intelectuais e atores do Partido; o coletivo (re)habilita-se como grande responsável pelo processo revolucionário. A história, nesse ínterim, torna-se estratégica e operacional, funcionando como instrumento do reformismo moderado de Khruschov, de caráter leninista. Era a hora de tomar as rédeas da história das revoluções russas. Ao tirar seu foco de um líder criminoso, inverter-se-iam seus pólos de ação novamente para uma direção “a várias mãos”. Em posição de inércia, as contradições que celebravam seu irreformável caráter de inflexibilidade, juntamente com o autoritarismo, seriam mantidas sob reformulações pontuais e importantes – ainda que insuficientes a longo prazo – para a imediata crise que se abatia no campo do antigo Império Russo. Stalin, contudo, não morrera. Seu fantasma sobreviveria com o tempo, tornando-o exemplo máximo do paradoxal socialismo soviético cujas evidências de seu futuro colapso já se apresentavam.

Referências

FALCÃO, Frederico José. O Relatório Secreto de Kruschev e o Partido Comunista do Brasil (PCB): desestalinização e crise. In: XII Encontro Regional de História ANPUH, 2006, Niterói. Usos do Passado ANPUH- Resumos e Programação. Niterói: UFF, 2006.

FERREIRA, Jorge. URSS: mito, utopia e história. Tempo - Revista do Departamento de História da UFF, Rio de Janeiro, v. 3, n. 5, p. 75-103, 1998.

HOBSBAWM, Eric.

Era dos extremos:o breve século XX : 1914-1991.2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

KHRUSCHOV, Nikita. Relatório secreto do Comitê Central do Partido no XX Congresso do PCUS. Disponível em .

Acesso em 31 out. 2011.

MAIDANIK, Kiva. Depois de Outubro, e agora? Ou as três mortes da Revolução Russa. Tempo - Revista do Departamento de História da UFF, Rio de Janeiro, v. 3, n. 5, p. 9-43, 1998.

POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.

REIS FILHO, Daniel Aarão. As Revoluções russas e o socialismo soviético. São Paulo: Ed. da UNESP, 2003.




[1] Graduando em História (Bacharelado e Licenciatura) pela UDESC (Universidade do Estado de Santa Catarina).

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